William Gibson, Um apocalipse doce e lento – Por João Barreiros
"O Céu sobre o porto tinha a cor de um ecrã de TV ligado para um canal sem emissão."
O seguinte artigo pode ser lido na Revista Bang! 25
WILLIAM GIBSON
Nasceu nos EUA e é um dos autores mais visionários da literatura contemporânea. Criador do conceito cyberpunk no seu conto Burning Chrome, posteriormente popularizou-o na sua obra prima: Neuromante.
Prevendo o ciberespaço, Gibson criou uma iconografia para a era da informação antes do nascimento da própria internet. Também lhe é creditado a previsão dos reality shows e das bases conceituais para os ambientes de realidade virtual.
A imaginação de Gibson tem sido uma influência em autores de ficção científica, design, cibercultura e tecnologia, sendo o expoente máximo dessa influência a trilogia Matriz das Wachowski.
Prémios: Nebula, Hugo, Philip K. Dick, Ditmar, Seiun, Prix Aurora.
Em 1984, há um milhão de anos atrás, o universo era analógico, não digital. Os céus não eram negros como mostram as televisões de hoje em dia, mas cinzentos, a brilhar sob a poalha dos pixéis desfeitos. Vivemos agora num outro mundo, onde o avanço tecnológico superou as ciberconsolas e os implantes neuronais de Cage, o super-hacker. Porém, com esta frase retirada da primeira página do romance Neuromante, William Gibson iniciou uma nova era e reformatou o futuro. Graças a ele e ao parceiro Bruce Sterling, o “movimento ciberpunk” explodiu-nos nas mãos. Estes céus pixelizados, as neuroconsolas e os óculos de Realidade Aumentada podem parecer banais aos leitores de hoje. Mas lembrem-se que Gibson escreveu o Neuromante sem a ajuda de processadores de texto, sem disquetes frágeis e moles, sem as flash-pens que se lhes seguiram, onde poderiam ser guardados para sempre e mais um dia, dezenas e dezenas de romances como este. No seu quartinho solitário, numa máquina de escrever eléctrica, Gibson reinventou o futuro, tecla a tecla. Reinventou a moda, a música, a ilustração, a BD, o cinema, os cortes de cabelo justos ou espigados, os casacos de couro, as máscaras faciais, os óculos espelhados. Com ele, o amanhã chegou mas ninguém se deu conta.

Cerca de um ano depois consegui que fosse traduzido para português o primeiro volume desta trilogia memorável. Em boa verdade, contra tudo e contra todos. O tradutor deu voltas sobre voltas aflito com os neologismos, o editor chorou lágrimas de crocodilo ao descobrir que o seu filho de oito anos não entendia nada do livro, nas livrarias este foi colocado (por ser alegadamente uma obra de FC) na secção de livros infantis, ou, espantem-se, nas prateleiras dos livros informáticos. Em colóquios com outros editores que também publicavam obras do género, estes olhavam para a cópia do Neuromante com olhos piscos, um tanto ou quanto vítreos, numa vaga expressão de desprezo, porque o Gibson era um autor surgido do nada, não pertencia a nenhuma praia, impossível compará-lo com um Heinlein, Clarke ou Asimov. Estávamos assim perante o paradoxo do costume. Não se devem publicar autores desconhecidos porque o público leitor não os compra, e continuam desconhecidos precisamente porque ninguém os quis publicar.
Enfim.
Para que se saiba, votado ao ostracismo dos bem pensantes, o Neuromante permaneceu solitário, perdido nas estantes poeirentas das livrarias que ainda ousavam guardá-lo, ignorado de todos, os poucos jornais que o referiram insistiam na total incompreensibilidade dos conteúdos, nenhum dos críticos, assolados de orgasmos múltiplos pela leitura do romance do Sagan, conseguiu aceder à suspensão da descrença. Se a estranheza costuma aos poucos entranhar-se, neste caso custou que se fartou. Ninguém conseguia digerir este mundo futuro. Computadores pessoais do tamanho de uma maleta de mão? Acesso a uma rede de informações tão vasta quanto o mundo inteiro? Tecnologia ao alcance das massas? Videoconferências em realidade aumentada no topo virtual da Sagrada Família entre participantes espalhados pelas sete partidas do mundo? Caças plastomoldáveis? Drones de ataque?
