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ATRÁS DO ECRÃ, OS RPG NA TELEVISÃO E NO CINEMA – Parte I

Podes ler este artigo na Revista Bang! 21 - Por Pedro Lisboa

Enquanto fenómeno cultural, os role playing games (RPG) tiveram um impacto profundo no desenvolvimento da cultura pop mundial dos últimos 40 anos. Mais, os preceitos e mundividência que os suportam enraizaram-se de tal forma nas sociedades ocidentais que, em avaliação geral, não é inteiramente disparatado pensar que o mundo seria um sítio muito diferente se não existissem jogos de personagem. Desde o aparente triunfo da cultura geek até à tão alardeada e omnipresente gamification, a sua marca encontra-se por toda a parte. Será que o sucesso de O Senhor dos Anéis, Harry Potter e A Guerra dos Tronos seria o mesmo caso não existissem? É possível conceber a indústria dos videojogos sem os seus contributos? A própria ideia de interagir socialmente através de avatares, um dos esteios das redes sociais actuais, deve alguma coisa ao velho dado de 20 lados…

RPG Gary gygax
Gary gygax

No entanto, por um conjunto de factores diversos, entre os quais a permanência dos jogos em comunidades – e, admitamos, segmentos de mercado – de nicho, esta influência correu por meios em larga medida silenciosos. Apesar do extensíssimo rol de personalidades provenientes de todos os campos criativos para quem os RPG desempenharam um papel formativo, o seu verdadeiro alcance continua quase inteiramente por valorizar. Este grupo é composto quase exclusivamente por norte-americanos, tal como a origem de grande parte da discussão que se segue, mas, quer gostemos ou não, é sobretudo dos sobrinhos do Tio
Sam de quem falamos quando consideramos a cultura pop.

As ramificações deste processo são de tal modo tentaculares que, mesmo para o aspecto particular que agora mais nos interessa, o da referência e tratamento dos RPG na ficção cinematográfica e televisiva (com um piscar de olho à banda-desenhada), temos de nos fazer acompanhar de alguns elementos básicos da sua história e recepção.

RPG - Dungeons and Dragons, no THE BIG BANG THEORY,
Dungeons and Dragons, no THE BIG BANG THEORY,

Considerem-se, então, três sensibilidades e abordagens distintas, que, de forma tosca, podemos designar como negativas, estereotipadas e positivas. Cada uma é mais predominante num período histórico específico, mas as categorias são suficientemente fluidas para permitir sobreposições cronológicas e temáticas. Por outras palavras, não há exclusividade entre elas e é comum a partilha, em graus diferentes, de características cruzadas.Uma nota: como seria de esperar, quase todos os filmes e séries televisivas fazem referência a um único jogo, Dungeons & Dragons (D&D). Mesmo quando o título explicitado é outro, em alguns casos por motivos legais, é ao D&D que se faz alusão; tendo em conta o seu peso simbólico, não é de estranhar. Porquê este destaque? Para compreendê-lo, recuemos aos conturbados anos da longínqua e bárbara década de 1970…

Pânico Satânico: As Referências Negativas

 

Enquanto por cá nos ocupávamos de outro tipo de liberdade, o primeiro jogo de personagem, D&D, foi publicado nos EUA em 1974. O que começou por ser uma iniciativa caseira – literalmente, já que os manuais de regras eram dobrados, agrafados e empacotados à mão na cave de um dos seus autores, Gary Gygax – depressa cresceu para além da pequena comunidade de aficionados que lhe serviu de berço. No final da década, em apenas 5 anos, a originalidade do jogo trouxe-lhe notoriedade nacional e boa parte dos adolescentes norte-americanos de classe média teria, no mínimo, conhecimento da sua existência.
Aquela que é provavelmente a primeira menção cinematográfica a D&D encontra-se em O Clarim da Revolta (1981, Taps, no original), onde vemos Tom Cruise a desafiar Timothy Hutton e Sean Penn – todos desempenham papéis de cadetes adolescentes numa escola militar – para uma sessão. Apesar de brevíssima, a referência casual sugere um apreciável grau de familiaridade e aceitação do jogo.

RPG - D&D em cena no E.T. de Spielberg
D&D em cena no E.T. de Spielberg

Outro caso, mais significativo, é o de E.T. – O Extraterrestre (1982). Para qualquer pessoa que tenha jogado RPG na adolescência, a animada sessão que se mostra no início do filme é surpreendentemente verosímil, desde a ubiquidade da junk food, passando pelo pedinchar do jogador mais novo, até à curiosidade parental acerca do estranho jogo (“E como é que se ganha este jogo? Não se ganha, é como a vida. Não se ganha à vida”). Sabe-se, aliás, que antes do começo das filmagens o próprio Spielberg organizou uma partida com os jovens actores, com a intenção de fomentar o espírito de grupo. Ao jeito de um imaginário fecho do primeiro acto narrativo, esta representação sincera e terna não tardou em ser posta à prova. No início dos anos 80, o oportunismo mediático de alguns sectores conservadores da sociedade norte-americana encontrou nos jogos de personagem um bode expiatório para as suas pretensões moralistas, à semelhança do que mais tarde aconteceu com o heavy metal e os videojogos, no fenómeno que veio a ser conhecido como Pânico Satânico.

RPG - Maze & Monsters
Maze & Monsters

Apesar de as pretensões destes virtuosos caçadores de bruxas – que acusavam o D&D de promover e ensinar demonologia, vudu, blasfémia, homossexualidade, prostituição, canibalismo, necromancia, entre outras perversões – terem sido desmontadas tanto pela via dos argumentos científicos como do bom senso, não se evitou o inquinar da percepção pública. Foi neste contexto que, em 1982, surgiu a adaptação cinematográfica do romance homónimo Mazes & Monsters, uma dramatização sensacionalista dos acontecimentos relativos ao caso de James Dallas Egbert III, um estudante universitário desaparecido (e rapidamente reaparecido) em 1979. Para além da honra duvidosa de dar corpo artístico à imagem dos RPG como actividade inerentemente perigosa, o filme é notável ainda por incluir o primeiro papel como protagonista de um jovem Tom Hanks. Pouco ou nada mais, aliás, o merece. Na senda da profilaxia moral ficcionada, representando com maior ou menor proeminência a suposta ameaça proto-esotérica e desestabilizadora dos jogos, encontramos, por exemplo, os telefilmes Skullduggery (1983) e Cruel Doubt (1992), o episódio Flesh and Blood (1989) da série policial britânica Taggart, e a delirante (e, não intencionalmente, hilariante) banda desenhada Dark Dungeons (1984), do fundamentalista evangélico Jack T. Chick. Fora uma ou outra excepção, como o inenarrável Knight Chills (2001), esta corrente felizmente não sobreviveu no discurso público muito além do início da década de 90.

Parte II, dia 17 Fevereiro –

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