H. P. Lovecraft: Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea (Parte 2)
por José Carlos Guerreiro Gil
O CONCEITO DO SOBRENATURAL EM LOVECRAFT
Na sua mitologia artificial, os «deuses» utilizados por Lovecraft não são deuses num sentido literal. Todos são constituídos por átomos, embora a disposição destes possa dar origem a matérias e formas perfeitamente alienígenas para o ser humano. Esta minúscula alusão ao universo quântico da Física serve para afirmarmos que o sobrenatural no seio da ficção lovecraftiana é um conceito algo problemático. Parece-nos evidente que, para um mecanicista-materialista como o autor em questão, não faria sentido a utilização de um sobrenatural propriamente dito como aquele utilizado nos autores mais tradicionais do Gótico. Essa seria uma contradição face às suas mais profundas convicções pessoais. Uma característica fundamental dos seres que rasgam o «véu» da normalidade, como os «Old Ones», é, dentro da lógica ficcional deste autor, o seu carácter material, destituído de contornos «mágicos».
Apesar de, à partida, ser possível entender o carácter natural destas entidades superiores, far-nos-á falta uma maior exactidão na utilização de termos. Para tal, será pertinente utilizarmos a teoria desenvolvida por Tzvetan Todorov, sobre o Fantástico na sua obra The Fantastic – A Structural Approach to a Literary Genre. Entre Lovecraft e Todorov, refira-se, desde logo, existe algo em comum, pois ambos os autores, Lovecraft em Supernatural Horror in Literature e Todorov na obra acima referida, tratam a literatura fantástica numa perspectiva dos seus efeitos. No caso do escritor americano, o efeito desejado é o medo, uma ansiedade inexplicável perante uma ameaça exterior e que não é ainda perceptível. A este tipo de medo chamou, como já vimos, «terror cósmico».
Para o autor de The Fantastic, o efeito pretendido é a hesitação. Com efeito, Todorov explica, em primeiro lugar, que o Fantástico é, perante uma situação que extravasa a normalidade, uma hesitação na atribuição desse acontecimento a uma estranha combinação de leis naturais, portanto, possível de acontecer, ou a acontecimentos sobrenaturais, quebrando as referidas leis naturais.
No caso de a narrativa ser racionalmente explicável, então estaremos perante aquilo que Todorov designa como puramente «uncanny», ou o que poderemos chamar de «estranho», exemplificado, na obra deste autor, através do conjunto das obras de Dostoiévski.
Já no «fantástico-uncanny», o leitor é colocado perante uma hesitação em que, inicialmente, todos os acontecimentos apontam para a intervenção do sobrenatural, para, no final, surgir uma explicação racional, em conformidade com as leis naturais. Todorov exemplifica com recurso a histórias de detectives, que insinuam a intervenção de elementos sobrenaturais, mas que, no final, nos dão uma explicação perfeitamente racional.
Por outro lado, no «fantástico-maravilhoso», os acontecimentos de uma narrativa seguem realmente para uma explicação sobrenatural, uma explicação em consonância apenas com a própria estrutura e lógica interna da narrativa. É o caso de narrativas em que encontramos a intervenção de criaturas como demónios, espíritos ou elfos sendo, de facto, apresentados como tal. Finalmente, tal como o puramente «uncanny», Todorov também apresenta um «maravilhoso», sem hibridismo. Este irá ser subdividido em quatro: um «maravilhoso hiperbólico» e um «maravilhoso exótico», em que as narrativas sobre as viagens de Sinbad servem de exemplo; um «maravilhoso instrumental», em que objectos «mágicos», tais como as lâmpadas ou os anéis de Aladino, desempenham um papel fundamental na narrativa, e, finalmente, o «maravilhoso científico», que podemos associar à ficção científica.
Neste, os acontecimentos iniciais apontam para o sobrenatural, que, no caso de Lovecraft, são quase sempre materializados em raças extraterrestres muito anteriores ao aparecimento do Homem e com capacidades que escapam àquilo que a Ciência pode explicar no momento. Contudo, apesar de uma incapacidade de compreensão actual, não significa que as leis «naturais» sejam quebradas. As transgressões de leis de uma realidade ficcionada, mas que se quer próxima da realidade exterior à ficção, possibilitam ao leitor a ilusão de que aquilo que lêem poderá ser possível. A este propósito, poderíamos socorrer-nos de Oscar Wilde, que afirmou: «Man can believe the impossible, but man can never believe the improbable» (Wilde, 1973: 84), atestando a importância de uma explicação científica ou pseudo-científica que pareça plausível. O que o leitor encontra em Lovecraft é, nesse sentido, uma explicação racional dos eventos, embora tente sempre causar a hesitação que possibilita o Fantástico. Todorov afirma o seguinte, acerca do «instrumental marvelous»:
The «instrumental marvelous» brings us very close to what in nineteenth-century France was called the scientific marvelous. Here the supernatural is explained in a rational manner, but according to laws which contemporary science does not acknowledge. In the high period of fantastic narratives, stories involving magnetism are characteristic of the scientific marvelous: magnetism «scientifically» explains supernatural events, yet magnetism itself belongs to the supernatural (Todorov 1970: 56).
O sobrenatural de Lovecraft parece integrar-se nesta última categoria, pois muitas das entidades e eventos nas suas narrativas, frutos da imaginação do escritor, surgem aos olhos dos seus protagonistas como completamente sobrenaturais, quando, na verdade, a sua materialidade e possibilidade de serem explicadas num estádio mais avançado da Ciência permanece entreaberta. Para dar apenas um exemplo, refira-se The Call of Cthulhu, em que os seres extraterrestres são vistos como deuses, num sentido literal da palavra, por sociedades vivendo num estágio cultural mais «primitivo». Para os protagonistas do conto, levando a cabo uma autêntica investigação digna do famoso detective tocador de violino e fumador de cachimbo, parece-lhes perfeitamente claro que a entidade com que estão a lidar, não obstante ser muitíssimo poderosa, será, ou poderá vir a ser, explicável do ponto de vista científico.
O mesmo pode, por exemplo, vir a acontecer com a comunicação aparentemente telepática que Cthulhu estabelece com os seus seguidores. Apesar de esta ainda não ser explicável, ou mesmo aceite pela Ciência, a possibilidade de a mesma vir a ser enquadrada no seu seio, num futuro mais ou menos distante, não é de desprezar. Não admira, pois, que Lovecraft seja reconhecido aos olhos de muitos críticos, como um dos precursores da ficção científica no século XX. Esta característica da sua escrita reporta-se, fundamentalmente, àquela que poderá ser considerada a terceira e mais influente fase da sua escrita, constituída pelos textos conotados com o «Cthulhu Mythos».
Para além de Todorov, também Rosemary Jackson, autora de Fantasy – The Literature of Subversion, nos apresenta alguns pontos de vista interessantes para uma melhor definição de algumas características da escrita lovecraftiana. Uma posição importante desta autora reside no facto de considerar que o Fantástico não constitui um género, mas sim um modo. Este deverá ser localizado entre o «mimético» e o «maravilhoso», eles próprios, igualmente modos. De uma forma muito breve, poderemos dizer que o mimético é o modo narrativo que pretende imitar o real, sendo o maravilhoso um modo com uma lógica própria e não de acordo com aquilo que a experiência comum convencionou de «real». Jackson sugere, então, que o Fantástico utiliza a extravagância do «maravilhoso» e o carácter comum do «mimético», não pertencendo assim a nenhum modo de forma distinta. Será então no Fantástico que, de acordo com a autora, fará sentido enquadrar a obra de Lovecraft.
De acordo com o já anteriormente dito no presente capítulo, a obra de Lovecraft escolhe a via do materialismo ou da explicação materialista para construir o elemento fantástico na sua ficção, numa clara tentativa de obtenção de verosimilhança, estando igualmente de acordo com a perda de importância do sobrenatural no século XX e com o carácter eminentemente racional do próprio autor. Não obstante essa opção que o aproxima da ficção científica, o escritor não escapa às problemáticas que envolvem o modo fantástico, como Rosemary Jackson lhe chama. De facto, segundo esta autora, a escrita fantástica apresenta uma relutância ou incapacidade em apresentar versões definitivas da «verdade» ou da «realidade»:
Structured upon contradiction and ambivalence, the fantastic traces in that which cannot be said, that which evades articulation or that which is represented as «untrue» and «unreal». By offering a problematic re-presentation of an empirically «real» world, the fantastic raises questions of the nature of the real and unreal, foregrounding the relation between them as its central concern (Jackson, 1981: 37).
Lovecraft tenta criar um mundo aparentemente real, decalcado do convencional, introduzindo depois algo que perturba essa mesma convencionalidade. O carácter materialista da sua ficção faz com que tente que o próprio elemento estranho possa vir a ser explicado. Contudo, as características exteriores e totalmente alienígenas em relação à realidade quotidiana farão com que haja dificuldades em torná-las credíveis ou em descrevê-las. Independentemente da realidade com que Lovecraft tenta imbuir os seres alienígenas, as criaturas serão sempre fruto da imaginação do autor, advindo daí as dificuldades em encontrar uma linguagem capaz de exprimir plenamente aquilo que os protagonistas dos seus contos vivenciam. Rosemary Jackson refere o seguinte acerca deste aspecto: «H. P. Lovecraft’s horror fantasies are particularly self-conscious in their stress on the impossibility of naming this unnameable presence, the “thing” which can be registered in the text only as absence and shadow» (Jackson 1981: 39).
