Revista Bang!
A tua revista de Fantasia, Ficção Científica e Horror, onde podes estar a par das novidades literárias, eventos e lançamentos dos teus autores de eleição.

Livros Míticos ou a Biblioteca (Quase) Invisível

por António de Macedo


Quando arranjo dinheiro compro livros.
Se me sobra algum, compro comida.

ERASMO DE ROTERDÃO


Se há mistério que exerça um fascínio irresistível é o de existirem livros, tremenda invenção, para não dizer alucinação, de um improvável antepassado nosso que, mercê de algum nebuloso trauma, criou esse eficacíssimo meio de subverter a memória. Ou, pelo menos, deformá-la ao ponto de ter de assumir outros nomes, desde «investigação histórica» a «ficções», passando por «ensaio científico», e por outras tantas fórmulas tão astuciosas quão sugestivamente enganadoras. Mistério maior que aquele, porém, é o de existirem livros que não existem, e, chegado a este ponto, importa advertir-vos que o título supra, Livros Míticos, talvez não transmita com justeza o que pretendo aqui alinhavar. Essa expressão sugere referência a mitos, ou então a livros que se tornaram «míticos» por esta ou aquela razão, mas eu estimaria ir um pouco mais longe: alguns dos livros de que vou falar-vos, não existem de todo em todo, outros existem mas são misteriosos e indecifráveis, outros ainda… mas não antecipemos.

 

Página do Necronomicon, com apropriadas manchas de sangue…

 

A tentação de inventar livros que não existem é de todos os tempos. Citemos ao acaso alguns dos milhentos autores que se divertiram a inventar livros fictícios: H. P. Lovecraft e o seu intolerável e citadíssimo, Necronomicon; Umberto Eco que, em O Nome da Rosa (1980), «descobriu» o perdido segundo volume da Poética, de Aristóteles; George MacDonald, Nelson S. Bond, Fritz Leiber, Kate Atkinson, Poul Anderson, Kenneth Bulmer, Michael Ende, James Branch Cabell, Neil Gaiman, Terry Pratchett, Caitlín R. Kiernan, Tom De Haven, Joanne K. Rowling… enfim, um «nunca-mais-acabar» de autores que criaram livros quiméricos com citações, com índices, com resumos dos conteúdos, com pormenores de edição, e até, como Jorge Luis Borges, mestre exímio dessas tropelias, misturando referências de livros verdadeiros com livros imaginários para ser maior a indestrinça entre o real e o virtual — de Borges, então, deixam-me perfeitamente magnetizado delírios como La Biblioteca de Babel, El libro de arena, Examen de la obra de Herbert Quain, Del libro de las 1001 noches, Tlön, Uqbar, Orbis tertius, El acercamiento a Almotásim, Pierre Menard autor del Quijote, etc., etc., e não posso seguir adiante sem citar os alucinatórios volumes da Biblioteca (2002), de Zoran Zivkovic, e até filmes contendo livros ora maliciosos, ora imprevisíveis (nalguns casos, mesmo, condenáveis), como os livros perigosamente comportamentais d’A Família Addams (The Addams Family, 1991), de Barry Sonnenfeld, ou os supermágicos Livros de Próspero (Prospero’s Books, 1991), de Peter Greenaway, ou ainda os tantíssimos volumes satânicos que povoam o universo audiovisual, como o diabólico livro seiscentista d’A Nona Porta (The Ninth Gate, 1999), de Roman Polanski, inspirado no recomplexo romance El club Dumas (1993), de Arturo Pérez-Reverte.

Já agora terei de confessar, contrito, o indecoroso pecado de eu mesmo, com os meus modestos recursos, tão pouco ter sido imune à lúgubre tentação de inventar livros dentro de livros, neste caso, dentro de algumas das minhas ficções, e com bibliotecas e tudo — uma delas, de dimensões pouco mais ou menos infinitas, até ostentava a impenetrável tabuleta B.D.T.L.Q.N.E. (isto é, Biblioteca De Todos os Livros Que Não Existem, mirífica biblioteca que seria o áureo sonho de qualquer bibliómano), e que precipitadamente me limitei a compartimentar em duas secções:

(1) A secção dos livros que não existem porque foram destruídos (por exemplo, os 700.000 manuscritos da famosa biblioteca de Alexandria — e que aparecem, como milhões de outros, miraculosamente recuperados na tal B.D.T.L.Q.N.E.);

(2) A secção dos livros que não existem porque nunca chegaram a ser escritos.

