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O Sonho de Brahm

por João Seixas


Este texto de João Seixas apareceu como prefácio à edição especial da obra-prima de Dan Simmons: A Canção de Kali


 

«Alguns lugares são demasiado malignos para permitirmos que existam. Algumas cidades são demasiado perversas para que soframos a sua existência

 

É com estas palavras que começa a narrativa de A Canção de Kali, e se as reproduzo aqui é para permitir ao leitor, espicaçado pela curiosidade, saltar as páginas que se seguem e mergulhar imediatamente no livro propriamente dito. Talvez depois de ler este primeiro romance de Dan Simmons, publicado originalmente há quase um quarto de século (cumprirá vinte e cinco anos em 2010), o leitor sinta a curiosidade de ler esta breve introdução. Ou talvez não. Aqui entre nós que ninguém nos lê, todos os prefácios são inúteis; meros exercícios de vaidade de quem os escreve, nada podem acrescentar ao livro que introduzem, pois este deve forçosamente valer‑se a si mesmo. São assim os grandes livros: dispensam introduções, notas críticas, comentários, interpretações.

Por isso leitor, vá, salte estas páginas e explore o miasma pestilento da Calcutá de 1979 que Simmons nos descreve com exemplar precisão.

E só depois, se lhe apetecer, se lhe restar fôlego para tal, se Simmons o deixar com vontade de encarar uma vez mais o seu semelhante, volte aqui e partilhe comigo o impacto que este livro vai ter na sua forma de ver o mundo. Vá… eu espero, e não levo a mal se preferir fechar o volume e enterrá‑lo na terceira fiada de livros da sua estante para não mais o voltar a ver. A sério, avance, é um mundo inteiro que tem para explorar.

Ah, sempre voltou. Mais pálido, com a respiração alterada, incapaz de explicar como pôde este livro tocá‑lo de forma tão íntima, tão perturbadora. Não se preocupe. Todos nós já passamos por isso quando o lemos pela primeira vez. E acredite quando lhe digo que é apenas a primeira vez que lê este livro. Porque haverá outras. Oh, sim, muitas outras. Até parece mentira que A Canção de Kali possa ser o primeiro romance que Dan Simmons escreveu. É certo que antes dele existiu um conto publicado na defunta revista The Twilight Zone Magazine (1981‑1989), vencedor do primeiro prémio anual que a revista organizou, tendo como júri Peter Straub, Robert Bloch e Richard Matheson, todos eles gigantes da literatura de horror. O conto chamava‑se The River Stix Runs Upstream (1982), e foi descoberto por Harlan Ellison quando Simmons participou no «Writer’s Conference in the Rockies», um curso de escrita criativa da Colorado Mountain College, realizado no Verão de 1981. E um par de noveletas, publicadas na OMNI [«Eyes I Dare Not Meet in Dreams» (1982) e «Carrion Comfort» (1983)] e um conto na Isaac Asimov’s Science Fiction MagazineRemembering Siri», 1983). Mas só isso. Pouco mais de 70.000 palavras antes de assinar a obra que foi o primeiro romance de um estreante a vencer o prestigiado e prestigioso World Fantasy Award. E, no entanto, tal como sucedeu com «The River Stix Runs Upstream», que levou Ellison a sentenciar que «faça o que fizer, Simmons, você é um escritor; mesmo que não escreva nem mais uma palavra, você é um escritor», A Canção de Kali foi recebida com paroxismos de entusiasmo por parte da crítica e dos profissionais da escrita, e com alguma indiferença pelo público leitor. Mais ou menos o que viria a suceder com algumas das suas obras posteriores como Hyperion (1989, Prémio Hugo), Carrion Comfort (1989, Bram Stocker Award e British Fantasy Society Award), The Crook Factory (1999), ou The Terror (2007), todas elas obras que subvertem as expectativas condensadas na gramática muito própria da literatura de género. Porque é importante dizê‑lo desde já, Dan Simmons é exímio no uso da linguagem, da narrativa e da H/história, das quais se serve para rasgar a capa de aparências que oculta o mundo real.

