Quando o Cineclube de Terror de Lisboa (CTLX) decidiu solidificar a sua actividade de «Exibidor de Filmes de Terror» e produzir um evento anual que permitisse mais espaço para a contextualização deste género, não foi guiado apenas pela vontade de celebrar a liturgia macabra do filme de terror em sala; o principal motivo foi a necessidade de fomentar um género completamente inexistente em cem anos de cinema em Portugal. Nesse sentido, o MOTELx nasce como um imenso workshop de cinema de terror, que começaria nos mais novos e na sua relação com o medo (secção Lobo Mau) até aos futuros cineastas (com a exibição de filmes recentes, convívio com mestres do género e uma competição nacional de curta-metragens de terror).
No entanto, é impossível olhar para o futuro ignorando o passado e correndo o risco de estimular uma vaga de filmes de terror «aportugueses». Não faltam, na longa história deste país, motivos para inspirar horrores cinematográficos, não só de descobrimentos foi cantado o nosso fado. E parece-me que nenhum povo ou cultura se pode afirmar sem uma terapia de choque ao seu inconsciente colectivo, tal como fizeram os norte-americanos a partir de A Noite dos Mortos-Vivos.
Para se encontrar um elo que ligue um hipotético passado de cinema de terror português ao seu promissor futuro, criámos a secção «Quarto Perdido», com a preciosa ajuda do historiador de cinema, José de Matos-Cruz, e do «ex-cineasta», António de Macedo (já voltarei a este senhor). Após muitas manhãs e tardes ganhas nos arquivos do ANIM, a descobrir alguns dos OVNI do nosso cinema, esta secção começou a ganhar alguma consistência e aproximar-nos de uma ideia de terror português. Segue-se, então, uma breve viagem pelos poucos títulos desse passado e a partilha de algum conhecimento adquirido nestas experiências, não muito exaustivo, até porque não existem fontes bibliográficas que permitam aprofundar este tema, mas na esperança de proporcionar pistas a futuros investigadores e cineastas.
Antes de avançarmos para factos concretos, convém, para já, distinguir o género terror da sua matriz ideológica, o fantástico. Nos primórdios do cinema, não há ficção sem uma inspiração directa proveniente da literatura; assim, as primeiras obras que se inscrevem no género descendem dos grandes clássicos literários e do seu consequente sucesso de palco. Refiro-me às obras que Stephen King define como a «Santa Trindade» do terror universal contemporâneo: Drácula, de Bram Stoker, Frankenstein, de Mary Shelley, e O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Desde muito cedo, surgem adaptações e variações destas temáticas até aos filmes que consolidam de vez o terror como género cinematográfico, os famosos «Monstros da Universal», que formam o cânone do terror até aos anos 50.
Em Portugal, como foi exposto por David Soares num artigo publicado nesta revista, intitulado «Sobre o Fantástico na Literatura Portuguesa», a literatura de terror foi silenciada durante três séculos pela Santa Inquisição e mais tarde pela censura salazarista, impedindo a formação de escritores, leitores e de um gosto crítico. Por este motivo, não deixa de ser surpreendente que possamos destacar dois filmes da pré-história do cinema luso, anteriores inclusive à própria existência do terror enquanto género cinematográfico: A Dança dos Paroxismos (1929), de Jorge Brum do Canto, e O Fauno das Montanhas (1926), de Manuel Luís Vieira. O primeiro, obra poética e experimental, profundamente inspirada pelas vanguardas artísticas da época em particular pelo trabalho de Marcel L’Herbier. Inspirado num poema de Leconte de Lisle, Les Elfes, por sua vez baseado numa lenda nórdica, relata as aventuras de um cavaleiro em busca do Santo Graal que se deixa apaixonar pela rainha mitológica Banschi, alguém para quem o amor é sinónimo de morte. Brum do Canto tinha apenas 18 anos quando realizou este filme que foi mantido em segredo durante muitos anos, devido à vontade do próprio.
O responsável pela fotografia e trabalho de câmara ousado deste filme era o madeirense Manuel Luís Vieira, fundador da Empresa Cinegráfica Atlântida, através da qual realizou inúmeros documentários e filmes de ficção que tinham como pano de fundo a ilha da Madeira. Entre esta actividade nasce o curioso O Fauno das Montanhas, filme de temática fantástica acerca de um naturalista britânico e a sua filha, que partem numa expedição para descobrir a diversidade ornitológica da ilha e se deparam com um universo sobrenatural povoado por ninfas e faunos que tentam desviar os personagens da sua demanda. Destaca-se uma sequência que retrata a descida aos infernos da personagem feminina reminiscente do tratado de bruxaria Haxan – A Feitiçaria através dos Tempos, do dinamarquês Benjamin Christensen.