Uma manifestação desse inominável na ficção lovecraftiana é o conjunto de nomes que designam as entidades alienígenas, como «Cthulhu» ou «Azathoth», despidos de qualquer significado no «mundo real». É uma tentativa de, levando a linguagem aos seus limites, alcançar aquilo que Jean-Paul Sartre defende como «não-tético», uma irrealidade, que o modo literário do Fantástico tenta alcançar.
Apesar de não haver uma ligação real entre esses significantes e um significado, Lovecraft não abdica de querer convencer o leitor acerca da sua materialidade. Nesta sua recusa de entender estes elementos do «Exterior» de uma forma maioritariamente metafórica, mas sim apresentá-los como literais, reside uma das suas principais características. Essa característica acaba também por ser uma das características do Fantástico em geral, distinguindo-se, assim, da alegoria e da poesia.
A materialidade do «exterior» e dos seres que a ele pertencem na ficção lovecraftiana, encaixam no conceito de «non-signification» que Rosemary Jackson defende serem próprias do Fantástico moderno, pois já não estamos perante um mal moral convencional, pertencente a uma visão maniqueísta do mundo, mas sim perante algo menos fácil de definir: criaturas que desafiam a nossa crença de centralidade no Universo e cuja atitude é maioritariamente de indiferença em relação a nós. Não se poderá falar de um mal deliberadamente dirigido ao ser humano, mas sim de algo que coloca em causa a concepção que fazemos de uma realidade convencionada entre todos, antes mostrando um Universo indiferente e caótico, portanto, desprovido de significado e de sentido moral. Aqui residirá, porventura, uma das maiores originalidades do autor americano, pois, como poderemos verificar em At the Mountains of Madness e The Shadow Out of Time, por exemplo, as criaturas extraterrestres retratadas como cientistas poderão ser entendidas como duplos dos cientistas humanos, impossibilitando que estes últimos possam ser vistos de uma perspectiva mais favorável que os alienígenas. De facto, a dado momento, estes parecem mais imbuídos de características supostamente humanas do que os próprios seres humanos, numa inversão de papéis que poderemos encontrar em Frankenstein, ou no domínio da ficção científica, em Supertoys Last All Summer Long, de Brian Aldiss.
Enquanto a maioria dos autores góticos mais conhecidos, como Poe, Stevenson, ou Mary Shelley, se centram no carácter humano, na propensão para a maldade, advindo daí a impossibilidade de alcançar o ideal romântico do Paraíso na Terra, uma das características mais marcantes de Lovecraft é a menor incidência dessa centralidade da psique e da maldade humanas. Na maior parte da sua escrita mais significativa, o maior acto de maldade será, no limite, a tomada de consciência, mais frequentemente acidental do que intencional, das forças imensas que nos rodeiam e jazem adormecidas, cobrindo-nos com a sua sombra imensa e tornando-nos insignificantes.
O carácter materialista cada vez mais importante no presente é referido por Rosemary Jackson a propósito do mito faustiano e das suas transformações:
Goethe’s Faust (1808) moves towards this apprehension of the demonic: as a realm of non-signification. His Mephistopheles is much more complex than a stock representation of evil: «he» introduces a negation of cultural order, insisting that there is no absolute meaning in the world, no value, and that beneath phenomena, all that can be dis-covered (sic) is a sinister absence of meaning. «His» «demonic» enterprise consists in revealing this absence, expressing the world’s concealed vacuity, emptiness and its latest pull towards disorder and undifferentiation. (…) Transformation of the Faust myth epitomize the semantic changes undergone by fantasy in literature within a progressively secularized culture (Jackson, 1981: 57).
A autora de Fantasy – The Literature of Subversion refere que no Fantástico moderno, o Mal ou o demoníaco não dizem já respeito ao puramente sobrenatural, mas sim àquilo que está atrás ou entre formas e estruturas que vemos separados. Trata-se de um híbrido, de uma transgressão. O «Exterior», o «Outro» é, então, tudo aquilo que ameaça «este» mundo, o mundo «real» com a sua dissolução.
A ficção lovecraftiana parece seguir um caminho paradoxal ao querer apresentar-nos como estrutura de fundo um mundo decalcado da realidade, opondo-o depois ao rosto do «Exterior». Contudo, como num jogo de espelhos, o próprio acontecimento rompedor da normalidade irá ser enquadrado por Lovecraft na realidade, ao tentar explicar ou sugerir uma via «material» para o acontecimento disruptor.
Tal como o título da obra de Rosemary Jackson indica, o modo fantástico tem, como característica fundamental, para esta autora, o carácter subversivo. Esta característica não deixa de ser aplicável à ficção de H. P. Lovecraft, uma vez que a realidade resultante da intervenção de forças exteriores ficará profundamente alterada, com algumas das suas construções sociais e culturais quase totalmente destroçadas.
A intervenção do «Exterior», fruto da imaginação do autor e podendo ser vista, numa perspectiva psicanalista, como uma projecção das suas próprias ansiedades, é uma manifestação do irracional, de forças primevas e que não têm significado (non-significant).
Ao conferir um claro pendor materialista ao «Exterior», Lovecraft consegue, paradoxalmente, criar uma ligação fluida e credível entre a realidade e o produto da sua imaginação, uma reacção contra um excessivo racionalismo e arrogância humana, utilizando esse mesmo racionalismo e fé naquilo que é material, explicável, ou que ainda poderá vir a sê-lo. Este processo de progressiva perda de importância do sobrenatural no Gótico é igualmente reconhecido por Rosemary Jackson: «Changes in Gothic can be seen as corresponding to a slow diminution of faith in supernaturalism» (Jackson, 1981: 97).
Também como consequência desse enfraquecimento, Jackson aponta a propensão do Fantástico em «esvaziar» o real, expondo-o como algo sem sentido, embora continuando à espera que algum acontecimento possa preencher esse vazio deixado pela ausência de fé no sobrenatural. Como Jackson defende:
Religious or spiritual epiphany becomes inconceivable: matter is merely matter, unredeemed, yet strangely hollowed out, insufficient in itself, without meaning, without transcendence, modern fantasy still functions as if meaning and transcendence were to be found. It uncovers mere absence and emptiness, yet it continues its quest for an absolute. Waiting, impossible expectation, l’attente, are characteristics of modern fiction, from Kafka to Beckett and Pynchon (Jackson, 1981: 159).
Tal como em A Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa é, efectivamente, (não metaforicamente) transformado em insecto sem qualquer razão aparente, também na ficção lovecraftiana, o «Exterior» não-sobrenatural irrompe e estilhaça as vidas de todos aqueles que com ele contactam, revelando algo mais para além da realidade aparente, mas sem que essas revelações correspondam aos anseios de um sentido absoluto para a vida. Pelo contrário, o contacto com o «Exterior» apenas revelará mais arbitrariedade, caos e ausência de qualquer sentido teleológico para o Universo. Tal como a transformação em A Metamorfose não depende da vontade de Samsa, também as pacatas personagens de Lovecraft não têm outra opção a não ser deixarem-se ser arrastadas pelo turbilhão de acontecimentos a que se vêm involuntariamente presas. Outras partes em comum são possíveis de encontrar entre as ficções destes dois autores, nomeadamente a progressiva perda de significado e valor da linguagem, temática recorrente na ficção modernista. Da mesma forma que Gregor Samsa perde progressivamente a capacidade de se fazer entender e de entender os objectos que o rodeiam, também as personagens principais em Lovecraft se vêem confrontadas com essa situação. Desde os ininteligíveis sons guturais (des)articulados pelos deformados habitantes de Innsmouth, passando pelos alienígenas, as frases encantatórias dos seguidores de Cthulhu, até às misteriosas palavras «Tekele-li» proferidas pelo protagonista enlouquecido de At the Mountains of Madness, a temática da perda de significado não passou ao lado do mestre de Providence. Ela manifesta-se, igualmente, na perda de sentido de uma realidade que julgavam conhecer, mas que se revela numa plenitude inabarcável e, por isso, incompreensível.
A ânsia por algo que substitua o espaço deixado pela ausência de espiritualidade na contemporaneidade aumenta perante uma total ausência de redenção. Inquietações semelhantes são possíveis de encontrar nas várias obras de Thomas Pynchon, referido na introdução desta dissertação, quando nos confrontamos com as suas personagens envoltas na teia labiríntica de uma sociedade inteiramente secularizada, excedentária de produtos materiais, mas deficitária de sentido e de significados. Segundo Jackson, a palavra-chave da ficção de Pynchon é «entropia», num irresistível movimento para a decadência e ausência de movimento:
Entropy does not function metaphorically for Pynchon, but literally: it is apprehended as the condition of life, and one which is peculiarly appropriate as an expression of the world running down with consumer culture. He tells of the exhaustion of social and of secular systems alike (Jackson, 1981: 167).
Em The Horror at Red Hook, escrito por Lovecraft enquanto se encontrava mergulhado no caleidoscópio de raças, línguas, culturas e competitividade capitalista nova-iorquina, é possível perceber a ausência de sentido e decadência provocada pela metrópole, atestando a incapacidade da vida moderna em conferir sentido aos anseios de significado do escritor e dos protagonistas das suas obras.