Escusado será dizer que esta última contém os livros mais geniais de sempre. Mas faltava — pelo menos! — uma terceira secção, que na minha precipitação, para não dizer ingenuidade, não me ocorreu contemplar. Descobri-o mais tarde num encontro casual com a escritora Rita Ferro, por ocasião do lançamento do livro de um amigo comum. No final, por altura do beberete próprio desses eventos, e enquanto cavaqueávamos num pequeno grupo de outros literatos nossos conhecidos, a conversa resvalou naturalmente para o escritor e pensador, António Quadros, pai de Rita e meu amigo de longa data (que me lembre, desde 1957), e que tinha morrido algum tempo antes, em 1993. Aproveitei para manifestar a minha pena pelo facto de António Quadros não ter chegado a escrever e publicar o terceiro volume da sua obra Portugal Razão e Mistério, cujos dois primeiros tomos, abordando o Portugal Arquétipo, passando pelo País Templário, até ao Projecto Áureo ou Império do Espírito Santo, tinham saído de rajada em 1986 e 1987, enquanto o terceiro, que prometia tratar de coisas tão palpitantes como o Mito do V Império, a Dialéctica da Portugalidade ou ainda o enigma do Portugal Encoberto, tardava em vir a lume. Por mais de uma vez, perguntei a António Quadros quando tencionava publicar o ansiosamente aguardado terceiro volume — mas ele sempre se mostrou evasivo, até que a inesperada morte em 1993, frustrou todas as expectativas. Quando a conversa aqui chegou, Rita Ferro decidiu confidenciar-nos o seguinte: também ela, em diversas ocasiões, perguntara ao pai pelo misterioso terceiro volume — estranha demora, porque, entretanto, ele não deixara de publicar outros livros —, ao que finalmente ele respondeu, quase em segredo:

— Minha filha, nunca ouviste falar em livros que não querem ser escritos? Este é um deles.

Foi então que percebi qual era a secção que faltava na minha imaginária biblioteca:

(3) A secção dos livros que não existem porque não querem ser escritos.

Aterradora perspectiva! Os livros pregam-nos cada partida… O astuto Umberto Eco já havia chamado a atenção para o pormenor inquietante de os livros comunicarem misteriosamente uns com os outros, «os livros falam sempre de outros livros, e qualquer história conta uma história já contada»1. Mas mais esquisito do que os livros dialogarem entre si, sussurrando sem descanso, no silêncio das prateleiras das bibliotecas e citando-se reciprocamente ad infinitum, como em todas as obras eruditas com abundantíssimas notas de rodapé remetendo dialogalmente para outras tantas obras, é o facto de haver livros com vontade própria que chegam ao descaramento de não existirem por não quererem ser escritos…

Quanto a mim, porém, mais grave que tudo isto é a circunstância de haver livros que existem, mas não querem ser lidos!!!

Comecemos por referir um exemplo que veio a lume no século xix. O príncipe húngaro Gusztáv Batthyány (1803-1883) emigrou muito jovem para Inglaterra, onde se tornou um conhecido criador e treinador de cavalos, tendo conseguido que alguns dos seus exemplares fossem campeões na Grã-Bretanha e na Irlanda, durante vários anos seguidos. Entretanto, e em paralelo, Batthyány manteve, na Hungria, uma activa participação política no movimento nacional Magiar, chegando a ser membro do Ministério Húngaro Constitucional de 1848. Antes disso, porém, em 1838, já havia oferecido à Academia Húngara de Ciências a sua preciosa biblioteca pessoal, completa, que se conservava na cidade (então) húngara de Rohonczi, e que, actualmente, faz parte da Áustria com o nome Rechnitz.

