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O Caderno de Pursewarden

Por João Bengeldorff. Publicado originalmente na Revista Bang! 2, Março de 2006.

Por João Bengeldorff

Publicado originalmente na Revista Bang! 2, Março de 2006

O anão encostou-se à parede, mesmo debaixo de uma das janelas laterais. «Se daqui a bocado a missão não correr bem, poderei não voltar a ter uma hipótese igual a esta.» pensou, enquanto percorria a parede lateral do templo. «Se a coisa der para o torto, e o velho se passar, posso ser apagado logo ali.» Na Igreja Evangélica do Cristo Ressurrecto, na Rua Viriato, decorria o serviço religioso de quarta-feira à noite. O anão passava na rua quando ouviu os aleluias que se multiplicavam nas vozes dos crentes. Incapaz de resistir, foi-se pôr a escutar. Por razões inerentes à sua profissão, entrar numa igreja era uma vontade que nunca se permitira concretizar. Só que desta vez a situação era diferente. Este era um dia especial, talvez um dos mais importantes da sua carreira. O anão sentia-se com confiança e concedeu-se esse impulso travado havia séculos. Ao passar pela porta envidraçada da entrada, viu o seu reflexo. Torceu o nariz e parou. O cabelo preto e oleoso em desalinho; o casaco verde, sujo e coçado de anos; o chapéu de coco, de que tanto gostava, baço e sem brilho; a t-shirt preta e amarrotada. Achou que não poderia entrar naquela figura. Uma coisa era andar assim nas ruas de Lisboa, no meio da indiferença que o consideraria só mais um indigente e que talvez até achasse piada ao modo desconjuntado como andava. Outra era entrar num espaço fechado como aquele, impregnado por essa detestável mania da caridade e do auxilio aos necessitados. Convinha-lhe, portanto, passar despercebido. O seu corpo deveria ser outro quando se sentasse num dos bancos do templo. Retirou do bolso um caderno do tamanho de uma agenda e, abrindo-o, leu umas palavras em língua estranha. Depois de o a-conchegar de novo no casaco verde, entrou na espaçosa sala onde dezenas de pessoas em pé terminavam o cântico. Se elas olhassem para trás não veriam um anão, mas sim uma senhora de cerca de cinquenta anos, magra, vestindo um casaco de malha e saia comprida cinzenta. Lá à frente, virados para a plateia, o coral e o pastor dirigiam a congregação. O homem de fato, suando em bica, de lenço na mão, deitava aleluias de olhos fechados e agitava o braço como se estivesse a acenar ao próprio Jesus. Alguns membros do coral choravam de emoção. O êxtase começava a crescer e a tomar conta de todos. Quando o hino terminou, o anão (não dizemos “a senhora”, porque pelo menos nós sabemos muito bem quem ele é), sentou-se na última fila ao mesmo tempo que os outros. No piano, colocado a um dos cantos da sala, um homem gordo, de camisa branca e gravata preta, atacou de seguida os primeiros acordes de uma nova melodia, ao que a congregação respondeu, passado o compasso de introdução, com as palavras de louvor de um outro cântico. Duas filas à frente daquela em que o anão se encontrava, um jovem indiano, aparentando uns vinte anos, virou-se de repente para trás, sobressaltado como se tivesse apanhado um susto. Olhava na direcção do anão e sorria, como que surpreendido. Este, ao reparar no jovem que o fitava, revirou os olhos e abanou a cabeça, maldizendo, num sussurro, a sua sorte. Enquanto a cantoria continuava, o jovem levantou-se. Preparava-se já para se sentar no lugar vago ao lado do anão, quando este se levantou, lhe agarrou num braço e saiu com ele da Igreja. Desceram os dois a rua em silêncio. O anão, já com a aparência de anão, seguia de cara fechada, contrariado. O outro, que já não era um jovem indiano, mas sim também um anão, só que de cabelo louro, vestindo uma camisola vermelha de lã de gola alta, continuava a sorrir como quem teve, e está ainda a ter, uma bela surpresa. Pararam, por fim, perto de uma esquina, junto aos semáforos em frente da Maternidade Alfredo da Costa. – Senhor Pursewarden! Há séculos que não o