Membros cibernéticos? Corpos amplificados por ligas de titânio? Nunca, impossível, no way, José.
Por causa disso, assustado pelos clamores passadistas, o editor nunca quis publicar os restantes dois volumes da trilogia, essenciais à compreensão global da obra. Count Zero e Monalisa Overdrive ficaram condenados aos limbos da indiferença.
Muitos anos antes, no livro Choque do Futuro, Alvin Toffler insistia que a FC era a solução ideal para conseguirmos surfar a onda de mudança. Porque o futuro vem aí, é inevitável, feroz como uma locomotiva que ninguém vai conseguir travar. Gibson trouxe esse futuro até nós, tão súbito como uma bofetada de mão aberta. Abriu portas que hoje parecem retro ou clichés. Um futuro que chegou mesmo a ultrapassá-lo, como foi o caso da pixelização dos ecrãs de TV.
Mais tímidos foram os leitores desses anos oitenta que não quiseram abrir portas. Esta atitude comodista foi fatal, tanto para uns como para outros. A indiferença perante uma obra como Neuromante fez terminar a colecção que eu então dirigia. Ajudou a criar os nostálgicos info-excluídos, aqueles que preferiam passar fins-de-semana numa quinta sem electricidade, a dedilhar
guitarras à luz das estrelas mortas, incapazes de programar um aparelho de vídeo.
Lembro-me de que, por essa época, colegas professores clamavam que nunca, nunca na vida, iriam comprar essa abominação nascente que era o computador pessoal. Clamaram, esbracejaram, e acabaram por ser afogados no tsunami da mudança.
E Gibson, o que fez entretanto?
Continuou a escrever, claro, servindo-se de processadores de texto cada vez mais complexos.
The Peripheral é a sua obra mais recente. Desenganem-se aqueles que pensam que ele é já um fenómeno passé. Se Gibson inventou o ciberespaço, agora mostra-nos algo bem mais terrível: o Apocalipse Lento.

Esqueçam as guerras atómicas, os impactos meteóricos, as invasões alienígenas. Desta feita, o fim provável da espécie humana avança devagar, devagarinho. O aquecimento global provoca alterações climáticas. Zonas do nosso planeta tornam-se inviáveis. Migrações de gente esfaimada, vindas do terceiro mundo, invadem os países mais industrializados, eles próprios a braços com o desemprego, a poluição, as crises económicas e o decréscimo constante de uma população produtiva. Vive-se mais a braços com a demência senil. O fim da camada protectora de ozono provoca cancros de pele, morte progressiva da biosfera, mutações virais para as quais já não existem antibióticos. Não há como travar a extinção global do antropoceno.
A não ser… Bom, pensem um bocado, engulam em seco pois vem aí o horror. Quando há desgraças, quem sobrevive?
Os Oligarcas, claro. Aqueles que podem pagar tratamentos,fabricar implantes, produzir antivirais mais eficazes, gerar crianças mais saudáveis, fugir às pequenas grandes guerras, em ilhas isoladas, em torres urbanas defendidas pela alta tecnologia. E os pobres? E os vencidos da vida? Nada mais simples: que morram todos, porque já não há lugar para eles. O gene egoísta triunfa, enfim. Os ricos sobrevivem no interior das suas fortalezas inexpugnáveis. O resto da população do planeta está condenada à
doce extinção para a qual não existem bons sentimentos. Que morram, devagar. Aos milhões de milhões. Durante anos e anos no tal Apocalipse Lento. Agora o mundo é dos ricos. Apenas vinte por cento da população global.
O fim do antropoceno provocou um imenso abismo de silêncio entre o mundo de hoje e o mundo que vai nascer entre o lixo, os dejectos e as cinzas do mundo anterior. A tecnologia salva. Mas não pode salvar todos.