E aqui começam os sarilhos! É que, entre as preciosidades bibliófilas da livraria de Batthyány, encontrava-se um denso códice de 448 páginas manuscritas, em formato aproximado de 12cmx10cm, de proveniência desconhecida, que ficou catalogado com a cota K 114, sob o nome Codex Rohonczi — ignora-se o seu verdadeiro nome, que talvez nunca venha a ser revelado, e, pior!, todas as 448 páginas, excepto as que apenas contêm misteriosos pictogramas (cerca de 87), estão grafadas num alfabeto desconhecido e numa língua ainda mais desconhecida, escrita da direita para a esquerda como o árabe ou o hebraico, alfabeto e língua que têm desafiado os cérebros mais científicos, mais argutos e mais treinados em descodificar cifras e códigos impenetráveis. Desde 1840 até finais do século xix, diversos especialistas estudaram o códice, os eruditos húngaros, Ferenc Toldy e Pál Hunfalvy, o paleógrafo austríaco, Dr. Mahl, os professores Josef Jirecek e Konstantin Jirecek, da Universidade de Praga, o investigador alemão, Bernhard Jülg da Universidade de Innsbruck, e outros… Todos eles esquadrinharam o códice sem chegar a nenhuma conclusão.

 

Codex Rohonczi: págs. 51 e 51-A, com uma presumível imagem de Cristo crucificado

 

Codex Rohonczi: págs. 99 e 99-A.

 

A partir de princípios do século XX, os académicos e peritos húngaros assentaram, como hipótese mais provável, que se trataria de uma fraude forjada por um antiquário oriundo da Transilvânia (não andará por aqui a garra vampírica de Drácula?), Sámuel L. Nemes (1796-1842), conhecido autor de famigeradas falsificações de manuscritos e livros raros que chegaram a enganar os mais reputados especialistas da época. Nos anos ’70 do século XX, ainda havia autores que admitiam tal possibilidade, mas outros indícios vieram contrariar essa conclusão cómoda: o estudo pericial do papel apontou para um tipo de papel de fabrico veneziano do século XVI, conquanto possa ser cópia de um original mais antigo, talvez do século XI ou XII, além de que o exame dos caracteres parece sugerir uma antiga variante do alfabeto dácio, numa escrita semelhante ao proto-romeno.

Nos anos ’90, os estudiosos Ottó Gyürk e Miklós Locsmándy empenharam-se em intensas pesquisas com base numa grande quantidade de dados estatísticos e análises computorizadas do texto, concluindo (inconclusivamente) que, por um lado, a língua não é aparentada ao húngaro, e por outro, que não se trata de uma fraude em face das típicas regularidades próprias de uma linguagem articulada. Quem souber húngaro, queira ter a bondade de consultar o livro que Locsmándy publicou em 2005, A Rohonci Kódex: egy rejtélyes középkori írás megfejtési kísérlete. (Parece que a tradução disto é: «O Códice Rohonczi: uma tentativa para decifrar um misterioso manuscrito medieval». Como não sei húngaro, ficarei comovidamente penhorado ao caridoso leitor que me resuma o que lá se contém).

De permeio com tudo isto, e após mais umas rocambolescas peripécias eruditas, uma universitária romena, Viorica Enâchiuc, que, desde 1982, se dedicara a estudar o códice, declarou que conseguira finalmente traduzi-lo e publicou essa sua tradução em 2002, realçando as semelhanças entre certos grafismos do manuscrito e os grafismos utilizados pelos Dácios e por uma cultura que floresceu em torno do Danúbio, por volta de 1500 a.C. Nem todos porém se deixaram convencer e a polémica que já vinha de trás recrudesceu, pois se há eruditos que apoiam a tradução de Viorica como o professor N. Sâvescu, director da Universidade de Arqueologia, outros não menos qualificados consideram a tradução falsa, observando que nada permite associar os caracteres do Codex Rohonczi a qualquer alfabeto conhecido, mesmo a antigos alfabetos entretanto desaparecidos, chegando ao ponto de afirmar que se trata de uma escrita aleatória desprovida de qualquer significado, enquanto outros, ainda vão mais longe e julgam detectar todos os traços de uma escrita automática mediúmnica…

E ainda há quem se queixe das inofensivas invenções da FC&F!