Tal como em Pynchon, as massas humanas decadentes fundem-se com o ambiente igualmente decrépito, tornando-se um só e atestando um materialismo tudo menos redentor, característico da cultura contemporânea. Fica assim realçado o desprezo que Lovecraft nutria pelo excessivo materialismo da sociedade, sua contemporânea, e um sentimento de nostalgia por uma época que, temporalmente, não era a sua.
Consequência da sua recusa de qualquer sentido religioso ou influência sobrenatural, o resultado do contacto com o Exterior, com a realidade para além da aparência quotidiana, é, no caso de H. P. Lovecraft, quase sempre trágico:
The negative versions (inversion) of unity, found in the modern fantastic, from Gothic novels – Mary Shelley, Elizabeth Gaskell, Dickens, Poe, Dostoiévski, Stevenson, Wilde – to Kafka, Cortázar, Calvino, Lovecraft, Peake and Pynchon, represent dissatisfaction and frustration with a cultural order which deflects or defeats desire, yet refuse to have recourse to compensatory, transcendental other-worlds (Jackson, 1981: 180).
A impotência das personagens perante acontecimentos que as ultrapassam muito em grandeza é, segundo Richard Chase, autor de The American Novel and its Tradition, uma herança calvinista, portanto estreitamente ligada à fundação da nação americana e da sua mentalidade intrínseca. Para os calvinistas, o Homem é um ser impotente, incapaz de modificar aquilo que já foi pré-delineado pela entidade suprema. A mentalidade dos autores modernos afasta-se e, ao mesmo tempo, aproxima-se desta concepção. O Homem continua a ser incapaz de se impor perante forças irresistíveis, incompreensíveis e contraditórias, permanecendo uma vítima.
É evidente que na obra lovecraftiana, essa impotência não é posta em evidência por uma entidade sobrenatural, entendida numa perspectiva religiosa, mas sim pelos terrores vindos do Cosmos longínquo, produzindo efeitos semelhantes e induzindo o pretendido terror cósmico. Não obstante as terríveis consequências que daí possam advir, a atracção das personagens e do próprio autor pelo terrível faz parte, segundo Richard Chase, do código genético da literatura americana, não sendo também ausente o próprio carácter romântico, de alguma forma, presente no escritor americano e que se revela na recusa de uma sociedade quase unicamente centrada na prosperidade material. No seio desta, personalidades sensíveis e mal-preparadas de um ponto de vista pragmático, não se sentiriam à vontade, como foi claramente o caso de Lovecraft. A redução até à insignificância de um mundo material e de uma mentalidade antropocêntrica, face a um Cosmos vastíssimo e povoado de seres quase omnipotentes, poderá ser interpretado como uma forma de, na sua imaginação, tudo aquilo que limitou o escritor na sua vida ser colocado em perspectiva e adjectivado de insignificante, inconsequente e transitório.
Na mais pura tradição gótica americana, o despertar do «Grande Cthulhu» poderá ser entendido como um regresso do reprimido, do outro lado do optimismo americano, potenciado pelos avanços científicos e tecnológicos do início do século XX, contemporâneo do escritor americano e com cujas consequências sociais, económicas e culturais este não se identificava. Não nos querendo basear numa leitura psicanalista da obra do escritor, é quase incontornável concordar com Maggie Kilgour quando esta afirma que «psychoanalysis is a late gothic story» (Kilgour, 1995: 61).
Apesar de, na sua ficção, Lovecraft pretender dar vida a seres concretos e materiais, potencialmente explicáveis à luz da Ciência, com a qual tinha uma relação ambivalente, dificilmente poderemos deixar de olhar para estes produtos da sua imaginação e criatividade como «fantasmas» das suas ansiedades mais profundas.
Northrop Frye, citado por Neil Cornwell em The Literary Fantastic – From Gothic to Postmodernism, corrobora esta posição, se entendermos «fantasy» como «fantastic», tal como Cornwell o faz:
Fiction in the last generation or so has turned increasingly from realism to fantasy, partly because fantasy is the normal technique for fiction writers who do not believe in the permanence or continuity of the society they belong to (Frye, cit Cornwell, 1990: 211).
THE COLOUR OUT OF SPACE E O MARAVILHOSO CIENTÍFICO
Uma vez que este conto particular respeita a condição de transversalidade do tema analisado no ponto anterior, será pertinente falar aqui sobre «a indiferença do Universo e a realidade para além da aparência». Para além disso, é particularmente ilustrativo da questão enunciada no tópico anterior, levando aos limites o nosso entendimento acerca do que pode ser considerado natural e sobrenatural na ficção do autor. Com efeito, dadas as características totalmente indefinidas e alienígenas da «entidade» que, como veremos, causa a destruição gradual de toda uma família e a decadência de uma vasta área rural, torna-se difícil entender, concretamente, do que se trata e se a mesma poderá ser algum dia explicável pela Ciência.
Tal como a narrativa no-la apresenta, essa explicação é e será durante muito tempo inatingível. Narrado na primeira pessoa por um agrimensor destacado para os trabalhos iniciais da construção de um reservatório de água, The Colour Out of Space dá conta dos acontecimentos terríveis, que se seguiram à queda de um estranho meteorito. O objecto caído do espaço deixa uma enorme clareira onde nenhuma vegetação voltou a crescer, referida no conto como «blasted heath» mas, ao mesmo tempo, potencia um crescimento anormalmente exuberante da vegetação circundante, para além de notórias, se bem que indefinidas, alterações morfológicas nos animais. O conto é ainda o relato em analepse da decadência física e mental de uma família exposta às estranhas radiações, culminando na sua degradação e destruição total. É inevitável recordarmos o que aconteceu à família Curie, exposta à radiação durante um longo período de tempo, na sua busca pelo conhecimento, embora seja possível que Lovecraft não tenha associado conscientemente esse facto à sua história. A construção do reservatório de água serviria para encobrir os efeitos visíveis do fenómeno, embora o futuro consumo daquela água fosse estender a contaminação exponencialmente. Um dos aspectos mais relevantes do conto para este trabalho diz respeito à análise do meteorito, levada a cabo por uma equipa de cientistas. Esta análise não obtém qualquer explicação satisfatória, pois o material analisado possui características claramente alienígenas, fora do presente alcance da Ciência humana:
Stubbornly refusing to grow cool, it soon had the college in a state of real excitement; and when upon heating before the spectroscope it displayed shining bands unlike any known colours of the normal spectrum there was much breathless talk of new elements, bizarre optical properties, and other things which puzzled men of science are wont to say when faced by the unknown. (…) Aside from being almost plastic, having heat, magnetism, and slight luminosity, cooling slightly in powerful acids, possessing an unknown spectrum, wasting away in air, and attacking silicon compounds with mutual destruction as a result, it presented no identifying features whatsoever; and at the end of the tests the college scientists were forced to own that they could not place it. It was nothing of this earth, but a piece of the great outside; and as such dowered with outside properties and obedient to outside laws (Lovecraft, 1994: 242-243).
Embora os cientistas não consigam explicar aquele estranho objecto, nem sequer determinar se se tratava de uma entidade viva ou não, Lovecraft não opta pela via habitualmente utilizada por autores mais tradicionais. Bem de acordo com o modo fantástico, a dúvida sobre aquela misteriosa entidade permanece, embora no seio da sua ficção o escritor deixe a porta entreaberta para uma futura explicação através da Ciência. Ainda que o «meteorito» não se pareça comportar de acordo com as leis conhecidas pela Ciência, comportar-se-á de acordo com outras que, por enquanto, ainda desconhecemos, constituindo um exemplo de que o sobrenatural pode ser visto como uma parte do real, por enquanto ainda desconhecido. Esta é uma perspectiva que a poetisa Emily Dickinson já havia intuído e afirmado numa das suas cartas: «I was thinking today, as I noticed, that the “Supernatural”, was only the natural disclosed»(1). Das múltiplas leituras pertinentes para o tema em análise e que são permitidas pelo conto, destacaríamos, uma vez mais, a intromissão do «exterior» na vida do Homem. O meteorito constitui um elemento tão alienígena, tão exterior ao Homem e ao ambiente que pensamos dominar, que nem a natureza da ameaça podemos determinar. Torna- se difícil entender se a ameaça e as suas consequências nefastas para os seres humanos são deliberadas ou não, numa evidente alusão à indiferença do Universo perante a Humanidade.
A relação da Ciência com a realidade posta a descoberto é também interessante, pois coloca em evidência a incapacidade em lidar com possíveis descobertas que a curiosidade humana possa vir a realizar. Mesmo após os acontecimentos terríveis na blasted heath parecerem terminados, não havendo mais vítimas humanas a registar, a ameaça subsiste na forma de uma clareira que se expande lenta, mas inexoravelmente, ano após ano. Esse crescimento não parece passível de vir a ser controlado pelo conhecimento e pela vontade humana, pelo que, em muitos casos, a mensagem vai no sentido de um alerta para não explorarmos as fronteiras do conhecimento em demasia. Não parece, contudo, evidente, neste e noutros contos, tais como The Call of Cthulhu, ou na novela At the Mountains of Madness, por exemplo, que o conhecimento seja intrinsecamente mau. De forma geral, as personagens criadas por Lovecraft não procuram o saber com objectivos sinistros, como acontece, por exemplo, com Victor Frankenstein, ou outros protagonistas acometidos de uma hubris desmedida. Com efeito, o orgulho desmesurado não parece representar um tema tão forte na ficção lovecraftiana como noutros autores.