via! Que honra! – disse o de camisola vermelha. E sem dar tempo de resposta ao outro, – O que é que anda aqui a fazer? Alguém da sua patente a entrar numa Igreja?! Deve estar prestes a acontecer alguma coisa de importante… O anão de casaco verde, que agora sabemos chamar-se Pursewarden, olhou em volta, num desconforto que não fez por disfarçar. Disse, com um sorriso amarelo: – Meu caro Baltasar! Como vai a vida? Há que tempos que não nos víamos. O outro continuava a sorrir, dir-se-ia entusiasmado. – Vai bem, vai bem. A mesma rotina de há dois séculos a esta parte. Já sabe como é isto da vigilância das Igrejas…Um pouco enfadonho, poderão dizer alguns. Mas a nossa missão é mais importante do que o nosso aborrecimento. – E, fazendo um gesto rápido sobre o peito, acrescentou, quase gritando, como uma continência – Encontraremos! – Ao que Pursewarden, sobressaltado pelo ímpeto e entusiasmo da saudação oficial de Baltasar, temendo que esta chamasse a atenção de alguém que passasse, disse em voz baixa, ao mesmo tempo que fazia o mesmo gesto sobre o peito – Sim, sim, encontraremos…mas as pessoas no Marquês não precisam de o saber. Fale baixo! Pursewarden pegou no relógio de corrente preso ao bolso e fingiu consultá-lo, fazendo uma expressão de espanto. – Chiça. Já são estas horas todas? Tenho de ir. – Apertando o ombro do outro, usando de novo o sorriso amarelo. – Meu caro Baltasar, foi um prazer vê-lo. Temos de combinar qualquer coisa um dia destes. Continue com o bom trabalho.- Dando-lhe duas pancadinhas no braço numa tentativa de despedida rápida. Baltasar pôs-se a andar ao seu lado. – Peço-lhe desculpa, senhor, pela minha impertinência. Mas está para acontecer alguma coisa? Pursewarden parou e sorriu. – Meu caro Baltasar, você não muda! Sempre nessa ansiedade pelo fim dos tempos. Relaxe! – Mas, diga-me senhor Pursewarden…quer dizer, desculpe-me esta minha insolência, peço-lhe. – Já com um tom de súplica, – É que…uma personalidade tão notável como o senhor a entrar numa Igreja…como deve compreender, é tão pouco usual! Uma pessoa fica a pensar se não… Pursewarden fez um gesto com a mão para o outro parar. – Não há nada de mais. Sabe como é isto do Louvor a Deus para nós, não é? Pois hoje apeteceu-me estar lá no meio um bocado. Só isso. E olhe, estou atrasado, meu caro Baltasar. Tenho de ir. Mas antes, deixo-lhe uma ordem directa. Se a desobedecer, já sabe que está a contrariar o juramento. E o que é que acontece a quem quebra o juramento? O outro baixou a cabeça, dizendo num suspiro: – Quem quebra o juramento é punido com a destruição. Pursewarden deu uma pequena gargalhada. – Isso mesmo! E a minha ordem é de que não fale deste nosso encontro a ninguém. Nenhum dos outros poderá saber que estive naquela Igreja ou que tive esta conversa consigo, entende? Agora, volte lá para a sua igrejinha e continue a vigiar. Não lhe vá calhar a sorte grande e ele aparecer lá esta noite. Mantendo a cabeça baixa, percebendo que as suas suspeitas estavam certas, mas não podendo fazer nada em relação a isso, Baltasar disse um sumido “sim” antes de se despedir. – Foi um prazer, senhor Pursewarden. Uma honra. Não se esqueça de mim quando chegar o momento porque todos esperamos…encontraremos. – disse, desta vez sem convicção nem na voz, nem no gesto que fez sobre o peito. Mas já Pursewarden recomeçara a andar, murmurando entredentes um apressado “encontraremos”. A perna esquerda era mais curta do que a direita e obrigava-o a mancar. O seu corpo oscilava numa espécie de dança, em permanente desequilíbrio, o que não fazia o seu andar ser propriamente rápido. De facto, estava com pressa. Daí a pouco teria de estar no beco mais escuro da cidade, perto do rio. Enquanto descia as escadas do Metro do Saldanha, tirou o caderno do bolso e, com um lápis roído, escreveu, sem abrandar, uma pequena anotação. Depois, guardou-o de novo e apressou como pôde o passo, ao ouvir o ruído do metro que se aproximava. A noite já ia alta quando ele chegou perto da 24 de