E enquanto ficamos nisto, aguardando que algum génio em criptologia nos dê enfim a ler este livro que existe, mas não quer ser lido, saltemos para um outro talvez ainda mais inquietante do que o Codex Rohonczi — estou a referir-me a um dos mais debatidos e investigados «livros malditos» de sempre: o Manuscrito Voynich, documento que deve o seu nome ao antiquário e bibliófilo, Wilfrid M. Voynich (1865-1930), um anglo-americano de origem polaca, que o adquiriu em 1912.

A história deste livro misterioso (mais um dos tais que não querem ser lidos, nem a tiro de bazuca!) tem sido contada e recontada muitas vezes, com imprevistas variantes, e quem estiver interessado, pode entreter-se a folhear os seguintes compêndios onde o apetite do ávido leitor poderá ser (quase) satisfeito: Robert S. Brumbaugh, The Most Mysterious Manuscript: The Voynich ‘Roger Bacon’ Cipher Manuscript (1978); Leo Levitov, Solution of the Voynich Manuscript (1987); Gerry Kennedy & Rob Churchill, The Voynich Manuscript: The Mysterious Code That Has Defi ed Interpretation for Centuries (2005); Nick Pelling, The Curse of the Voynich: The Secret History of the World’s Most Mysterious Manuscript (2006); Lawrence Goldstone & Nancy Goldstone, The Friar and the Cipher: Roger Bacon and the Unsolved Mystery of the Most Unusual Manuscript in the World (2006); etc., etc.2

Diga-se desde já, e para evitar suspenses desnecessários, que após inúmeras investigações de reputados especialistas, o livro permanece um mistério e ainda hoje se ignora quem teria sido o seu autor, qual o tipo de escrita e em que linguagem estará redigido. Actualmente, o volume encontra-se depositado com a cota MS 408, na Beinecke Rare Book and Manuscript Library, da Universidade de Yale (New Haven, EUA), a maior biblioteca do mundo especializada na conservação e preservação de raridades bibliográficas. É um livro de 234 páginas com o formato aproximado de 23cmx15cm, sem capa, escrito com uma pena de ganso sobre «velino», ou seja, pergaminho virgem de alta qualidade, obtido a partir da pele de vitelos mortos no ventre materno. Faltam-lhe 42 páginas, que não se sabe quando se perderam. Devido a alguns aspectos obscuros que rodeiam as circunstâncias do seu (ainda) inexplicável aparecimento e do seu percurso, com contornos que prenunciam a suculenta teoria da conspiração, aqui deixo ao curioso leitor algumas (magras) pistas.

 

Manuscrito Voynich: exemplo de uma página com escrita desconhecida.

 

Manuscrito Voynich: folio 75-retro. Secção biológica: nesta secção são abundantes as ilustrações de mulheres nuas banhando-se.

 

O professor de Matemática e de Informática, Gordon Rugg (Universidade de Keel, Inglaterra), num artigo publicado em 2004, após descrever exaustivamente os métodos utilizados para decifrar o documento, adianta os seguintes esclarecimentos:

«Uma análise estatística do texto revela uma grande regularidade. As palavras mais utilizadas aparecem com frequência mais de uma vez numa linha, e o texto apresenta uma percentagem de repetições que não tem equivalente em nenhuma língua conhecida. Por outro lado, o “voynich”3 contém pouquíssimas frases em que mais de três palavras diferentes apareçam juntas. Estas características tornam duvidoso que o “voynich” seja uma linguagem humana: é demasiado diferente de todas as outras línguas. Outra possibilidade é considerar que o manuscrito não passa de um ludíbrio e de uma fraude, ou da elucubração de algum alucinado erudito. Mas a sua complexidade linguística parece contrariar esta última teoria. […] O Manuscrito Voynich não parece ser um texto em código, nem uma linguagem desconhecida, nem uma produção aleatória. Então, o que é? Para sair deste impasse, a minha colega Joanne Hyde e eu próprio, reexaminámos todas as pistas. A conclusão de que as características do “voynich” são incompatíveis com qualquer linguagem humana baseia-se numa peritagem pertinente e sólida. A impotência dos melhores criptoanalistas perante o texto torna pouco provável a existência duma mensagem oculta. Resta a hipótese da mistificação, rejeitada pela maior parte dos estudiosos, por considerarem que o Manuscrito Voynich é demasiadamente complexo para ser falso».4

 

Pormenor de uma amostra da escrita do Manuscrito Voynich.