Num futuro próximo, numa América empobrecida, Flynne Fisher vive numa quintarola arruinada com um irmão que sofre de stress pós-traumático depois de ter sido dispensado de uma dessas micro-guerras cibernéticas nas zonas islâmicas. Burton sente a falta dos implantes dérmicos que o transformaram num super-homem. Por isso, sonha pilotar drones de ataque em guerras simuladas. Flynne, essa, vive de expedientes, servindo-se de tecnologias beta para testar jogos virtuais ainda em fase
experimental. Até que um belo dia lhe apresentam os planos para uma impressora 3D e um capacete multi-sensorial para participar num alegado jogo de combate ultrarrealista. Tudo bem, dinheiro em caixa, vamos a isso. Burton pede-lhe ajuda para participar num desses jogos e servir de vigiano perímetro atmosférico de uma torre imensa. De um momento para o outro, Flynne está a pilotar um drone em torno de uma dessas mega-estruturas verticais. Eis uma cidade em ruínas composta de arranha-céus assentes sobre avenidas cobertas de lixo e escórias. E é então que, numa varanda, quase no topo de uma torre, Flynne vê uma mulher a ser assassinada. Que tem isto a ver com o jogo? Qual o sentido de tudo isto? Porque é que a impressora começa de súbito a digitar planos para o fabrico de armas hi-tec? Que mensagens são essas que lhe chegam, primeiro impressas e depois vocais, a insistir que ela conte tudo o que viu? Porque é que de súbito alguém a quer matar?
E se esse jogo afinal não for um jogo? E se a consola estiver ligada ao futuro, através de um túnel quântico, anos e anos depois do Apocalipse que se aproxima? Flynne foi testemunha de um crime que ainda não aconteceu. Algures, nesse cruel futuro dos imensamente ricos, há mega-corporações em guerra. Chefes de empresas matam-se com alegria para alcançarem os direitos sucessórios. Flynne viu o que não devia ver. Viu o futuro e o futuro é todo ele um crime, como diria o Cohen. Felizmente, não há nada físico que possa passar através do buraco quântico. Apenas informação. A nossa hacker está em vias de ficar muito rica ou ser cadáver. Rica porque não se esqueçam de que no futuro se conhecem todas as senhas das lotarias, os números vencedores dos euromilhões, os resultados das corridas de cavalos e dos campeonatos de futebol. Essas informações podem ser devolvidas ao passado. Sem custos de maior. É possível corromper o que resta da economia dos EUA para calar a boca à Flynne e ao irmão.
Mas também podemos controlar as contas bancárias de toda a população e contratar comandos assassinos para calar de vez uma testemunha incómoda. Se uma das corporações tem a tecnologia dos buracos quânticos, também pode haver outras
com o mesmo tipo de informações. Iniciou-se o combate que vai dar cabo do mundo, começando pela economia e crash dos bancos. O Apocalipse Lento começou, devagar, devagar. Entretanto, Flynne e Burton vão receber uma daquelas propostas impossíveis de recusar. Como recompensa, podem visitar o futuro por procuração, graças à ajuda dos periféricos. Viver a vida
que, de outro modo nunca poderiam ter.
The Peripheral de William Gibson baseia-se nesta proposta genial. É uma pequena obra-prima capaz de saudar em glória o regresso de William Gibson às lides da FC pura e dura. Não poderia estar mais feliz.
E embora eu tivesse achado o final do livro demasiado rápido (queria mais, mais, mais), imaginem o meu entusiasmo ao saber que sim, que vai haver outro livro passado no mesmo universo a ser publicado lá fora ainda este ano: Agency, onde os Oligarcas futuros controlam as eleições de Donald Trump, num passado alternativo onde Hillary Clinton ganhou as presidenciais.
Mal posso esperar… BANG!
João Barreiros
Licenciado em filosofia e professor do ensino Secundário, é tradutor, autor e ( até já foi) editor de ficção científica. Os seus livros saíram com as chancelas da Caminho, Livros de Areia, Presença, Saída de Emergência e Gailivro. Em Espanha foi publicado pela Bibliopolis.