O que alguns dos contos do mestre de Providence nos parecem querer dizer é que, independentemente do nosso conhecimento, e dos nossos maiores esforços, os terríveis acontecimentos de dimensão cósmica irão continuar a acontecer, com a diferença agravante de que agora o mundo parecerá bem mais ameaçador aos olhos humanos, destroçada que está para sempre a «placid island of ignorance in the midst of black seas of infinity» (Lovecraft, 1994: 61), que Lovecraft refere no início de The Call of Cthulhu.
«TERROR CÓSMICO»: UMA PERSPECTIVA EXISTENCIALISTA
William Van O’Connor na sua obra The Grotesque: An American Genre and Other Essays afirma o seguinte:
There is of course a deeply existentialist drift in modern fiction, European and American. Medieval or Renaissance man could dream of the harmonies implicit in the doctrine of the microcosm-macrocosm relationship. Citizens in Pope’s world could dream of the harmonies of a mechanistically ordered universe. Shelley and Byron could reassert that man was a Prometheus. Herbert Spencer and others testified to having observed that evolution is biological, social and moral. Common to all of these doctrines is the belief that man may rely on spiritual and rational forces in the universe. There was an order of things upon which he could depend for succor, a sense of purpose, and the assurance that he was rational. The modern writer seems certain only of uncertainty (O’Connor, 1962: 17).
Uma perspectiva existencialista também poderá ajudar a explicar a actualidade da ficção lovecraftiana, embora, num primeiro momento, esta pareça ser difícil de conciliar com outras posições defendidas na sua ficção e correspondência pessoal. À primeira vista, o autor parece, através da sua fé na Ciência, essencialmente mecanicista, ou também como viria a ser conhecido posteriormente, mais próximo de um positivismo lógico, algo que o afastaria, desde logo, dessa perspectiva filosófica. No entanto, uma análise mais cuidadosa poderá mostrar-nos algo diferente. Lovecraft não se encontra exclusivamente preso a uma perspectiva objectiva do mundo. O autor percebe as limitações dos nossos sentidos e as consequentes dificuldades para a obtenção dessa, por muitos almejada, objectividade.
É conhecida a importância que os sonhos detêm na sua obra e os mesmos eram muitas vezes vistos pelo autor como uma forma tão ou mais válida do que as outras convencionalmente aceites para um conhecimento autêntico da realidade. Essa forma de aceder a realidades escondidas por «detrás de véus» não estará acessível a todos, apenas os mais sensíveis o poderão fazer, ainda que os mesmos possam vir a correr o risco de serem mal-interpretados pela maioria. Vejamos o início do conto The Tomb:
It is an unfortunate fact that the bulk of humanity is too limited in its mental vision to weigh with patience and intelligence those isolated phenomena, seen and felt only by a psychologically sensitive few, which lie outside its common experience. Men of broader intellect know that here is no sharp distinction betwixt the real and the unreal; that all things appear only as they do only by virtue of the delicate individual physical and mental media through which we are made conscious of them; but the prosaic materialism of the majority condemns as madness the flashes of supersight which penetrate the common veil of obvious empiricism (Lovecraft, 1987: 18).
Para além da crítica a um excessivo empirismo, podemos igualmente testemunhar a perspectiva de que o mundo é apreendido através dos sentidos, mas também pela mente, processo nada surpreendente em Lovecraft. Porém, numa perspectiva mais existencialista, fica também patente a ideia de que o Mundo apenas se materializa porque nós o criamos ao tomarmos consciência dele. De salientar também a admissão, invulgar em alguém com uma componente fortemente mecanicista como Lovecraft, de que podem existir momentos em que a realidade pode ser percebida através de formas menos convencionais, embora nesse seu mecanicismo não seja de excluir que a Ciência possa vir a explicá-las um dia. A ligação ao existencialismo também poderá ser estabelecida, começando pelo paralelo existente entre o conceito de «terror cósmico» e o conceito de «Angst», desenvolvido pelo filósofo Søren Kierkegaard.
Tal como na maioria das obras góticas, a iminência da morte possibilita, de alguma forma, traçar a dimensão da nossa existência pela sua inevitabilidade. A preocupação em revelar a medida da nossa existência e a autenticidade da vida humana tornar-se-ia numa preocupação central para os chamados filósofos existencialistas. Em Lovecraft, poderemos encontrar todo um Universo cheio de incertezas, um cosmos estranho, alienígena e talvez hostil. No entanto, uma certeza permanece em toda a sua ficção: a existência da Humanidade é apenas uma nota de rodapé no desfiar de eras que compõem a história do Universo. O destino final de todos os homens e da sua civilização é o desaparecimento e a morte. Essa inevitabilidade da morte e do desaparecimento poderão, contudo, possibilitar a percepção da vida de uma forma mais autêntica.
À semelhança de inúmeras obras do Gótico, também a ficção lovecraftiana «alerta» para o verdadeiro significado da vida face às ameaças de destruição e de loucura que são impostas aos protagonistas, tal como em Frankenstein, em cujo final o cientista aconselha uma vida isenta de ambições, ainda que aparentemente benignas, como aquelas que pensamos estarem ao serviço da Ciência. Em At the Mountains of Madness, o narrador alerta:
Certain things we had agreed, were not for people to know and discuss lightly – and I would not speak of them now but for the need of heading off that Starkweather –Moore expedition, and others, at any cost. It is absolutely necessary, for the peace and safety of mankind, that some of earth’s dark, dead corners and unplumbed depths be let alone; lest sleeping abnormalities wake to resurgent life, and blasphemously surviving nightmares squiem and splash out of their black lairs to newer and wider conquests (Lovecraft, ed. Joshi 1997: 329).
Apesar de todas as precauções, fica patente nesta e noutras obras de Lovecraft que nada poderá, em última análise, evitar a destruição da Humanidade e a sua substituição por uma outra qualquer forma de vida dominante. Há nesta perspectiva um olhar bastante cru em relação à própria existência, até mesmo uma negação da distinção entre o Bem e o Mal, face àquilo que nos ameaça com a destruição. Esta negação das tradicionais dicotomias Bem/Mal e a perspectiva em que o medo é central na vida de todos nós, patente no início de Supernatural Horror in Literature, são factores de aproximação entre o Gótico e o Existencialismo.
Na coragem perante o sentimento de inevitabilidade da morte e a sua aceitação, Lovecraft irá aproximar-se do filósofo Heidegger, também ligado às correntes filosóficas existencialistas.
Régis Jolivet em As Doutrinas Existencialistas (1961), põe em evidência o pensamento de Heidegger, demonstrando que para a generalidade dos seres humanos a morte é, sobretudo, «algo» que acontece aos outros:
Os homens, geralmente, eximem-se à angústia da morte. Uns encaram-na como simples verdade estatística ou certeza experimental (…) outros reduzem a certeza da morte à certeza de que «se morre», como se a morte atingisse apenas o «se», que não é ninguém (…). Há sempre a preocupação de dissimular aquele «ser-para-a-morte» que nós somos: consolam-se os moribundos, escondendo-lhes a iminência da morte (quem consola é que, de facto, se esforça por se animar a si mesmo). O «se» foge diante da morte: afasta o pensamento da morte como debilitante; não tem a coragem necessária para afrontar a angústia que ela envolve (Jolivet, 1961: 128).
Nas palavras do próprio filósofo: «As soon as man comes to life he is at once old enough to die» (Heidegger, 1962: 289). Por conseguinte, a consciência e aceitação da morte é uma condição para uma existência autêntica. Heidegger refere-se ao ser inautêntico como o «they-self», aquele que é influenciado pelos demais («they»), pelas multidões, ao invés de contar com as suas próprias potencialidades.
Distinguindo entre o ser autêntico e o inautêntico, o filósofo descreve este último como aquele que encara a morte como capaz de produzir um medo cobarde e sinal de insegurança, portanto, um tópico a ser evitado. A morte é evitada através daquilo a que Heidegger chama de «constant tranquilization about death», provocando com isso uma indiferença em relação à morte. Paradoxalmente, esta indiferença em relação à morte é uma atitude cobarde. A atitude corajosa e mais autêntica é a «courageous anxiety». Contudo, esta ansiedade não é um sinónimo de medo, mas sim uma ansiedade em relação à liberdade e às possibilidades que o «Nada» da morte levanta. Este estado de espírito permite uma atitude de desapaixonada liberdade em relação à morte. Para Heidegger a morte deve ser verdadeiramente aceite e encarada com naturalidade:
The falling everydayness of Dasein is acquainted with death’s certainty, and yet evades Being-certain. But in the light of what it evades, this very evasion attests phenomenally that death must be conceived as one’s ownmost possibility, non-relational, not to be outstripped, and – above all – certain (Heidegger, 1962: 302).
O filósofo não oferece uma esperança religiosa, nem tampouco insiste numa mórbida obsessão em relação à morte. Ao invés disso, uma ansiedade saudável permite uma positiva e corajosa tomada de consciência, a aceitação da morte e da finitude da nossa existência.