 

Outros investigadores, invocando a Lei de Zipf 5 e observando que o texto está de acordo com esta lei, concluem que se trata de uma linguagem concreta (humana ou não-humana), uma vez que seria pouco plausível que um falsificador do século xv ou xvi 6 conhecesse uma lei da linguística que só seria formulada vários séculos depois.

Em suma, e quanto a mim, não hesito: se não é linguagem humana, ou é trapaça ou de proveniência extraterrestre. Obviamente, prefiro esta última alternativa, que melhor se encaixa nos acarinháveis devaneios da FC&F!

Apesar de os diversos relatos serem por vezes discordantes, tentemos traçar um pouco da retro-história do manuscrito. A actual proprietária, a Beinecke Rare Book and Manuscript Library, obteve-o por oferta graciosa de Hans P. Kraus (1907-1988), um conhecido comerciante de livros raros que decidiu doá-lo à Beinecke em 1969, porque não havia maneira de conseguir vendê-lo desde 1961, quando o adquirira a uma amiga da viúva de Wilfrid Voynich. Este, que falecera em 1930, legara os seus bens à esposa, Ethel Lilian Voynich, que ao falecer, por sua vez em 1960, deixara o manuscrito à sua amiga íntima, Anne Nill — a qual o vendeu em 1961, como dissemos, ao livreiro Hans P. Kraus. Voynich, por sua vez, comprara o manuscrito em 1912, ao Colégio Romano, que mantinha no palácio de Villa Mondragone, perto de Roma, a biblioteca pessoal de um antigo Superior-Geral da Companhia de Jesus, o Reverendo Peter Jan Beckx (1795-1887). Os 200 anos anteriores a esta posse são confusos e cheios de lapsos: sabe-se que o sábio jesuíta, Athanasius Kircher (1601-1680), orientalista e grafólogo, terá tido o Manuscrito Voynich na sua posse desde 1666, sabendo-se igualmente, por umas cartas encontradas, que antes disso o manuscrito fora comprado por Rudolfo II de Habsburgo (1552-1612), imperador do Sacro Império e rei da Boémia e da Hungria, que pagou por ele, a quantia de 600 ducados de ouro, convencido que o autor do manuscrito seria Roger Bacon (1214-1294). Finalmente, parece haver dois candidatos ao título de proprietário mais antigo do manuscrito: o alquimista Georg Baresch, que vivia em Praga no século xvii, e o misterioso sábio isabelino John Dee (1527-1609).

O professor Gordon Rugg, que citei mais atrás, perfilha esta última hipótese, com a qual me inclino a concordar. Se havia alguém no mundo capaz de possuir esse manuscrito e de tentar decifrá-lo, seria, sem dúvida, o profundo erudito John Dee, matemático, astrólogo, criptógrafo e mágico, que ainda por cima tem sobre os restantes candidatos a vantagem de ter mantido longas e sugestivas conversações com seres supraterrestres (anjos?) numa linguagem alegadamente celeste, a Língua Enochiana. O conhecido autor americano de FC&F, Lin Carter (1930-1988), declarou que John Dee seria o único capaz de traduzir o Necronomicon, caso este livro realmente existisse, e não esteve com meias medidas: após ter «descoberto» essa tradução de Dee — publicou-a na íntegra! (Não me surpreende, Lin Carter era capaz de tudo, até escreveu coisas com o tortuoso pseudónimo H. P. Lowcraft…)7

Tenho alguns dos livros escritos por John Dee, três dos quais em edições fac-similadas das edições do século xvi, e um dia talvez escreva um artigo totalmente dedicado a este extraordinário personagem, que bem merece. Uma das suas obras, sobretudo, promete conhecimentos supranaturais a quem souber interpretá-la; foi editada em Londres, em 1564, e intitula-se Monas hieroglyphica: Mathematice, Magice, Cabalistice, Anagogiceque, explicata [«A Mónada Hieroglífica: Explicada Matematicamente, Magicamente, Cabalisticamente e Anagogicamente»]. Estudei os seus 24 Theoremae de trás para diante e de diante para trás, e confesso que não me senti agraciado com um sensível acréscimo de iluminação, porque não entendi nem oito por cento. Fracasso que se deve, sem dúvida, à minha notória incapacidade para penetrar tais arcanos. Mas quem conseguir entendê-lo, de acordo com a advertência de Dee no frontispício, «Qui non intelligit, aut taceat, aut discat»8, decerto estará em condições de realizar os mais inacreditáveis prodígios.