Que oculta o mundo real. Fá‑lo estremecer, não é, caro leitor? Evoca‑lhe recordações do livro que acabou de ler, do livro que arrancou com tal força a derme que mascara a realidade que o obrigou a desviar o olhar da carne viva, em sangue, do mundo tal como ele é.

Mas é para isso que serve a literatura de horror: para arrancar a máscara do falso, «para descascar a camada de falsidade, da falsidade da nossa compreensão das coisas, até chegarmos a uma verdadeira compreensão do mundo, que, nas narrativas de horror, não é transcendental», para pedir emprestada a gramática de Clute.

Porque, caro leitor, A Canção de Kali é, apesar de tudo, uma narrativa de horror; mas uma narrativa que transcende os tropos do género, que desafia as expectativas dos leitores, que enterra os dedos bem fundo sob os lábios da ferida e força, uma e outra vez, o rasgar da carne… até que a matéria de que as coisas são realmente feitas escorre juntamente com o pus e a linfa e todas as outras porcarias que nos obrigam a desviar o olhar. Que são parte da máscara. Ah, sim, também aí Simmons estava à nossa frente. Ele, Stephen King, Peter Straub, George R.R. Martin, Robert McCammon, todos aqueles que compreenderam antes dos outros, até antes de Clute, que se aproximava o momento em que «o gesto paradigmático não é a pré‑identificação das narrativas em termos genéricos», mas o do desenvolvimento de modelos narrativos «suficientemente plásticos para poderem lidar com o oportunismo dos grandes escritores» (Clute), daqueles que estendem os seus limites para lá das fronteiras da fórmula.

Consideremos a trama de A Canção de Kali: Robert Luczak, contra o conselho do seu melhor amigo, desloca‑se a Calcutá, com a sua esposa Indiana e a filha de ambos, para recolher o manuscrito de um poeta que se julgava morto, M. Das. Uma vez na infecta Calcutá, um membro renegado dos Kalipalakas/Kapalikas, uma seita de seguidores da deusa Kali, informa‑o que Das estava realmente morto, mas que foi ressuscitado pela deusa com a incumbência de redigir um hino à divindade maldita que permitirá espalhar a sua influência por todo o mundo. Apesar de todas as advertências em contrário, Luczak insiste em encontrar‑se pessoalmente com Das, um encontro que terá consequências dramáticas para ele e, quem sabe, para toda a humanidade.

Linear, não é? Tão enganadoramente simples, tão simplesmente enganador.

É, antes de mais, inegável o poder descritivo de Simmons neste livro. Para construir a sua Calcutá, um retrato tão sinistro e deprimente como a própria realidade, Simmons baseou‑se na experiência pessoal de apenas dois dias que passou nessa cidade, a par das dez semanas em que viajou por toda a Índia, ao abrigo de uma bolsa Fullbright. Isso, só por si, é um feito, pois é essencialmente o realismo e textura do ambiente que permite a Simmons adiantar a sua tese, a tese que permeia toda a narrativa: a de que existem locii mallefica, onde o ambiente põe à prova a perspectiva moral ‑ e consequentemente ‑ a vontade humana.

Se Simmons tivesse apostado no uso aberto do sobrenatural, na existência de forças paranormais capazes de corromper a «alma», o efeito não seria tão assombroso e potente como o obtido pelo recurso àquilo que alguns leitores consideram ingenuamente tratar‑se de um certo grau de «ambiguidade».