O mesmo acontece com Lovecraft. O autor americano olha a inevitabilidade da morte de frente, assume-a na sua ficção e na sua vasta correspondência pessoal, incorpora esse medo e essa angústia como algo central na sua vida e na de todos os seres humanos. Como Maria Antónia Lima refere em Terror na Literatura Norte-Americana, a propósito de Heidegger, a morte pode ser encarada como uma libertação de uma existência banal, distinguindo-se, assim, o ser autêntico, do inautêntico (cf. Lima, 2008: 77). Lovecraft irá insurgir-se contra esta maneira banal de viver e contra uma literatura que tentava retratar a banalidade da vida de uma forma realista.
É neste confronto perante o «Nada», algo inefável e paradoxal, que o sentimento de solidão e da inevitabilidade da morte é realçado. Também aqui poderemos estabelecer um paralelo entre o conceito de «Angst», desenvolvido por Kierkegaard e o conceito de «terror cósmico» de Lovecraft.
Em sentido lato, «Angst» pode significar um estado em que o homem se sente sufocado perante um mal que está iminente, que é inevitável e, pelo menos em parte, não foi ainda experimentado. Este conceito trabalhado pelo filósofo dinamarquês aproxima-se, na sua indefinição e envolvência, do cerne do terror em Lovecraft, mas o carácter mais interior desta emoção, atribuído pelo pensador escandinavo afasta o filósofo do escritor americano, uma vez que em Lovecraft esse terror, embora perpassando para o interior do indivíduo, provém do exterior.
Comum às noções de «Angst» e de «terror cósmico» é o seu carácter intangível, indefinido, ambas designando algo que não se consegue precisar, mas que é profundamente inquietante. Por outras palavras, «Angst» e «terror cósmico» poderão ser entendidos como medo do desconhecido. Como Régis Jolivet regista a propósito de Kierkegaard: «Devemos observar aqui que nada reforça tanto o sentimento da existência como a imaginação e a angústia. O homem, vivente e existente, prova-se muito mais no sofrimento do que na alegria (Jolivet, 1961: 43).» O filósofo também difere do escritor no sentido em que o primeiro irá orientar a sua filosofia para a sua interpretação do cristianismo, portanto, para uma forma de religião. No caso do escritor, a ausência de fé ou de orientação do seu pensamento para uma religião irá, neste aspecto, aproximá-lo mais de outros filósofos, tais como Friedrich Nietzsche.
O escritor americano irá transportar esta angústia individual, igualmente presente em tantas personagens de boa parte da ficção gótica, para toda a Humanidade. É a própria Humanidade que se encontra só na vastidão do Universo, um Universo destituído de sentido. Lovecraft não evita esse confronto e é nessa coragem de confrontar que também encontramos semelhanças com Nietzsche e a sua filosofia niilista, bem como com Schopenhauer, na concepção que ambos tinham de um Cosmos cego, amoral e sem um rumo definido. Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra, é talvez quem mais violentamente se insurja contra a religião e a intenção de uma teleologia capaz de amenizar uma angústia existencialista:
Foram os doentes e os moribundos que menosprezaram o corpo e a terra e inventaram as realidades celestes e as gotas do sangue redentor: mas até esses doces e lúgubres venenos os foram buscar ao corpo e à terra! Queriam fugir da sua miséria, e as estrelas pareciam-lhes demasiado longínquas. Então suspiraram: «Oh!, se houvesse caminhos celestes para alcançar outra existência e outra felicidade!» – Foi então que inventaram os seus artifícios e as suas sangrentas beberagens (Nietzsche, 2000: 47).
Lovecraft poderá ter sido, em certa medida, um Nietzsche literário, pois, na sua recusa da religião e da teleologia, assemelha-se ao que o filósofo advogava para o espírito: desembaraçar-se do peso milenar da religião.
Também a ideia do perpétuo devir encontra eco na mitologia lovecraftiana, como o demonstra este pequeno verso de The Call of Cthulhu: «That is not dead which can eternal lie/And with strange aeons even death may die» (Lovecraft, 1994: 81). Essa característica de eternidade coloca os «Old Ones» como os verdadeiros soberanos deste mundo, por ora adormecidos, mas que voltarão «quando as estrelas estiverem alinhadas». Em The Call of Cthulhu é possível ler:
They worshipped, so they said, the Great Old Ones who lived ages before there were any men, and who came to the young world out of the sky. These Old Ones were gone now, inside the earth and under the sea; but their dead bodies had told their secrets in dreams to the first man, who formed a cult which had never died. This was that cult, and the prisoners said it had always existed and always would exist, hidden in distant wastes and dark places all over the world until the time when the great priest Cthulhu, from his dark house in the mighty city of R’lyeh under the waters, should rise and bring the earth again beneath his sway. Some day he would call, when the stars were ready, and the secret cult would always be waiting to liberate him (Lovecraft, 1994: 78).
Para além de roubar a primazia habitual da Humanidade como peça central, esta concepção, à semelhança das concepções dos referidos filósofos, não se limita a um conceito moral simplesmente assente na ideia dicotómica de Bem/Mal. Os «Old Ones», assim como o próprio Universo, não são intrinsecamente malévolos. Estes poderão sê-lo apenas na perspectiva da Humanidade e não em absoluto. De facto, a aproximação com a filosofia de Nietzsche torna-se aqui mais evidente ao constatarmos que a ausência de valores absolutos postulada pelo filósofo, encontra eco na obra do escritor. Para Nietzsche, a ausência do absoluto estende-se até à própria Ciência, ao colocar em causa a fiabilidade dos sentidos com que o Homem apreende o Mundo, preocupação essa partilhada pelo autor americano. A apreciação do que quer que seja está dependente da avaliação. Tudo advém da vontade que o Homem possui para transformar o mundo em que vive de acordo com os seus interesses. Os conceitos de Bem e Mal, por exemplo, dependem da sua relação com os nossos interesses. Para o filósofo alemão, isto deve-se às características do ser humano, uma criatura que possui aquilo a que chama «Der Wille Zu Macht». A este respeito afirma:
Quereis primeiro criar um mundo tal que possais adorá-lo de joelhos; é a vossa última esperança, o vosso supremo êxtase. Os não-sábios, todavia, o povo, são semelhantes ao rio por onde avança um barquinho e no barco vão, solenes e disfarçados, os juízos de valor. Pusestes a vossa vontade e os vossos valores no rio do porvir; estas crenças do povo a respeito do bom e do mau revelam uma muito antiga vontade de poder. Fostes vós sábios insignes, que instalastes esses passageiros no barquinho, depois de os terdes enfeitado com adornos e nomes sumptuosos – fostes vós e a vossa vontade dominadora (Nietzsche, 2000: 138).
Desta forma, uma outra implicação reside no facto de não poder existir uma verdade objectiva imutável, ainda que se tente lcança-la exclusivamente pela Ciência, o que, por sua vez, implica que também não haja uma moral absoluta. Para Nietzsche, quer os cientistas, quer os moralistas procuram algo que é impossível alcançar, o absoluto e imutável, factos absolutamente objectivos no caso dos primeiros e morais absolutas e imutáveis no caso dos segundos. Apesar disso, como Mary Warnock, em Existentialism (1970), aponta, o filósofo alemão concedia que, apesar de os cientistas estarem errados na sua busca pelo Absoluto, os moralistas ainda se encontram mais distantes.
Para Nietzsche os conceitos de Bem e Mal não são inerentes a qualquer objecto e, numa perspectiva elitista, grande parte dos valores são os valores do povo e não do indivíduo. Os moralistas encontrarão paradigmas largamente aplicáveis à grande generalidade da nossa realidade, aliás são esses paradigmas morais que permitem às nossas sociedades funcionar. Aquilo que não podemos esperar é que esses paradigmas funcionem independentemente de qualquer condição e para sempre. Como o filósofo afirma: «Os criadores de valores foram primeiro povos, e só mais tarde indivíduos; na verdade, o indivíduo foi a última criatura a aparecer» (Nietzsche, 2000: 75).
A liberdade que esta negação da moralidade absoluta e inerente permite, pode cativar-nos, mas ao mesmo tempo pode aterrorizar-nos, tal como em Lovecraft a perspectiva de um Universo amoral e sem qualquer indício de teleologia nos cativa nas suas infinitas possibilidades e ausência de «amos» a quem dever obediência. Ao mesmo tempo, esta perspectiva assusta-nos, ao relembrar-nos da nossa própria insignificância face à vastidão e poderes que poderão ainda estar ocultos de nós.
Não deixa de ser paradoxal que este questionar de uma moralidade estabelecida, convencional e presente na cosmovisão do escritor em análise e na sua ficção, contraste com uma personalidade tão reconhecidamente conservadora, atraída até pelas convenções sociais do século XVIII, em Inglaterra. Esse apego poderá ter a ver com uma atitude romântica e saudosista do autor por um tempo de valores mais autênticos, muito diferentes da sua sociedade industrial, herdeira de um certo racionalismo sem imaginação do século XIX, logo, mais liberto desses valores ancestrais. São frequentes as vezes que Lovecraft advoga uma arte e um modo de vida assentes na tradição, nomeadamente nesta missiva dirigida ao seu amigo e escritor, Fritz Leiber:
Aquele que deseja criar deve viver no seio da paisagem que considera verdadeiramente sua, onde as suas raízes mergulham no passado. Mas a migração para as cidades e os progressos mecânicos arrancam a vida das pessoas à rotina natural santificada pelos actos e pensamentos das gerações sucessivas. As forças e símbolos familiares – as colinas, os bosques, as estações – interferem cada vez menos com a nossa vida quotidiana, tendo sido substituídos por horizontes em tijolo, por ruas sistematicamente varridas e por aquecimentos centrais, e os pequenos carreiros e lugares de antigamente morrem de inanição, à medida que os meios de comunicação transformam toda a paisagem numa só podridão estandardizada (Lovecraft, 1991: 20).