 

John Dee aos 67 anos. Retrato do século XVI, por artista desconhecido.

 

Glifo hermético de John Dee, interpretado cabalisticamente no seu tratado Monas hieroglyphica (1564).

 

A forma como o Manuscrito Voynich chegou às mãos de Dee é nebulosa, e tem sido relatada de várias e diferentes maneiras. Darei a seguir a versão que me parece mais plausível. Arthur Dee (1579-1651), filho de John Dee e médico do rei Carlos I de Inglaterra, acompanhou o pai nas suas viagens através da Alemanha, Polónia e Boémia, escreveu uma colectânea de textos de alquimia, Fasciculus chemicus (1629), e revelou que um manuscrito enigmático teria sido entregue ao seu pai pelo primeiro duque de Northumberland, que saqueara um grande número de mosteiros e trouxera o manuscrito juntamente com uma vasta colheita de outras preciosidades. John Dee possuía a reputação de ser um coleccionador entusiasta de livros estranhos e um criptógrafo de alto calibre, reputação — aliás, merecidamente justificada — que levara o duque a procurá-lo para que decifrasse o tal escrito e descobrisse os espantosos segredos que certamente conteria.

De que natureza seriam esses segredos não fazemos ideia, mas a convidativa teoria da conspiração sopra-nos ao ouvido que «alguém» se empenhou em travar as diligências que Dee empreendeu para os descobrir. Basta pensarmos na catadupa de desgraças que sobre ele se abateu desde que iniciou a tarefa de tentar descodificar o documento, a começar por perseguições inexplicáveis e assaltos à sua casa em Mortlake, visando preferencialmente a sua enorme biblioteca (mais de 3.000 volumes impressos e 3000 manuscritos), devastada por roubos e vandalizações que arruinaram todo o acervo de livros e manuscritos raros, incluindo as suas preciosas anotações pessoais. Tudo isso desapareceu e somente resta uma escassa meia-dúzia de livros que se conserva na St. John’s College Library (University of Cambridge)9. Para culminar, registe-se o pormenor assaz suspeito de lhe ter aparecido um persuasivo personagem que muito impressionou Dee com as suas capacidades supranaturais… Dee teve a infeliz ideia de se associar com ele para progredir nas suas pesquisas — e esclareça-se, de imediato, que se tratava de um escroque chamado Edward Talbot (1555-1597), condenado por vários crimes e que se intitulava clarividente, e capaz de realizar as mais espectaculares proezas alquímicas, além de falar com espíritos superiores e de visionar prodígios num cristal.

Como todos os grandes génios místicos, Dee era um crédulo e confiava piamente na sinceridade das pessoas e, nem é preciso dizê-lo, foi enrolado por esse aldrabilhas, que mudou o nome para Edward Kelley e explorou John Dee até onde pôde, acabando por deixá-lo quase na miséria. Dee casara em segundas núpcias, aos 51 anos, com a jovem e apetecível Jane Fromond, que tinha então 23, e o ardiloso Kelley, após uma sessão mediúmnica na Boémia, disse a Dee que o anjo Uriel, com quem estivera em contacto, dera ordem para que os dois homens compartilhassem as respectivas esposas, o que certamente propinou uns bons momentos a Kelley e umas grandes angústias a Dee, que, segundo parece, não duvidou da autenticidade da prescrição angélica e consentiu que o trato fosse levado por diante. Afortunadamente, os dois homens separaram-se pouco depois, Kelley prosseguiu a sua carreira de alquimista mas não conseguiu produzir ouro para o imperador Rudolfo II, que o encarcerou na torre do Castelo Hnevin. Kelley acabou por morrer estupidamente porque ao tentar fugir escorregando por uma corda, esta era curta de mais e ele precipitou-se quando ainda se encontrava a meio da descida da altíssima torre.