A instauração do Estado Novo em Portugal submeteu toda actividade artística ao jugo ideológico fascista apesar de se chamar a este período «os anos de ouro» do cinema português, assentes na exploração das vedetas da revista lisboeta. Sucedem-se comédias de costumes e filmes de exaltação patriótica e o cinema de género com o seu carácter social subversivo não cabia nas directrizes da censura do regime. Ressalvam-se três excepções. As primeiras duas não sobreviveram até aos nossos dias, mercê de um incêndio nos antigos estúdios da Tóbis. Refiro-me a O Louco (1946), de Victor Manuel, e Três Dias sem Deus (1946), de Bárbara Virgínia, dos quais apenas restam duas bobines sem som.
O primeiro conta-nos a história de um médico que procura dar vida a qualquer ser humano que se encontre em estado de boa conservação, em especial logo após o falecimento. As imagens que restam deixam a sensação de estarmos na presença do primeiro filme de terror português, inspirado fortemente no cânone shelleyano. Quanto ao filme de Bárbara Virgínia, trata-se de uma variação do clássico Rebecca, de Alfred Hitchcock. Lídia, jovem professora, vai ensinar para uma aldeia da serra onde se verificam estranhas ocorrências. Desta obra, salientam-se dois aspectos insólitos: é a primeira realização de uma mulher no cinema português, a actriz Bárbara Virgínia; e esteve presente na selecção oficial do Festival de Cannes, a par de Camões, de Leitão de Barros, naquelas que foram as únicas presenças portuguesas no certame francês, até à revolução de Maio de 1968.
Quase uma década depois, surge uma adaptação bastante curiosa do conto de Eça de Queirós, O Cerro dos Enforcados (1954), de Fernando Garcia. A narrativa sofre uma reviravolta misteriosa com a inclusão de um elemento sobrenatural num enredo até ali bastante convencional. Tudo gira em torno de um velho fidalgo que, por ciúmes à sua jovem esposa, tudo fará para afastar olhares alheios, chegando inclusivamente ao homicídio. Mas os seus planos correm de forma catastrófica quando um cadáver ainda pendurado na forca desce do cadafalso, para tomar o lugar de um jovem fidalgo condenado e lançar D. Afonso numa angústia mortal. A estranheza desta sequência final e o domínio de Fernando Garcia do trabalho de câmara e do tempo cinematográfico, promove esta sequência a momento único do cinema português, podendo mesmo afirmar que se trata do primeiro arremedo de um filme zombie (de matriz clássica).
Antes do surgimento das produções Cunha Telles, numa altura em que o mercado cinematográfico tinha sido invadido por produções norte-americanas que acabaram de vez com o «período de ouro» do cinema nacional, registam-se duas comédias incipientes, inspiradas nas comédias de terror norte-americanas: Aqui Há Fantasmas (1963), de Pedro Martins, e O Elixir do Diabo (1964), de Thor Brooks.
Através da força do movimento cineclubista dos anos 50, forma-se uma geração que iria transformar para sempre o cinema português. Nomes como Paulo Rocha, Fernando Lopes ou Fonseca e Costa começam a solidificar as suas incontornáveis carreiras. No entanto, gostaria de destacar a carreira absolutamente marginal de António de Macedo (habitual colaborador desta revista), cineasta autodidacta e pioneiro da violência gráfica no cinema português. Os seus primeiros filmes, o «jamesbondiano», Sete Balas para Selma (1967) e o experimental Nojo aos Cães (1970), filmam a violência de uma forma realista, directa e até paródica. Tudo isto culmina no seu primeiro grande sucesso de bilheteira, A Promessa (1973), a adaptação western spaghetti de uma peça de Bernardo Santareno. Macedo filma uma aldeia de pescadores da Figueira da Foz como se fosse Sergio Leone ou Sam Peckinpah, antes destes serem reconhecidos como autores. Toda a crítica se insurgiu contra três sequências deste filme: a violação de uma jovem aldeã por dois ciganos, filmada em ralenti; o plano dos cadáveres dos mesmos ciganos juntamente com a sua mãe; e o plano final do casal na cama após a consumação do acto na presença de um cadáver.
Estes «excessos» de linguagem cinematográfica prosseguiriam por toda a sua carreira e seriam determinantes para a sua marginalização do contexto do Cinema Novo. Mas Macedo iria mesmo mergulhar no terror já perto do término da sua carreira no cinema, no início da década de 90, numa co-produção entre a RTP e a TVE, inserida numa série de filmes sobre lendas e mitos ibéricos chamada Sabbath. A convite da televisão portuguesa, Macedo adapta o conto popular A Dama de Pé-de-Cabra, numa notável obra de recriação histórica intitulada A Maldição de Marialva. Lídia Franco representa a dama que controla os destinos de uma aldeia beirã do século x onde confluem bruxas, mortos-vivos, alquimistas e demónios, num dos poucos filmes que poderemos considerar verdadeiramente de terror.
