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O SIGNIFICADO DE MONSTRESS – Por Nuno Ferreira

Vivemos numa época ambígua, em que o mundo civilizado parece tão justo e evoluído como cruel e bárbaro. Por vezes, parece que o Homem se veste de uma sabedoria artificial e quando é chamado a agir, revela todo o leque de preconceitos e brutalidades que ainda imperam na sua natureza. A cultura, sobretudo as artes, têm desempenhado um papel activo na educação do Homem enquanto ser, e a literatura é um dos grandes agentes neste processo.

MONSTRESS E OS PRÉMIOS
Marjorie Liu e Sana Takeda
Marjorie Liu e Sana Takeda

Neste mundo em que, infelizmente, ainda precisamos falar de representação de género, há duas mulheres que têm somado vitórias no mundo da nona arte. Marjorie Liu e Sana Takeda venceram em 2017 o British Fantasy Award e o Hugo Award na categoria novela gráfica, dois dos mais importantes prémios nas áreas da fantasia e da ficção científica. Em 2018, amealharam 5 (CINCO) Eisner, o prémio maior das bandas-desenhadas, e todos sabemos a quantidade e qualidade dos projetos gráficos que têm gravitado por esse mundo fora. O mais incrível é que somaram todas estas vitórias com um único trabalho em curso. Estou a falar de Monstress.

 

 

Plot

E esta série, de que a Saída de Emergência acaba de publicar o terceiro volume, é o exemplo perfeito do que é representação de género, quebra de paradigmas e originalidade. Comecemos pelo plot. Caímos de pára-quedas numa guerra. Uma guerra entre humanos e arcânicos. Logo aqui há uma fractura iminente em relação à literatura tradicional. Não há infodumps nem introduções, vemos uma menina sem um braço a ser leiloada, sabemos que foi devastada na guerra e que ali perdeu o contacto com uma outra menina, que lhe era próxima mas não fazemos ideia a que nível e tampouco do seu paradeiro.

Esta menina leiloada é arcânica, uma raça resultante do cruzamento entre anciãos (que mesclavam características humanas com as de animais) e humanos. Os anciãos viveram durante séculos em guerra, divididos entre duas cortes: a Corte do Ocaso e a Corte da Aurora. Mas, apesar da guerra, as duas castas nunca se privaram à companhia dos humanos, cuja origem remonta aos mares. Dessa união, nasceram os arcânicos, e desde que os humanos descobriram as propriedades poderosas dos ossos destes, não descansaram até os escravizar. Logo aqui temos uma imagem vívida do preconceito e do que ele produz: conflitos, guerras e miséria, mas sobretudo dos interesses e da sede de poder bem enraizada na raça humana.

Logo então vem a representação de género. Mas não se enganem ao julgar que temos uma rapariga altruísta e bondosa como protagonista, à procura de coragem para enfrentar um vilão másculo. A história fantasiosa de Monstress apresenta-nos uma perspetiva realista. Maika Meiolobo, uma rapariga endurecida pela guerra e pelos contínuos desgostos, não acredita em contos de fadas, em justiça ou em príncipes encantados. Não acredita nem procura, e muito menos encontra. Ela é sarcástica e dura, destila palavrões e está habituada a lidar com a perda, pelo que não tem paciência para lamechices. Também tem um deus monstruoso chamado Zinn dentro de si que a faz comer pessoas, mas isso são outros quinhentos.

deus monstro
deus monstro
Maika Meiolobo
Maika Meiolobo

 

 

 

 

 

 

 

Quanto aos vilões, são os humanos. E não somos nós que andamos a destruir este mundo enquanto procuramos novos ingredientes para o nosso conforto pessoal? São também maioritariamente mulheres. Estaria muito longe da verdade se afirmasse que os maiores inimigos das mulheres costumam ser outras mulheres? Numa perspetiva mais doce, a oferecer um contraponto interessante e que lida com as emoções do leitor, temos Kippa.