John Dee, por sua vez, não conseguiu decifrar o misterioso documento — «um livro contendo um texto incompreensível», segundo testemunho do filho, Arthur Dee. (Não conseguiu ou não o deixaram?) Para repelir o espectro da miséria, John Dee vendeu os poucos livros que lhe restavam, incluindo o Manuscrito Voynich, que foi comprado pelo imperador Rudolfo II, como se disse atrás, por 600 ducados de ouro.

Mas a história não acaba aqui. Das inúmeras tentativas que se conhecem para decifrar o manuscrito, duas há que teriam estado muito perto da solução — a de John Dee e a de um outro erudito, o professor William Newbold, que veremos a seguir. Em ambos os casos, ambos os autores parecem ter sido «dissuadidos» de levar a tarefa a bom termo. William Romaine Newbold (1865-1926), antiquário, especialista em criptografia e professor de filosofia, na Universidade da Pennsylvania, tornara-se conhecido pelas suas pesquisas e descobertas no campo das antiguidades e na decifração de línguas antigas. Newbold entrou em contacto com o manuscrito em 1919, quando este se encontrava na posse de Wilfrid Voynich, e, em 1921, declarou que descobrira a chave que descodificava o documento. Declaração obviamente sensacional, tanto mais que Newbold começou a proferir uma série de conferências, em 1921 e 1922, explicando o seu método baseado numa hipótese singular: o texto visível não tem em si nenhum significado, mas cada letra aparente não passa de um minucioso constructo de pequeníssimas marcas apenas discerníveis sob potente ampliação. Estava convencido que o autor do texto teria sido Roger Bacon, o famoso monge inglês do século xiii,que tem a seu crédito numerosas descobertas científicas, e, segundo Newbold, muitas delas inéditas e somente acessíveis a séculos vindouros. É claro que a comunidade científica, sobretudo arqueólogos e paleógrafos, rejeitou o método de Newbold, tal como rejeitou a sua peculiar visão das capacidades inventivas de Bacon, que, se por um lado advogou e incentivou, nos seus trabalhos, a ciência experimental, por outro lado não poderia, nem por sombras, ter sido o autor do manuscrito.

Todavia, e durante os poucos anos de vida que restaram a Newbold após as suas sensacionais revelações, houve cientistas que o levaram a sério, nomeadamente os que tinham assento com ele em sociedades académicas respeitáveis como o Classical Club of Philadelphia, a American Philosophical Society, a Society of Biblical Literature e a American Oriental Society. Mas, de súbito, todos deram o dito por não dito e o próprio Newbold interrompeu a continuidade das investigações, até que a sua morte em 1926, encerrou silenciosamente o assunto. Subsistem, em todo o caso, algumas perplexidades por esclarecer, como certas frases «traduzidas» do Manuscrito Voynich e que Newbold ainda conseguiu publicar, por exemplo: «Vi num espelho côncavo uma estrela em forma de caracol. Encontra-se entre o umbigo de Pégaso, o busto de Andrómeda e a cabeça de Cassiopeia…», ou ainda passagens que fazem alusão ao «segredo das estrelas novas».

Mesmo aceitando a teoria dos cépticos de que o manuscrito não passa de uma fraudulência do século xvielaborada talvez por John Dee ou por um herbolário da Boémia, Jacobus Sinapius, contemporâneo de Dee, se nele se revela o segredo energético das novae e dos quasars, tal hipótese dá azo a perspectivas pouco risonhas, e, como observava o passarão do Jacques Bergier (malamado da intelligentsia bem-pensante, mas dotado de um irresistível sentido do humor), mais vale que o manuscrito permaneça indecifrável antes que ponha ao alcance de qualquer curioso (leia-se: qualquer terrorista) uma fonte de alta energia superior ao actual poder nuclear. Suspeito em todo o caso que este receio seja infundado: felizmente, e apesar das fugas e vendas clandestinas de material radioactivo da ex-União Soviética, ainda ninguém conseguiu — que eu saiba, se estiver enganado, por favor, corrijam-me — fabricar uma bomba atómica no forno de micro-ondas lá de casa.