Mas não existe qualquer ambiguidade no livro. Não, no sentido de o autor não clarificar suficientemente as causas ocultas que fizeram mover a narrativa. A sensação de ambiguidade que pode resultar da obra, deve‑se ao facto de nos ter sido dado viajar no interior de alguém que é ‑ porventura ‑ demasiado parecido connosco. Através de Robert Luczak, uma personagem dimensionada e criteriosamente construída, Simmons dá‑nos a explorar a nossa própria maneira de pensar, a mundividência de um homem ocidental, urbano, bom pai de família, culto e liberal. É essa a perspectiva que cedo obtemos dele, e que, de imediato, somos levados a contrapor com as palavras iniciais do livro, sobretudo quando nos é dito «Antes de Calcutá participei em manifestações contra as armas nucleares. Agora sonho com cogumelos atómicos (…)». Ademais, Luczak é jornalista freelancer, e como tal, necessariamente atento ao que o rodeia e ao que se passa no mundo; ao mesmo tempo, é co‑editor/colaborador de revistas de poesia e, finalmente, membro de um casamento inter‑racial.

Tudo isso serve para demonstrar que é exigido um elevado grau de violência/sofrimento para transformar um tal homem em alguém capaz de desejar a atomização de Calcutá. E refiro especificamente homem, pois neste livro, onde a vilã é uma deusa, são as mulheres quem tem o papel mais racional. Enquanto Luczak se entretém com poesias da elite intelectual de Nova Iorque, que facilmente antevemos vácuas e açucaradas, a sua mulher Amrita move‑se no reino do cálculo puro e das abstracções matemáticas.

Enquanto ele é o homem ocidental, multiculturalista por princípio, mas não por experiência, ela carrega em si as cicatrizes da amarga realidade. Um dos momentos definidores da obra, um dos momentos onde a máscara é rompida pelos dígitos curiosos do autor, é aquele em que Robert e Amrita são recebidos em casa de Chatterjee, e este pretende convencer Luczak das platitudes beatíficas de que são as cidades, e não as culturas, que provocam o mal no coração do Homem. Luczak, embrenhado no pensamento politicamente correcto, multiculturalista que tomou de assalto as faculdades de Letras Americanas e Francesas na sequência do tenebroso Maio de 68, não consegue rebater‑lhe os argumentos e está pronto a ceder, quando Amrita intervém, denunciando situações específicas e típicas da Índia.

A impressão de ambiguidade apenas nos assalta porque Simmons – esse mestre da palavra e da narrativa – não nos permite nunca sair da perspectiva de Luczak. E, quando Luczak, o humanista, crente na intrínseca bondade humana, se vê confrontado com uma cultura primitiva e brutal, que não compreende, não possui instrumentos intelectuais que lhe permitam descodificar aquilo que vê. E Simmons é soberbo, introduzindo o sobrenatural apenas em circunstâncias dúbias: Das é um leproso ou um cadáver ressuscitado? O ritual no Kalimat foi presenciado sob o efeito de drogas ou de mera sugestão? A estátua de Kali ganhou realmente vida, ou tratou‑se de uma alucinação provocada pela forte pancada na cabeça?

E aprecie‑se a saborosa ironia de que Luczak nunca leva Amrita consigo, quando ela – que o acompanha sob a máscara de tradutora – poderia ter‑lhe interpretado a realidade e evitado a dor e o sofrimento. Poderia tê‑lo ajudado a rasgar o manto de mentiras – de mentiras culturais – que cobre o rosto da verdade, permitindo‑lhe descobrir aquele que é sempre o culminar do Horror: a compreensão de que estamos irremediavelmente ligados à terrível natureza do mundo em que vivemos, um mundo que nos encara com total indiferença.