Kippa
Kippa

Kippa é a personificação da inocência, a criança que tem esperança na salvação, que espera firmemente alcançar uma pátina de amor e alegria. É uma menina-raposa que trava amizade com Maika e tenta sensibilizá-la, mas ainda que Meiolobo construa uma amizade forte com Kippa, não se deixa amolecer nem demonstra qualquer sentimento com facilidade.

Nesta relação podemos incluir também Mestre Ren, um gato esperto e irónico, que acaba por se tornar uma vítima sentimental das duas e se deixar arrastar por elas. Maika tenta afastá-los na tentativa de os proteger, mas o vínculo forjado é mais forte que o receio e os dois são obstinados em acompanhá-la. Mas a rapariga tem um mal muito antigo dentro de si, que de repente acordou. Esse mal é Zinn, um dos Velhos Deuses de muitos olhos.

a Guerra

Não nos podemos esquecer que Monstress é passado no centro do furacão de uma guerra cujo início não nos é dado a conhecer e cujo fim não parece próximo. Somos apresentados a uma miríade de personagens sombrias, cujos propósitos nos parecem ameaçadores embora não se possa garantir os verdadeiros interesses de cada um. Monstress também é um jogo de intrigas que se inicia no rescaldo da Batalha de Constantine, e entre as bruxas Cumaea, a Marinha, piratas e anciãos, parecem haver movimentos sub-reptícios dos quais pouco é dado a entender.

Aquilo que sabemos sobre a guerra, sobre o mundo e sobre as raças é-nos contado ao final de cada capítulo pelo Professor Tom-Tom, um gato. Por curiosidade, os gatos são uma espécie única e, por ironia, a mais inteligente de entre todas do Mundo Conhecido. Filhos de Ubasti, a deusa primordial que escorraçou os Velhos Deuses, os gatos são a raça mais antiga deste mundo.

 

Neste ninho de sombras, Maika Meiolobo procura verdades sobre o seu passado, sobre a mãe, sobre a sua linhagem, sobre a relação que esta tinha com a Imperatriz-Xamã e sobre o túmulo desta. Faz ainda o leitor levantar uma série de questões sobre a menina chamada Tuya. Mas tanto quanto procurar respostas, Maika deve procurar sobreviver à guerra, à guerra entre os povos e à guerra entre si e o monstro que a usou como hospedeira. Zinn é apenas um dos Velhos Deuses, uma criatura que pode não ser a monstruosidade que aparenta… ou ser ainda pior.

Com uma mistura convincente entre o art deco e o mangá e traços que lembram a cultura asiática, o trabalho gráfico de Sana Takeda é um capricho visual que não precisa de grandes apresentações. As formas e as cores chamativas são uma resposta perfeita à narrativa vívida de Liu, uma comunhão que é espelhada a cada prancha. Basta deixar ao critério de quem puder pegar numa capa. Monstress é um monstro visual que se destaca entre os trabalhos do género.

Entre fugas, encontros com aliados antigos e novos, cada um mais visualmente estranho que o antecessor, somos convidados a destrinçar a pouco e pouco as revelações incríveis que este mundo tem para nos oferecer. Marjorie Liu e Sana Takeda são as responsáveis autorais por este sucesso, mas podemos dizer que são responsáveis sobretudo por participarem de uma mudança de paradigma importantíssima na literatura de género, que é a sensibilização para o mundo real dentro de contextos ficcionais. O significado de Monstress é, realmente, obrigar-nos a olhar para os nossos preconceitos e idiossincrasias, monstros que alojamos dentro de nós.

 

MARJORIE LIU é uma aclamada escritora de livros de BD e ficção. Trabalhou com a Marvel e o seu trabalho está publicado na Alemanha, França, Japão, Polónia e Reino Unido. Nasceu em Filadélfia e viveu em várias cidades do Médio Oriente e Pequim. Antes de se dedicar a tempo inteiro à escrita, era advogada. Reside atualmente em Boston.

SANA TAKEDA nasceu em Niigata e reside em Tóquio. Foi designer na Sega e tem extenso trabalho publicado com a Marvel.

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