Semelhante apelo é feito pelo filósofo alemão, demonstrando um apego aos elementos mais primordiais da vida e que caíam em esquecimento. Através da figura de Zaratustra, proclama:
Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-te aturdido pelo barulho dos grandes homens e apoquentado pelo aguilhão dos pequenos. Os penedos e as florestas saberão calar-se, gravemente, na tua companhia. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de ampla ramagem, que escuta silenciosa, suspensa sobre o mar. Onde cessa a solidão começa a praça pública: e onde começa a praça pública começa também o ruído dos grandes actores e o zumbido das moscas venenosas (Nietzsche, 2004: 68).
O percurso de vida do escritor norte-americano parece ter-se coadunado com esta posição, uma vez que a vivência de Lovecraft em grandes centros, particularmente em Nova Iorque, foi traumática, reflectindo-se numa escrita mais violentamente crítica das minorias étnicas que já povoavam a grande metrópole. O regresso à «sua» Nova Inglaterra irá restabelecer um equilíbrio emocional no autor, o que resultaria num dos períodos mais fecundos da sua produção escrita.
Na concordância entre Lovecraft e Nietzsche no que à tradição e ao afastamento dos grandes palcos da Humanidade diz respeito, há simultaneamente, uma contradição aparente entre o apego de Lovecraft pela Ciência, o seu interesse pelas novas descobertas científicas e a sua profunda ligação à tradição e aos valores que a compõem, bem como aos devaneios da imaginação inerentes ao modo fantástico. Não seria de estranhar que fosse esta contradição que fizesse Lovecraft olhar para si mesmo como um «puritano em decadência». É também esse conservadorismo e a fé na Razão e na Ciência que, apesar de tudo conservava, que o distingue de Nietzsche. Com efeito, o filósofo germânico privilegiava os impulsos dionisíacos em detrimento da contenção e da razão apolínea, embora concedendo a necessidade de um relativo equilíbrio entre ambas as forças, residindo aí, na sua opinião, o segredo do sucesso da civilização grega na Antiguidade Clássica.
Não encontramos em Lovecraft uma defesa exacerbada dos impulsos mais obscuros da mente humana, mas encontramos um profundo desejo de transcender, através da imaginação, as amarras que prendiam o autor à sua difícil realidade, sendo a escrita capaz de produzir sentimentos no autor e no leitor, que se aproximam e, por vezes, se confundem com aqueles que a religião provoca. Também por estes motivos, não é por acaso que irá escolher o «weird tale», como seu veículo preferencial de expressão. É este o modo que melhor exprimirá o seu universo interior, as suas angústias e a sua cosmovisão. Não teremos problemas de autenticidade na sua escrita, pois a mesma é claramente um reflexo de si mesmo, do seu próprio «Eu». Lovecraft demonstra honestidade, não percepciona um mundo cor-de-rosa e, como tal, também não o reflecte na sua obra.
A autenticidade demonstrada liga-se directamente à perspectiva que o autor tem do «weird tale»: este deve abster-se de providenciar uma leitura moralizante, ou providenciar uma explicação dos acontecimentos que se enquadre na normalidade, tal como podemos encontrar em antecessores como Ann Radcliffe e Charles Brockden Brown.
Como já vimos, partindo do princípio de ausência de uma teleologia, para Lovecraft o homem está sozinho e completamente exposto às forças exteriores. Longe de uma liberdade de acção com um carácter positivo, essa mesma possibilidade surge como uma nuvem negra perante os protagonistas, ao percebermos que, não obstante todo o poder da Ciência e supremacia que a Humanidade julga possuir, as capacidades humanas são insignificantes perante a ameaça exterior.
Não poderemos deixar de estabelecer um paralelo entre a própria vida de Lovecraft e a sua obra. Vindo do ambiente seguro de uma família semi-aristocrática, que iria conhecer um lento e doloroso declínio económico, Lovecraft sentiu na pele a realidade de que as regras e princípios, que regiam uma vida protegida pelo nome e dinheiro, não se aplicavam no mundo competitivo e hostil ao qual foi lançado e para o qual não estava preparado. Não é de admirar que as suas personagens sejam quase sempre pacatos estudiosos da área das letras ou das ciências exactas, claramente evocando o próprio autor. A recorrência da ameaça exterior, na sua ficção, acaba por ser reflexo das frequentes ameaças de um mundo contra o qual não tinha as armas adequadas para lutar. Não será de admirar que escolhesse como referência estética, política e social o século XVIII inglês, embora esta também fosse uma visão romântica e idealizada dessa época.
Desta forma, podemos ver que, numa perspectiva existencialista, há uma preocupação com a autenticidade da escrita, existindo em Lovecraft uma verdadeira consciência do papel do escritor e da sua condição humana. Uma das suas originalidades reside no facto de que o processo de catarse, que normalmente surge associado à escrita e, particularmente, à escrita gótica, revela não tanto os recantos mais obscuros da mente humana, como é particularmente patente em Poe, mas sim a angústia e precaridade da existência humana face ao Universo indiferente ou hostil. Esse processo catártico poderá exercer aqui uma função de aceitação da condição humana, tal como ela é, insignificante, mesquinha e transitória, mas também mais verdadeira ao aceitarmo-la e tendo consciência da sua real natureza. Esta sua atitude, em relação à existência, seria mantida ao longo de toda a sua vida, inclusivamente nos seus últimos momentos. Numa sua carta, escrita em 1936, responde acerca do que faria se tivesse apenas uma hora de vida. O que nela declara viria a revelar-se profético:
As for the general idea of what one would do if certain of death in an hour – I fancy most persons in normal health tend to sentimentalise and romanticise a bit about it. For my part – as a realist beyond the age of theatricalism and naive beliefs – I feel quite certain that my own known last hour would be spent quite prosaically in writing instructions for the disposition of certain books, manuscripts, heirlooms, and other possessions. Such a task would – in view of the mental stress – take at least an hour – and it would be the most useful thing I could do before dropping off into oblivion. If I did finish ahead of time, I’d probably spend the residual minutes getting a last look at something closely associated with my earliest memories – a picture, a library table, an 1895 Farmer’s Almanack, a small music-box I used to play with at 2 ½, or some kindred symbol – completing a psychological circle in a spirit half of humour and half of whimsical sentimentality. Then – nothingness, as before Aug. 20, 1890 (Lovecraft, ed. Joshi, 2000b: 339).
Na sua preferência por não colocar o ser humano em nenhum lugar especial face a outros seres ou outras forças da natureza, Lovecraft partilha esta posição com um outro filósofo que profundamente marcou Friedrich Nietzsche. Trata-se de Arthur Schopenhauer. Na sua obra, The World as Will and Representation, o filósofo irá colocar o ser humano paralelamente a outros seres vivos em muitos aspectos da sua existência, mesmo naqueles que habitualmente consideramos como diferenciadores e que nos colocam num lugar central. Christopher Janaway, em Schopenhauer: A Very Short Introduction, afirma acerca deste aspecto em particular da sua filosofia:
So, despite superficial appearances, Schopenhauer does not simply wish to understand nature in anthropomorphic terms. Although he asks us to interpret the world using concepts applied first to ourselves, the notion of the will to life has the effect of demoting humanity from any special status separate from the rest of nature. First, in our bodies, the same «blind» force operates as throughout nature: we are organized to live and propagate life not by any conscious act of will. Secondly, there is a close continuity between even the conscious, purposive willing of human action and the life-preserving functions and instincts at work elsewhere. In our seeking of mates and providing for offspring, we are driven by the same instincts as other animals. And Schopenhauer sees the human capacities for perception, rationality and actions as an offshoot of the same wider principle which leads insects to build nests, feathers to grow, and cells to divide. In this respect, the will to life can seem quite a forward-looking notion. Another crucial feature is Schopenhauer’s steadfast opposition to anything approaching an external or divine purpose for nature. Even though it is «a single will» which expresses itself throughout the multiplicity of phenomena, this means only that all behaviour is of the same striving or goal-directed kind. All life-forms strive towards life; but there is no coordinated purpose to nature, rather the kind of purposefulness and conflict which are usually associated with Darwinism (Janaway, 2002:46).
Mais uma vez, realçamos a «despromoção» da espécie humana como centro de tudo e uma visão da nossa existência como dependente das mesmas condicionantes que afectam as restantes espécies. Existe também em comum a noção de que o principal impulso das nossas vidas reside, não numa intenção ou propósito divino já pré-estabelecido, mas de que este está contido nas miríades de possibilidades e conflitos que compõem uma visão darwinista do mundo. O fruto do acaso, o jogo das possibilidades, ocupa um lugar destacado na cosmovisão de H. P. Lovecraft, aproximando-o de autores mais contemporâneos como Paul Auster.
Extrapolando para a sua obra, sobretudo o ciclo compreendendo o «Cthulhu Mythos», não será desta forma, de estranhar que as ténues e temporárias «vitórias» dos protagonistas face aos adversários que ameaçam com a destruição da Humanidade sejam, em muitos casos, fruto do acaso e não tanto dos méritos e acções dos anti-heróis utilizados pelo escritor.