Julho. Disse para si próprio que tinha de se despachar. Meteu pelo casario e entrou no beco mais escuro da cidade. Deteve-se em frente de uma porta de me-tal. Pegou de novo no caderno, confirmou algo, sorriu, respirou fundo e bateu. A porta abriu-se. Na penumbra, Pursewarden viu surgir os contornos de uma criatura gigantesca. – Pursewarden? Não acredito! Sem nada dizer, o anão passou a porta e entrou numa divisão escura. Junto a ele estava esta silhueta, certamente com mais de dois metros e vinte de altura. O anão ouvia–a cheirar o ar, investigando-o. – És mesmo tu! Que fazes aqui? A silhueta aproximou-se. Pursewarden conseguia, agora que os olhos se habituavam ao escuro, identificar o seu interlocutor. Era um anjo de cabelo comprido e pele muito branca. Estava completamente nu. As asas dobradas sobre as suas costas formavam um segundo vulto que parecia espreitar-lhe por cima dos ombros. O anão notou as garras nas mãos e os caninos pontiagudos. Os olhos pareciam avermelhados. – Caro Alepmael, preciso de falar contigo e com Lathalael. Olhou em direcção à porta entreaberta ao fundo da sala de onde se escapava uma luz azulada. – Sei que ele está cá e Mamethoth também. Já percebi também que não estão sozinhos. Quem mais está com eles? O anjo insistiu – Porque é que estás aqui? Um manda-chuva como tu… Pursewarden pegou num cigarro e acendeu-o. Com o clarão do zippo, pôde ver melhor o olhar do anjo e, por décimas de segundo, sentiu medo. Ele sabia bem o que um anjo destes era capaz de fazer num acesso de fúria. Lembrou-se dos crânios esmagados por essas poderosas mandíbulas em Bizâncio. Surgiram-lhe, também, imagens das entranhas de soldados romanos arrancadas com as garras, para depois serem exibidas como troféus nos campos de batalha da Gália. O anão sabia que o equilíbrio dentro daquelas mentes era precário. Todos eles instinto, tanto poderiam protagonizar actos de incrível coragem e altruísmo, como da mais fria violência e crueldade. O animalesco misturado com uma inteligência superior, e semi-divina, era uma combinação explosiva. Tratavam–se de anjos caídos e era preciso estar sempre atento. – Eu perguntei quem está com eles. – Insistiu, mostrando a palma da mão, num gesto que o anjo sabia ser de uma autoridade que lhe fora concedida e sobre a qual não era possível discutir. – É só uma mulher… Pursewarden avançou em direcção à porta, virando as costas a Alepmael. Este seguiu-o quando o anão entrou na espaçosa sala. Várias lâmpadas fluorescentes azuis iluminavam as paredes nuas e maltratadas. Uma mesa de madeira tosca, com várias garrafas de cerveja vazias, estava encostada a uma das paredes. Num canto, num colchão estendido no chão, uma mulher dormia. Estava nua e ao seu lado estava um tubo de borracha e uma seringa. Havia também três sofás de napa vermelha, virados uns para os outros, onde estavam sentados, também nus, dois outros anjos. Estes, ao verem Pursewarden entrar, levantaram-se e avançaram bruscamente em direcção a ele, rosnando com os caninos bem à mostra. O anão, de pronto, fez de novo o gesto de mostrar a palma da mão, perante o que recuaram de imediato. Um deles, de pele negra e cabeça rapada, sorriu, trocista, olhando para o ou-tro, também de pele escura, mas de cabelo comprido. – Olha, Lathalael, o anão Pursewarden… Lathalael sentou-se de novo numa das poltronas e acendeu também um cigarro. – Meu caro Pursewarden. A que devemos tão grandiosa honra? – cuspindo para o chão. O anão pareceu ignorar a pergunta. Depois de fazer um gesto com a cabeça em direcção à mulher, foi-se sentar numa das poltronas. – Livrem-se já disso. Tenho um assunto muito importante a falar convosco. Alepmael abriu os braços, mostrando- -se indignado – Queres tirar-nos o nosso novo brinquedo? Sabes quanto tempo demorei a fazer o encantamento sobre ela? O anão olhou para ele, tirou o chapéu da cabeça e esfregou a cara num gesto de cansaço. Disse, numa voz de enfado: – Tirem-na já daqui. É uma ordem. Agora os anjos tornaram-se