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ATRÁS DO ECRÃ, OS RPG NA TELEVISÃO E NO CINEMA – Parte II

Podes ler este artigo na Revista Bang! 21 - Por Pedro Lisboa

O Cromo: ” As Referências Estereotipadas”

O processo de resposta e adaptação ao Pânico Satânico por parte da indústria, a que alguns críticos chamaram a “disneyfi -cação do D&D”, teve início com a exibição da série animada Dungeons & Dragons (1983-1985), claramente dirigida a um público infantil. Esta tendência, liderada pelo jogo mais popular e que se aprofundou com o passar do tempo, pautou-se pela eliminação de referências a demónios, sexualidade e escolhas morais complexas.

Privadas de munição, as baterias censórias puritanas apontaram para outros alvos. Muitos dos próprios criadores de RPG agradeceram este resguardo das luzes da ribalta, ainda que isso significasse chegar a um público mais restrito. Lenta e inexoravelmente, os jogos de personagem abandonaram a sua aura de perigo imaginado e passaram, aos olhos da opinião pública, a passatempo inócuo, em larga medida incompreendido e incompreensível, e por isso passível de troça. Como resultado, na televisão, passaram a proliferar as referências, quase sempre passageiras e remetendo invariavelmente para o mesmo estereótipo. Sempre que um argumentista procurava caracterizar uma personagem geek ou nerd, bastava transmitir ao público um dos chavões recorrentes, que, do ponto de vista narrativo, são intercambiáveis: ciência, computadores, banda desenhada, ficção científica, ansiedade social, imaturidade, inépcia romântica e, claro, D&D. Em certa medida, este último representa uma espécie de patamar rarefeito, reservado apenas aos cromos mais dedicados.

A tendência chegou, viva e de boa saúde, até aos nossos dias. Inventariar todas as suas ocorrências seria aborrecido e desnecessário, tanto pela extensão como pela falta de substância, que raramente vai além da caricatura trocista, mais ou menos maldosa. Como seria expectável, o registo em que surgem é quase sempre a comédia.

Por exemplo, nos Simpsons (Homer Goes to College, 1993), descobrimos que Homer já foi jogador de D&D, e nos Ficheiros Secretos (Unusual Suspects, 1997; Three of a Kind, 1999) vemos Langly, o mais novo do trio de hackers Lone Gunmen, jogar com a sua personagem favorita, Lord Manhammer. O facto de, num destes episódios, se fazerem apostas de dinheiro como parte integral de uma sessão de D&D diz bastante acerca do (des)conhecimento dos argumentistas acerca do jogo.

Em jeito ilustrativo, veja-se ainda Dexter’s Laboratory (D&DD, 1997), That 70’s Show (Radio Daze, 2001), The IT Crowd (Jen the Fredo, 2010), 30 Rock (St. Patrick’s Day, 2012), e, claro, A Teoria do Big Bang (The Santa Simulation, 2012; The Love Spell Potential, 2013). Esta última destila dezenas de anos deste tipo de abordagem, ao enveredar pela mais despudorada e condescendente nerdsploitation, neste e em todos os restantes temas.

Ao contrário de Gamers (2006), que acrescenta humor boçal à caracterização habitual, o fi lme independente Zero Charisma (2013)
é um caso mais difícil de avaliar, pelo invulgar tom tragicómico, que conjuga o pleno estereótipo do jogador sociopata com um olhar autocrítico.

D&D
D&D

Imaginação Infinita: As Referências Positivas

Apesar de todos os altos e baixos, os RPG nunca conseguiram entrar assumidamente no mainstream cultural. Ainda assim, a enorme influência que exerceram na geração que cresceu nos anos 70 e 80 acabaria, inevitavelmente, por dar frutos. No começo do novo século, começaram a surgir referências de cariz inédito. Pela primeira vez, os jogos de personagem foram tratados de forma sincera, bondosa, nalguns casos até afectuosa. Não é que, de um momento para o outro, se tenha mudado radicalmente de discurso; antes, apareceu a ideia que estes jogos não seriam nem perigosos nem uma perda infantil de tempo.