Numa perspectiva igualmente darwinista, o conflito de interesses entre seres como os «Old Ones» e a raça humana não será perspectivada como um conflito entre o Bem e o Mal, mas sim um conflito entre duas espécies, uma incomensuravelmente mais poderosa e adaptada do que a outra, sendo quase inevitável que a vitória reverta, mais cedo ou mais tarde, para a mais poderosa. A vitória dos «Old Ones» e a destruição da raça humana seria apenas o resultado do «survival of the fittest».
Uma vez mais, se recorrermos a Nietzsche, veremos que tal acontecimento não é, em sim mesmo, a vitória do Mal. Será apenas Mal na perspectiva avaliadora de quem perde, neste caso concreto, a Humanidade. Esta perspectiva relativista e não absoluta é, pois, partilhada por Lovecraft e constitui, como temos visto, uma das suas características mais interessantes e originais. Pontos de contacto adicionais entre o escritor e Schopenhauer residem ainda no profundo materialismo com que ambos concebiam a percepção da realidade.
Para Schopenhauer, conceitos espirituais não fazem qualquer sentido, nestas explicações. A apreensão da realidade deve-se ao órgão no interior do crânio a que chamamos cérebro. A materialidade deste órgão não pode ser separada do seu conceito de «will to live», essa força que se sobrepõe a todas as outras.
A ausência de crença na espiritualidade estende-se, na obra do escritor norte-americano, ao carácter material das entidades que ameaçam a Humanidade, embora, lembremo-nos, estas sejam sempre fruto da sua imaginação, pelo que a materialidade destas apenas faça sentido na lógica interna da sua ficção. No seguimento desta lógica interna, tal como correntes filosóficas mais próximas do século XX, as quais rejeitam a espiritualidade, também a obra lovecraftiana irá caracterizar-se pelo seu carácter material.
Não obstante a estranheza e o carácter totalmente alienígena que exibem, todos estes seres são compostos por átomos e são passíveis de uma explicação assente em leis físicas, leis essas que Lovecraft reconhece, com a humildade que faz falta à Ciência, não serem ainda totalmente ou até mesmo incipientemente conhecidas. Talvez até nunca as venhamos a conhecer, pois as limitações do cérebro humano a isso poderão obstar.
Outros pontos de aproximação entre o filósofo e o escritor dizem igualmente respeito à sua atitude menos positiva em relação à existência humana. No caso do filósofo, diversos autores consideram-no um pessimista, já no caso de Lovecraft, ele próprio se considera um indiferentista. Seja qual for o caso, quer na obra filosófica do primeiro, quer na obra literária do segundo, o sofrimento ocupa um lugar de primazia, embora o peso do sofrimento pareça ser maior em Schopenhauer do que em Lovecraft. O filósofo chega a afirmar que a não-existência será preferível à existência: «In fact, nothing else can be stated as the aim of our existence except the knowledge that it would be better for us not to exist» (Janaway, 2002: 110). Schopenhauer defende uma total repressão dos desejos, da busca do prazer, do próprio impulso sexual, que considera dominante, pois os mesmos são encarados como fontes incessantes de sofrimento e dor.
Uma tal concepção, aparentemente intolerável, é defendida por Schopenhauer na perspectiva de que cortando todos os laços que nos ligam ao mundo, todos menos aquele que nos liga à própria existência, será possível uma existência sem dor nem sofrimento. Nessa restrição do sofrimento, a busca pelo conhecimento é também de evitar, pois é também, ela própria, um desejo. Dado que Schopenhauer considera cada desejo como um elo numa cadeia interminável de insatisfação, a resposta a uma pergunta ou questão científica só levará a mais perguntas, ou seja, a mais desejos. Cada resposta, cada anseio por conhecimento levará inevitavelmente a mais sofrimento.
É interessante verificar as semelhanças que esta lógica possui em comum com os acontecimentos habituais na Literatura Gótica, particularmente com aquilo que poderíamos chamar a «busca de conhecimento proibido». Não precisaremos de muitos exemplos para recordarmos o que acontece às personagens lovecraftianas e aquelas pertencentes ao Gótico em geral, quando estas pretendem conhecimentos para além daquilo que deviam. Um exemplo que poderemos considerar clássico dentre os contos de Lovecraft é o sofrimento obtido por todos aqueles que buscam conhecimento através do Necronomicon.
No que toca às formas para evitar o sofrimento, o filósofo considera que o caminho da estética, apesar de ser uma forma de serena e tranquilamente se contemplar o Belo, não é uma forma de chegar à anulação da vontade. Quer Lovecraft, quer o filósofo partilhavam da ideia de que a Arte é mitigadora de muito do sofrimento existencial, podendo até conferir um sentido para a vida. Schopenhauer admite que a contemplação estética pode subtrair o Homem à cadeia contínua das necessidades e desejos. Contudo, mesmo esta via não é absolutamente satisfatória, pois tal como uma esmola que alivia o sofrimento de um mendigo, esta apenas adia e prolonga o seu sofrimento para o dia seguinte.
Para Schopenhauer todas as artes são libertadoras, derivando o seu prazer da cessação da dor de necessidade que oferecem. Contudo, a arte, tal como o ópio, não redime o Homem da vida, fá-lo apenas por breves instantes, não sendo um caminho para a libertação da vida que o filósofo defendia. Muito resumidamente, Schopenhauer aponta como forma de alcançar essa negação uma vida em que os valores da justiça e da filantropia se elevam em relação aos outros. Desta forma, os impulsos e a vontade deixam de ser o mais importante. Outra forma de alcançar esse estado de libertação é bastante mais árdua. Essa segunda via consiste numa vida permeada de constante sofrimento, que fará quebrar a vontade de viver e os desejos renunciados, alcançando uma paz imperturbável.
Como referido atrás, Lovecraft não se afirma como um pessimista, mas sim como um indiferentista, sendo este um factor diferenciador nas suas concepções de existência. Não fosse Lovecraft um artista e não ocuparia a estética um lugar importante no seu pensamento e modo de se relacionar com o mundo à sua volta. O peso da estética acaba mesmo por constituir um elemento fundamental da sua ética:
About my own attitude toward ethics – I thought I made it plain that I object only to (a) grotesquely disproportionate indignations and enthusiasms, (b) illogical extremes involving areductio ad absurdum, and (c) the nonsensical notion that «right» and «wrong» involve any principles more mystical and universal than those of immediate expediency (with the individual’s comfort as a criterion) on the one hand, and those of aesthetic harmony and symmetry (with the individual’s emotional-imaginative pleasure as a criterion) on the other hand. I believe I was careful to specify that I do not advocate vice and crime, but that on the other hand I have a marked distaste for immoral and unlawful acts which contravene the harmonious traditions and standards of beautiful living developed by a culture during its long history. This, however, is not ethics but aestehtics – a distinction which you are almost alone in considering negligible (Lovecraft, ed. Joshi, 2000b: 226).
Prosseguindo nas diferenças e semelhanças entre Schopenhauer e Lovecraft, essenciais no caso do escritor para a compreensão da sua noção de terror cósmico, vejamos o que os separa no facto de o primeiro, ser um pessimista, e o segundo, um indiferentista. Interessantemente, o facto de, para Lovecraft, o Universo ser governado essencialmente por probabilidades, acaso e leis físicas que se aplicam na generalidade da realidade por nós percebida, faz com que o sofrimento seja menos central no seu pensamento:
The indifferentist laughs as much at irresponsible calamity-howlers and temperamental melancholiacs as he does at smirking idealists and unctuous woodrowilsonians. For example – nothing makes me more amused than the hypersensitive people who consider life as essentially an agonyinstead of merely a cursed bore, punctuated by occasional agony and still rarer pleasure. Life is rather depressing because pain and ennui outweigh pleasure; but the pleasure exists, none the less, and can be enjoyed now and then while it lasts. And too – many can build up a crustacean insensitiveness against the subtler forms of pain, so that many lucky individuals have their pain-quota measurably reduced. Uniform melancholy is as illogical as uniform cheer (Idem: 230-231).
Não seria possível terminar este breve capítulo referente ao existencialismo e à possibilidade de detectar os seus pontos de contacto na obra lovecraftiana, sem falarmos de um dos seus expoentes, o filósofo que assumiu inteiramente o termo «existencialismo», marcando toda uma geração no século XX.
Trata-se do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, nome que nos dispensa de referências ao seu percurso de vida. Diremos, contudo, que Lovecraft e Sartre nunca se terão cruzado, biográfica ou literariamente, apesar da avidez e amplitude de leitura que Sartre possuía. Não obstante esse facto, o conjunto de relações possíveis de estabelecer entre o pensamento de Sartre e a escrita de Lovecraft afigura-se-nos suficiente para tentarmos estabelecer algumas ligações entre uma linha de pensamento filosófico fundamental e emblemática do século XX, particularmente para as gerações herdeiras da Primeira e Segunda Guerras Mundiais e para determinadas concepções professadas pelo escritor americano.