Nos anos 70, verifica-se o boom do exploitation film, movimento cinematográfico que versava a exploração de tabus sociais como a violência e o sexo. Em toda a Europa, principalmente em Espanha e Itália, produziam-se filmes deste género para competir internacionalmente com os filmes norte-americanos. É deste modo que, através da popularidade além-fronteiras do actor António Vilar, surgem co-produções luso-espanholas para lançar no mercado internacional utilizando o exótico cenário de Lisboa, fechada ao mundo durante tantos anos, para se destacarem dos demais. Estes filmes eram maioritariamente de crime ou espionagem, títulos como Fim-de-Semana com a Morte (1966), Os Sete Avisos de Satanás (1970) ou Sinal Vermelho (1973) não ficaram para a história, nem se revelaram sucessos de bilheteira em parte alguma. Nesta pequena fornada de colaborações ibéricas, podemos ainda incluir Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa (1977), do prolífico Jesus Franco, onde Ana Zanatti é violada regularmente pelo diabo enquanto dirige um convento de freiras devassas e o opus dos Cavaleiros Templários Zombies, La Noche del Terror Ciego (1971), de Amando de Ossório, filmado quase inteiramente em Portugal. Esta pequena introdução serve para chegar ao único filme que se destaca deste lote e que interessa a este artigo. Chama-se Crime de Amor e foi realizado pelo espanhol Rafael Alba Moreno, em 1972. O actor Américo Coimbra (presença regular nestes filmes) desempenha um homem de negócios que devido à sua intensa actividade profissional não consegue passar tempo com a sua jovem esposa. Temendo que esteja a ser enganado, resolve segui-la e descobre que esta, de facto, se apaixonara por outro homem, o que provoca a derrocada psíquica do homem cujo ciúme obsessivo já era um sinal de stress emocional provocado pelo trabalho (verdadeiro tema deste filme). Verifica-se uma súbita mudança de tom narrativo, quando o homem surpreende o casal, corta a garganta do amante com uma navalha e enclausura a mulher num casarão sinistro, na esperança de a poder controlar. A completa esquizofrenia do homem é simbolizada pela mudança do espaço físico, da sua mansão para o casarão decrépito, e o filme destaca-se, também, pela completa ausência de humor, atípica nestes filmes. Após o visionamento desta obra, fica-se com a sensação de que a definição thriller não chega inteiramente a fazer-lhe justiça. Com um pouco mais de ênfase na segunda metade do filme e teríamos, não só um filme de terror, como o melhor desta série curta de filmes. Para fechar os anos 70, falta uma referência a duas singulares curtas-metragens de insuspeitos autores. O Construtor de Anjos (1978), do artista plástico Luís Noronha da Costa, sobre o qual escreveu João Bénard da Costa: «gothic film passado num convento em que monges sensuais assassinam as crianças que recebem, em imagens tão dependentes da fantástica pintura do Autor como do cinema inglês da Hammer, ou da tradição plástica do romantismo saxónico.». Poderia ir mais longe e afirmar que se trata de um verdadeiro filme de culto, estatuto ganho com o passar dos anos por se tratar de um corpo estranho no contexto do cinema artístico contemporâneo, ou seja, trata-se de um filme de terror. Só o simples facto de se debruçar sobre o tema do homicídio infantil, ainda mais pelas mãos de clérigos, chega para o elevar à condição de «segredo bem guardado» do cinema nacional, ajudado pelas raras vezes em que foi exibido publicamente.
A outra obra pertence à breve carreira de realizador do actor Sinde Filipe que, entre 73 e 76, realizou cinco curtas-metragens de temática fantástica, donde se destaca a adaptação do conto de Miguel Torga O Leproso. O filme narra a tragédia de um jovem agricultor que descobre padecer de lepra e que, à medida que o seu estado de saúde se deteriora e a consequente deformação física se torna mais aparente, é estigmatizado pela população da aldeia em que vive, obrigado a viver longe, nas montanhas. A conselho de uma bruxa, banha-se esperançoso em azeite, cura que se revela inconsequente e provoca a ira do jovem, direccionada àqueles que o ostracizaram. Resolve então vender o azeite em que se banhou a um merceeiro que o revende à população. A descoberta da origem deste azeite, por sua vez, desperta um sentimento de vingança nos locais, que resolvem livrarem-se do leproso, perseguido e queimado vivo. A sequência da perseguição do «monstro», ou seja, do leproso deformado, traz imediatamente à memória o clássico Frankenstein, de James Whale, e revela um potencial infelizmente não continuado de Sinde Filipe como cineasta.