estúpidos, é? E, voltando a pôr o chapéu na cabeça, sussurrou: – Já! Alepmael estava vermelho de fúria. Com o orgulho ferido, dirigiu-se para a mulher. – Ok. É para já. Ajoelhou-se ao lado dela, agarrou-lhe a cabeça e, com um gesto seco, partiu-lhe o pescoço. – Pronto, já está. Satisfeito, meu pequerrucho? O anão suspirou. – Vocês são umas autênticas bestas. Palavra de honra que… – mas não terminou a frase, percebendo que estava a cair na provocação. Levantou-se do sofá e, de ponta de cigarro na mão, procurou um cinzeiro com os olhos. – Podes apagar mesmo no chão, a gente não se importa…chefe… – disse Mamethoth, que se havia encostado a uma parede e o olhava com um sorriso trocista. O anão apagou o cigarro debaixo da bota e tirou o caderno de dentro do casaco. Os anjos, ao verem o livro, soltaram um grunhido. Lathalael, pigarreou. – Ah, então é isso. Encontraste o caderno… O anão segurava o caderno com as duas mãos. Olhava-o muito sério. -Antes de mais, quero-vos dizer que esta situação me desagrada tanto como a vocês. As nossas relações já foram mais cordiais. Não é preciso estar aqui com hipocrisias e conversas da treta. Vocês não gostam de nós. Nós não gostamos de vocês. Alepmael grunhiu. – Ao menos, temos algo em comum. – A culpa não será certamente nossa, dos anões, mas dessa revolta permanente em que vivem por não vos ser permitido voltar ao Paraíso. Mas, quer acreditem, quer não, a minha natureza só me permite amar-vos e espero que um dia possam ser o que já foram… – Daqui a bocado estás-nos a pedir em namoro…cá para mim estavas era com inveja da sorte da gaja! – disse Mamethoth, ao que os outros dois responderam com uma gargalhada. – Mas ordens são ordens e eu não as discuto. Indo directo ao assunto, tenho indicações que o encontrámos. As ordens são para que tu, Lathalael, e tu, Alepmael, venham hoje comigo. Lathalael olhou para ele, desconfiado. – Tens a certeza? Encontraram? E isso está no caderno? Pursewarden bateu com a mão na capa, numa confirmação. – Sim. Recebi ordens para vos levar aos dois. Parece-me que sabem o que, a verificar-se este quadro, isso representaria para vocês… O desafio desapareceu instantaneamente da face dos dois anjos escolhidos. Pursewarden chamou-os com um gesto. – Vou-vos ler umas palavras que os libertarão de parte da vossa condição. Se a missão for bem sucedida, terão total perdão e ser-vos-á permitido voltar. Deitaram-se os dois de bruços em frente do anão. Este, lendo umas palavras do ca-derno, tocou-lhes na nuca com o dedo. De seguida, dirigiu-se para a porta, virando-lhes as costas. Enquanto uns transfigurados Lathalael e Alepmael vestiam duas gabardinas negras, Mamethoth deu três passos rápidos até Pursewarden. Da sua garganta saia um som como um piar muito agudo de um distinto implorar. O seu olhar de gozo havia dado lugar a uma expressão de desespero. O anão sorriu. – Vamos lá que já se faz tarde. Encolham–me essas asas e vistam qualquer coisa. Para o que temos a fazer não precisamos de andar a assustar o pessoal com esses vossos espantosos dotes físicos. – Mamethoth…a tua vez chegará. Não sejas insolente…mais não. Acalma-te! – chamando o anjo com um gesto para mais perto. Mamethoth aproximou-se, baixou-se e o anão fez-lhe uma festa na cara. – Meu bom Mamethoth…a tua paciência será recompensada, prometo-te. O anjo endireitou-se e o anão Purse-warden viu-lhe os punhos cerrados e os músculos do pescoço tensos. Mamethoth estava contrariado, mas, deixando escapar um lamento, acatou as palavras de Pursewarden. Lathalael, tentando passar, puxou o braço de Mamethoth, que bloqueava a porta. Este, ao sentir a mão do outro, num gesto brusco abriu a boca e falhou por pouco uma dentada na cara de Lathalael. Este respondeu de um modo fulgurante, rosnando e empurrando o ou-tro contra a ombreira da porta, pondo-lhe a mão na garganta. Pursewarden disse três palavras e um chicote invisível estalou na cara de Mamethoth e no pescoço de Lathalael. Os dois anjos largaram-se. Mamethoth foi para