As mesmas poderão ser consideradas sintomáticas de uma era que fez coincidir de maneira aguda o descrédito na religião, os avanços na Ciência e os dois maiores conflitos bélicos na História da Humanidade. Tudo isto justifica a propensão para perceber a vida como algo de profundamente absurdo. O existencialismo, consolidado por Sartre, acaba, de facto, por constituir uma corrente filosófica profundamente ligada a um clima cultural que se caracterizava pela negação de qualquer optimismo ainda oriundo do Iluminismo e da sua fé nos valores absolutos da Razão. Havia até então uma fé mais generalizada num princípio infinito que regeria o Mundo e o próprio Homem, garantindo um progresso e sucesso infalíveis da nossa civilização. O próprio Mundo era, assim por dizer, posto à nossa disposição para que livre, e irresponsavelmente, nos servíssemos dele. Essas noções não sobreviveriam às convulsões do século XX, esmagadas na brutalidade dos bombardeamentos e enterradas na lama das trincheiras da Primeira Grande Guerra. Como temos vindo a verificar ao longo deste capítulo, o existencialismo apoia-se em grande medida na consideração do Homem como um ser finito, uma criatura limitada nas suas capacidades, e lançado para um mundo indiferente e até hostil.
O Homem, assim sozinho, terá de, contra todas as probabilidades, tentar manter uma luta incessante em situações, que, não obstante todo o seu empenho, poderão levá-lo ao fracasso. Nem só em Lovecraft, que pareceu antecipar futuras sensibilidades existencialistas de percepcionar o mundo, podemos pressentir hipóteses de ligação ao existencialismo. É conhecido o vasto número de obras literárias, onde resultam evidentes temas ligados a esta corrente filosófica. Na lista dos seus autores figuram nomes de primeira instância, como Dostoiévski, Camus ou Kafka, entre outros, que sempre deram atenção a temáticas onde a expressão da condição humana ficou profundamente gravada.
De entre os vários temas recorrentes nessas obras, destacam-se: a liberdade e a sua perda; a responsabilidade do Homem pelas suas acções; a desumanização através da insignificância e da banalidade quotidiana; uma existência ameaçada permanentemente sob o peso de uma condenação iminente e de uma ameaça incerta e desconhecida, embora inevitável.
Descrito desta forma, são bastante evidentes as semelhanças com o terror cósmico lovecraftiano, embora, no caso particular de Kafka, essa «ominosidade» se abata de uma forma mais evidente sobre o indivíduo e seja expressa através de uma forma literária menos directamente conotada com o género gótico.
O tema da ambiguidade do Bem e do Mal, tão presente em Lovecraft, está, igualmente, presente em obras existencialistas, das quais Pour Une Morale de L’Ambiguité (1947), de Simone de Beauvoir, constitui um exemplo. Todas estas temáticas seriam ainda mais aprofundadas após a Segunda Grande Guerra (a qual Lovecraft, felizmente, não chegaria a conhecer). Após este conflito, o existencialismo viria a constituir um fenómeno heterogéneo de protesto contra os valores tradicionais da sociedade. Poderemos, com efeito, chamar-lhe um «fenómeno heterogéneo» na medida em que, sob o mesmo nome, cresceram diversas correntes que divergiram umas das outras, embora mediante o esforço de Sartre, se tenha procedido a uma reconstrução filosófica e a uma revisão dos instrumentos conceptuais.
Em relação às correntes divergentes, a obra História da Filosofia, de Nicola Abbagnano, refere o seguinte:
O existencialismo desenvolveu-se como uma metafísica ontológica, por um lado, como espiritualismo radical, por outro, e ainda como forma de empirismo igualmente radical para o qual a experiência, entendida como existência, perdeu o seu carácter de inclusividade total e se transformou em abertura para o Mundo. Em algumas destas tendências pode-se encontrar, mais ou menos total, a uma situação pré-existencialista e a uma recuperação de teses românticas. Noutras, pode-se notar a evolução para uma filosofia que projecta, sem optimismo e sem desespero, uma forma mais racional da existência humana (Abbagnano, 2001: 47-48).
Poderemos dizer que, no caso de Lovecraft, a sua obra e o seu próprio pensamento se inclinam fortemente para esta última perspectiva. Na sua obra, perante acontecimentos que os protagonistas são incapazes de controlar, ou em que as suas possibilidades são limitadas, o optimismo não tem lugar, ao mesmo tempo que podemos assistir a uma aceitação das limitações humanas face a acontecimentos e entidades que nos ultrapassam largamente, possibilitando, apesar de tudo, a capacidade para continuar a viver, embora esvaziados de grande parte das certezas e aspirações erradamente fomentadas.
Voltando um pouco atrás, mais concretamente à citação de Lovecraft, na qual este refere a importância dos costumes e tradições e no modo como estes se relacionam com os seus conceitos de estética, poderemos afirmar que, do ponto de vista de Sartre, ao aceitar o valor da tradição, Lovecraft estaria a incorrer naquilo a que o filósofo chama um processo de «má-fé», deixando que a mesma limitasse, de alguma forma, todas as possibilidades que se lhe apresentam. Parece haver aqui uma aparente contradição entre a concepção cosmológica de Lovecraft, a qual despe a vida humana de qualquer significado, retirando o Homem de qualquer lugar central face ao Universo, e entre o valor que confere à tradição e aos costumes. Para Sartre, todos os actos e acções, incluindo tradições e costumes, detêm o mesmo valor, são equivalentes. Não há um valor intrínseco numa acção em particular que a leve a ser melhor ou pior. A valorização é feita através da escolha do indivíduo, que, ao efectuar a escolha, irá valorizá-la. Por «má-fé» poderemos igualmente entender o abraçar de uma religião ou a fé na Ciência como forma de conferir sentido à vida. Sartre afirma, em O Existencialismo é um Humanismo:
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer- se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem não é apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele se faz (Sartre, 1962: 182).
Lovecraft achava a ideia de religião ridícula, mas olhava para a Ciência como uma forma muito mais plausível de explicar a nossa existência. Perante as quase ilimitadas e, por isso, assustadoras possibilidades de escolha nas nossas vidas, Sartre defende que devemos ter uma visão clara e sermos conscientes ao fazê-las, aceitando depois o que daí resultar. Nos contos de Lovecraft, os protagonistas muitas vezes confrontam-se com situações em que as possibilidades de escolha não são assim tão grandes, constituindo uma forma de sublinhar a insignificância e impotência humana, mas existem escolhas que ainda podem ser feitas, assemelhando- se às reduzidas alternativas que um prisioneiro ou alguém com uma doença grave tem.
Apesar da limitação de possibilidades e de escolhas, os protagonistas das obras do escritor norte-americano resignam-se às consequências resultantes das suas escolhas, demonstrando nesse estoicismo uma certa autenticidade. Esta atitude, na literatura, faz eco com o próprio percurso de vida de Lovecraft. As suas personagens são, em grande medida, similares às personagens das obras de Sartre. Nestas, um assassino, como no conto Erostratus, compilado em Le Mur (1939), ou um simples historiador como em La Nausée (1938), por exemplo, são muitas vezes representadas como heróis trágicos apanhados numa situação da qual não sabem como escapar. As mesmas percebem o que está a acontecer e são responsáveis pelas suas acções, mas sentem-se sem alternativas, sem outro caminho senão aquele que estão a trilhar. Não podemos deixar de notar as semelhanças evidentes com os dilemas e circunstâncias colocados às personagens da ficção gótica. Nos seus percursos as personagens conseguem algo que poderíamos, de certa forma, considerar existencialista, o confronto com a autenticidade resultante do «rasgar de véus», o contacto com a verdadeira realidade, com a verdadeira dimensão das suas existências, libertados e, por isso aterrorizados, pela consciência das ilusões quotidianas com as quais prosseguiriam uma existência banal.
Concluiremos este capítulo com a convicção de que existe uma verdadeira dimensão existencialista na obra lovecraftiana, não havendo por parte do autor uma tentativa de escamotear a dimensão trágica da existência, nem pretendendo adocicá-la através da convicção de uma qualquer centralidade da existência humana. Lovecraft toma como missão a incorporação destes princípios na sua ficção, defendendo mesmo uma primazia destes na «weird fiction». O escritor americano dá conta, de uma forma resumida, de alguns desses princípios fundamentais numa carta pessoal ao primeiro editor da Weird Tales, Edwin Baird, criticando a convencionalidade da maior parte dos autores dedicados ao Gótico:
Popular authors do not and apparently cannot appreciate the fact that true art is obtainable only by rejecting normality and conventionality in toto, and approaching a theme purged utterly of any usual or preconceived point of view. (…) Good and evil, teleological illusion, sugary sentiment, anthropocentric psychology – the usual superficial stock in trade, and all shot through with the eternal and inescapable commonplace. Take a werewolf story, for instance – whoever wrote a story from the point of view of the wolf, and sympathizing strongly with the devil to whom he has sold himself? Whoever wrote a story from the point of view that man is a blemish on the cosmos, who ought to be eradicated? (Lovecraft, ed. Joshi, 2000b: 121).
Assumindo uma posição ainda mais extrema do que em outras ocasiões, Lovecraft defende uma atitude em relação ao escritor de «weird fiction», que se assemelha a algumas posições contemporâneas perante a vida, capazes de serem traçadas até uma visão existencialista da mesma:
Only a cynic can create horror – for behind every masterpiece of the sort must reside a driving daemonic force that despises the human race and its illusions, and longs to pull them to pieces and mock them (idem: 122).
(1) In http://www.theatlantic.com/unbound/poetry/emilyd/edletter.htm, consultado a 23 de Fevereiro de 2008.
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 7, publicada em fevereiro de 2009.