Os anos 80 são marcados pelo surgimento do Fantasporto, o mais antigo festival português ainda em actividade, cuja programação incidia maioritariamente no cinema de género. A popularidade atingida por este festival revela um novo público ávido por este tipo de filmes, cujo gosto será influenciado não só por este certame, mas também pela proliferação de clubes de vídeo, nos quais se podiam encontrar títulos de terror que nunca chegavam às salas, criando um autêntico circuito alternativo de distribuição que acabaria necessariamente por mudar a percepção de uma geração que irá despontar no final do milénio.
Mas, quanto a cinema português, os anos 80 não são de boa memória, atravessado por uma crise que diminui não só a produção, como prejudicará a relação com o público português, cada vez mais afastado das imagens dos «seus» cineastas. A geração do Cinema Novo, responsável pela fundação da Escola Superior de Cinema do Conservatório, nunca se havia mostrado aberta ao cinema de género, mas antes a um conceito de cinema assente numa vertente artística distinta e fortemente alicerçada na herança da Nouvelle Vague francesa. Assim, quase nada se pode destacar nesta década à excepção de uma obra atípica na cinematografia do mestre Manoel de Oliveira; refiro-me a Os Canibais. Este filme inscreve-se de certa forma numa estética e temática próximas do filme de terror, conceito alienígena à crítica nacional que nunca ousaria em catalogar o cinema do agora centenário cineasta em «géneros menores». Mas, quem ultrapassar o preconceito em relação ao cinema de Oliveira, descobrirá uma obra única do cinema português. Adaptado da obra do escritor Álvaro de Carvalhal, trata-se uma crítica à alta sociedade aristocrática do séc. xix e assume um risco grande ao ser inteiramente cantado em ópera, por ser o modo privilegiado de comunicação desta classe social – os aristocratas não falam, cantam. A história centra-se num amor impossível entre uma bela jovem (Leonor Silveira) e um misterioso e atormentado Visconde (Luís Miguel Cintra). Impossível porque este último esconde um segredo: é, na realidade, uma máquina oca e desprovida de sentimentos, revelado numa sequência antológica em que revela o seu corpo mecânico que se desfaz em partes perante o olhar atónito da jovem na noite de núpcias do casal. Esta sequência revela a verdadeira natureza desta classe decadente, um imenso vazio de sentimentos e uma subjugação mecânica ao rito social. Tudo culmina numa sequência final em que os «canibais» mostram a sua verdadeira face, numa dança macabra em torno de uma fonte onde o cadáver de um porco foge a um grupo de viscondes e criados de caninos aguçados.
Os cinéfilos do séc. XXI são produto da cultura do pequeno ecrã. E o resultado desse novo consumo de imagens reflecte-se no auto-intitulado «primeiro filme de zombies português», a curta-metragem escrita e produzida pelo, até então músico, Filipe Melo, I’ll See You in my Dreams (2003), para a qual escolheu um realizador de outra escola, o espanhol Miguel Angel Vivas e uma equipa de efeitos especiais canadiana para adornar esta carta de amor ao cinema de terror dos anos 70 e 80. Três anos mais tarde, estreia-se com assinalável sucesso a 1.ª longa-metragem da dupla Frederico Serra e Tiago Guedes, Coisa Ruim. Com argumento do jornalista/escritor Rodrigo Guedes de Carvalho, que se inspirou nas lendas tradicionais portuguesas para contar a história de uma família urbana que se muda para o campo e sucumbe perante um segredo familiar ancestral. Como todos os bons filmes de terror contemporâneos, o tema do filme não é o diabo ou a «coisa ruim», mas antes a implosão da família moderna portuguesa, numa obra de tom bastante pessimista.
E, cem anos depois, o cinema português de terror encontra-se numa encruzilhada entre um passado confrangedor e um futuro promissor. E porquê um futuro promissor? Porque o consumo de tecnologia reduziu os custos do cinema até aos seus elementos fundamentais: uma câmara de filmar e a imaginação humana. Fazer filmes nunca foi tão fácil e acessível, e o terror nunca tão popular, principalmente entre as camadas mais jovens. No espaço de um clique, qualquer um pode ter acesso a uma infinitude de filmes de terror para ver, rever e estudar a fundo. E festivais de cinema abundam para os mostrar. Mas artista não é quem domina a tecnologia, mas sim quem possui o talento e a imaginação para pôr essa tecnologia ao seu serviço da melhor maneira. Estaremos cá para participar.
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 10, publicada em junho de 2011.