dentro, não sem antes lançar um olhar de ódio ao anão. Enquanto esfregava a cara com uma marca vermelha desde a testa até ao queixo, começou a entoar baixinho uma espécie de cântico, balançando-se para trás e para a frente, enterrado num dos sofás de napa vermelha. Lathalael, Alepmael e o anão saíram do beco e atravessaram dois quarteirões. Entraram na 24 de Julho. Do lado direito, as luzes de Cacilhas reflectiam–se nas águas escuras do Tejo. Um comboio para Cascais passou, ruidoso, numa mancha cinzenta com um rasto de luz. Os anjos enormes, de olhos vermelhos, rosnavam baixo, inquietos, ao passarem pelos grupos de pessoas que se preparavam para começar uma noite de divertimento. Os dois gigantes vestidos de negro pareciam predadores na iminência de um ataque. Chegaram à Praça do Comércio e meteram pela Rua da Prata. O anão assobiava um dos cânticos que ouvira há umas horas atrás, tentando descontrair-se. Tinha sido uma sorte encontrar o caderno. Tudo parecia estar a bater certo com as datas previstas. Esta poderia ser a noite por que sempre esperara. Entraram num prédio antigo e degradado, já na encosta do Castelo, onde numa tabuleta iluminada se podia ler “Pensão Ricardo Reis” em luzes azuis e verdes. Passaram pelo recepcionista, que dormia, e subiram dois lances de escadas. Lentamente, com o anão a amaldiçoar a sua má-sorte em tanta dificuldade no seu avanço, chegaram a um corredor mal iluminado. Um homem de aspecto miserável jazia no chão, junto a uma porta. Alternando na boca o nome de uma mulher com a garrafa que segurava numa das mãos, olhava o trio com estranheza. O anão pegou no caderno e confirmou ser ali o local. Bateu à porta. Os dois anjos, atrás dele, na penumbra do corredor, eram dois vultos gigantes com olhos muito abertos e totalmente brancos. Os seus grunhidos ecoavam pelas paredes dilaceradas por graffitis e estuque rachado. A porta abriu-se e um velho de gabardina azul clara, segurando uma pesada mala com muitos autocolantes de diversas zonas do mundo, disse que estava pronto. Os anjos começaram a piar e deitaram- -se submissos no chão aos pés do velho, que lhes afagou a cabeça e chamou nomes ternos. O anão fez uma vénia. – O senhor meu deus divertiu-se na sua breve fuga? O velho sorriu. – Breve? Dois mil anos e chamas-lhe breve? Meu caro Pursewarden, o teu sentido de humor…confesso que tive saudades dele. E, depois, fazendo cara séria. – Sabes que vou fugir de novo, não sabes? – ao que o anão, sorrindo emocionado, respondeu: – Claro que sim, senhor meu deus…tudo o que o senhor meu deus quiser. Os quatro desceram as escadas e, já no hall, o velho deus parou, agarrando no braço do anão. – Sabes, aquilo do meu filho na cruz foi demais para mim. Mas, agora que o luto me parece ter terminado, talvez esteja na hora de voltar a exercer. Amanhã, quero um relatório completo do estado das coisas. – Lá estarei, senhor meu deus. Lá estarei. – Vejo que encontraste o meu caderno de apontamentos. Escondi-o bem, não achas? Amanhã devolves-mo. Entretanto diverte-te com ele esta noite. Mereceste-o. – disse deus, piscando o olho a Pursewarden Já na rua, o velho deus, subindo para as costas de Alepmael, agora um resplandescente ser de luz, desapareceu no céu nublado de Lisboa. Lathalael seguiu-os como escolta. Pursewarden ficou sozinho no meio da rua. Bocejou, espreguiçou-se e disse para si mesmo que esta tinha sido uma boa noite. Depois iniciou a descida da encosta, de novo em direcção à Baixa. Parou junto à Sé e fez um visto no nome de deus no seu caderno. Lambeu a ponta do lápis e escreveu “Mamethoth” numa linha abaixo daquela onde já havia escrito “Baltasar”. De seguida riscou o encontro com deus na manhã seguinte. Não pretendia devolver o caderno e muito menos cumprir a convocatória. Guardou de novo o caderno. Recomeçou então a assobiar um dos cânticos que ouvira nessa noite, ao mesmo tempo que sonhava com o que poderia fazer com o poder daquelas páginas.

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