No último episódio da série Freaks & Geeks (Discos & Dragons, 2000), os espectadores vêem as suas expectativas viradas
do avesso quando Daniel, a personagem de James Franco, o típico jovem rebelde, conflituoso e blasé, decide experimentar D&D com os miúdos cromos da escola. Para espanto de todos, gosta tanto da sessão que imediatamente sugere mais um jogo para o dia seguinte, deixando os restantes jogadores com a emblemática interrogação se será Daniel que se está a transformar num geek ou se serão eles que passaram a ser cool. Hoje, a resposta é evidente.

Geek & Freaks - D&D
Geek & Freaks – D&D

Num tom mais casual mas ainda assim positivo, também o último episódio de Buffy (Chosen, 2003) mostra os heróis a jogarem RPG, à semelhança de Angel, a seguinte série de Joss Whedon, onde voltamos a encontrar referências esporádicas.

Por outro lado, em Futurama (Anthology of Interest I, 2000) o reconhecimento elogioso é absoluto. O próprio Gary Gygax é representado como uma espécie de super-herói cuja responsabilidade é proteger o contínuo espaciotemporal, ao lado de Al Gore, Stephen Hawking, a tenente Uhura e o computador Deep Blue. A série é pródiga em alusões a D&D, e inclui a longa-metragem Futurama: Bender’s Game (2008), cujo enredo é construído em torno do jogo e da incapacidade de Bender, por ser robô e não ter imaginação, de jogar. É evidente a importância que David X. Cohen, o co-criador de Futurama, atribui aos jogos de personagem. Para outro exemplo, mais recente, deste género de empatia no mundo da animação veja-se Gravity Falls (Dungeons, Dungeons & More Dungeons, 2015).

Dan Harmon, em dois episódios distintos de Community (Advanced Dungeons & Dragons, 2011; Advanced Advanced Dungeons & Dragons, 2014), consolida a ideia de que, de facto, se operaram mudanças signifi cativas na percepção geral dos jogos de personagem. Subvertendo todos os preconceitos históricos, Harmon mostra os potenciais efeitos positivos dos jogos, não apenas ao nível lúdico mas no reforço da auto-estima e das capacidades sociais. A mensagem é clara: os RPG devem ser celebrados, não censurados.

 

 

Nostalgia e Assimilação

Passados 35 anos das primeiras representações cinematográficas e televisivas destes nossos jogos peculiares, onde se situa a opinião colectiva acerca deles? Evidentemente, o gosto e as sensibilidades actuais são muito diferentes do que eram no início da década de 80, desde logo pela valorização generalizada de certas temáticas. Para o bem e para o mal, a cultura geek massifi cou-se, levando consigo uma das suas pedras angulares, os RPG. A atestá-lo, a lista de personalidades públicas que afi rmam a sua paixão pelos jogos, passada ou presente, que cresce a olhos vistos: Stephen Colbert, Elon Musk, Anderson Cooper, Vin Diesel, Patton Oswalt, Joseph Gordon-Levitt, Wil Wheaton, entre tantos outros.

Num processo temperado pelo importante factor nostálgico, os jogos de personagem foram defi nitivamente inscritos no património cultural contemporâneo, ainda que, pelo menos por enquanto, a sua visibilidade e difusão efectiva não tenham acompanhado a consagração. Esta circunstância coloca-nos perante uma espécie de mundo pós-geek – desculpem-me a expressão trapalhona – do qual os RPG fazem parte intrínseca, com os seus defeitos e virtudes.

Em House of Lies (Game Theory, 2016), o D&D é apresentado como uma actividade lúdica “normal”, ainda que idiossincrática, mesmo para mulheres de negócio bem-sucedidas. Em sentido complementar vão as séries web HarmonQuest, Critical Role e Titansgrave, que transformam o próprio acto de jogar em espectáculo. De facto, Toto, já não estamos no Kansas.

O que se segue? Só o tempo o dirá. Para já, a extravagância retro de Stranger Things (2016), que carinhosamente coloca o D&D no centro da narrativa, como elemento fundamental para o enredo e para os protagonistas, simboliza na perfeição o caminho percorrido. De E.T. a Eleven, derrotado o Demogorgon, fechou-se o primeiro ciclo.

D&D Stranger Things
D&D Stranger Things

 

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