A Canção de Kali é, assim, um magnífico retrato do choque de culturas, um derrubar nitzcheano de ídolos com pés de barro; e como Simmons se diverte pontapeando os pés dos ídolos: antes de partir para a Índia, Abe Bronstein, procurando demovê‑lo, conta‑lhe que, certa vez, em visita ao sub‑continente, viu um rapazinho empalado nos reforços de aço de uma ponte em construção, supostamente por acidente. No entanto, procurando mais tarde um exemplar de um conto de Kipling – The Bridge Builders (1901) – apercebeu‑se de que essa narrativa baseava‑se no facto de que, no final da construção de uma nova ponte, os Bengaleses celebravam uma cerimónia religiosa na qual propiciavam um sacrifício humano. A resposta de Luczak é de que nunca leu esse conto. Detestava a prosa e a poesia de Kipling. O sacrifício que unge a ponte, vai encontrar ecos sinistros nas provações de Luczak em torno do manuscrito de Das, que dá título ao livro; tal como as provações do autor Americano (cuja esposa, significativamente, vive em Londres e cuja filha não menos significativamente se chama Vitória, como a rainha) ecoam a obra de Kipling (particularmente a obra prima, também de 1901, que é Kim), muito especialmente a sua noção de que nenhum direito é inato, e de que o comboio, símbolo do progresso tecnológico, é ao mesmo tempo instrumento de libertação (pode ajudar a derrubar o sistema de castas) e de opressão (pois as carruagens fechadas permitem uma maior segregação num sistema de castas). A escolha é sempre humana, e é na escolha humana que assenta o sentido a dar ao mundo. Kipling, foi dos primeiros a compreender que a ficção é um poderoso instrumento de revelação da verdade, noção que Simmons transformou em pedra de toque da sua obra: com efeito, para Kipling, a linguagem começa com a mentira (Stephen R. L. Clark, Alien Dreams: Kipling).

«Ninguém no mundo sabia o que era a verdade até alguém ter contado uma história.» («Fiction» in A Book of Words).

Portanto, suprema ironia a de que Luczak não tenha lido The Bridge Builders. Nesse conto, uma grande cheia do Ganges deixa um dos engenheiros encarregados da construção de uma enorme ponte, em companhia de um servo, Lascar, isolado num banco de areia. Aí assiste, como num sonho, à conversa travada pelos deuses da Índia sobre a sua ponte. Os deuses dividem‑se: a Mãe Ganges e Kali querem ver a ponte destruída; Hanuman e Ganesh consideram que aqueles humanos que apreciam o luxo e as maquinarias são, indirectamente, adoradores dos deuses. A discussão embrenha‑se pelos caminhos da sobrevivência dos próprios deuses, até Shiva (do qual Kali é também uma encarnação/manifestação) os tranquilizar assegurando‑lhes que a sua existência está assegurada enquanto Brahm sonhar, o que o servo Lascar interpreta como significando que os deuses são um sonho do engenheiro.

Se o engenheiro sonha os deuses, um poeta como Luczak pode apenas sonhar um poema de tal poder que corrompe a alma humana… que o corrompe a si próprio e que, consequentemente, põe em perigo aqueles que ama.

Daí, também, advém o grande poder do manuscrito, da Canção de Kali. Ao contrário dos típicos «objectos de poder» da literatura de fantasia (anéis, espadas mágicas, manuscritos repletos de runas, ou códigos daVincianos), o poder da Canção de Kali é o poder das ideias, o poder de influenciar o comportamento dos homens para o bem ou para o mal.

E daí a força do duplo clímax da novela: a impossibilidade de fazer o que quer que seja contra os assassinos da filha de Luczak e Amrita (mais uma nota de realismo que viola as convenções); e a recusa de Luczak em ceder ao canto de Kali, juntando‑se à espiral de violência.

Tal como Kim, Luczak apenas uma vez segura uma arma, e nenhum dos dois chega a utilizá‑la para matar quem quer que seja. Luczak é Kim actualizado para o século XX.

E, posto tudo isto, caro leitor, nada do que acima se disse interessa, como nunca nenhum prefácio interessou: a canção de Kali ecoa sinistra pelas cidades do homem, os tigres desaparecem na selva, o mundo veste um novo manto com o qual camufla a sua natureza, e Brahm continua a sonhar, ignorando que todos nós precisamos que desperte.


*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da
revista BANG! n.º 6, publicada em maio de 2009.

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