Por outro lado, a referência a Andrómeda não deixa de ser embaraçante: que espécie de aparelho seria o tal «espelho côncavo», capaz de perscrutar os abismos cósmicos a ponto de descobrir que a nebulosa de Andrómeda (hoje conhecida como galáxia de Andrómeda, ou M31, ou ainda NGC 224) tem forma de caracol (espiral) e se encontra precisamente no local indicado pelo estranho livro? Se é verdade que este corpo celeste já era conhecido dos antigos astrónomos persas, que se lhe referiam como uma «pequenina nuvem», somente em 1887 é que o astrónomo Isaac Roberts descobriu a sua forma espiralada, mediante fotografias de longa exposição.

Folheando o livro, e através do exame das gravuras — já que, pelo texto, nada se fica a saber —, parece poder deduzir-se que o Manuscrito Voynich está dividido em secções específicas: herbolária e botânica, astronómica, cosmológica, farmacológica e uma colecção de receitas. Entre as muitas gravuras dessas secções, podemos ver, por exemplo, reproduções minuciosas e pormenorizadas de plantas que não existem no nosso planeta; mulheres nuas banhando-se em tinas ou talvez aquários, ou nadando através de estranhas tubagens assaz elaboradas e aparentemente orgânicas; diagramas cosmográficos, alguns desenhados em cartas desdobráveis, contendo símbolos astronómicos, ora circulares, ora com outras formas, e esquemas com conjuntos de estrelas onde algumas constelações são reconhecíveis, mas outras parecem diferentes ou estranhamente distorcidas.

Assim sendo, vejo-me constrangido a corrigir a minha suposição de há pouco, da proveniência extraterrestre do manuscrito: o mais certo é ter vindo, afinal, de uma outra dimensão, ou de um universo paralelo ligeiramente desfasado em relação ao nosso. Ainda por cima, se alguém ou alguma coisa o conseguiu transportar até cá, é de temer que o livro contenha a «receita» da construção da «porta» (a famosa porta Z!) que permite a passagem em ambos os sentidos… Deus nos defenda de semelhante perigo! Já estou a transpirar.

Se me dão licença sigo adiante, e como o tema dos «livros míticos» é pouco menos que inesgotável, reservarei para um próximo artigo, se ainda me restarem forças e alguma sabença, outros livros não menos esquisitos e excitantes, como, por exemplo, os enigmáticos e (talvez) inexistentes livros que são mencionados em certas passagens da Bíblia, ou os chamados «falsos documentos», livros tão falsos, tão falsos, mas tão bem informados que parecem perturbadoramente verdadeiros (sem dúvida associados à inevitável teoria da conspiração…) — vejam-se, por exemplo, os Monita Secreta [«Instruções Secretas dos Jesuítas para o Domínio do Mundo»] (1614), os Protocolos dos Sábios de Sião [«Instruções Secretas dos Judeus para o Domínio do Mundo»] (1903), os Hitlers Tagebücher [«Diários de Hitler»] (supostamente descobertos em 1945 e publicados em 1983), etc., etc.

Mas não só. Outros há, ainda, que nos põem a imaginação num fervedouro… mas deixemo-los para o tal próximo capítulo que acima vos prometi.


  1. Umberto Eco, Porquê «O Nome da Rosa»? [Postile a «Il Nome della Rosa», 1984], Lisboa: Difel, 1984; pp. 20-21..

  1. Até há pouco tempo, estes e outros títulos congéneres podiam ser encontrados na Amazon.com.

  1. “Voynich”: nome convencionalmente atribuído à suposta língua em que teria sido redigido o documento.

  1. Gordon Rugg, “The Voynich Manuscript: An Elegant Hoax?” in: Cryptologia, vol. 28, n.º 1, Jan. 2004.

  1. Lei de Zipf: — Em todas as línguas conhecidas, o comprimento das palavras é inversamente proporcional à sua frequência de aparecimento, ou seja, quanto mais vezes aparece uma palavra num idioma, mais curta é.

  1. O máximo que se conseguiu apurar, pericialmente, é que o documento Voynich teria sido escrito entre 1450 e 1520.

  1. Essa tradução tem por título “The Necronomicon: The Dee Translation Annotated by Lin Carter”, e vem incluída, na íntegra, em: Robert M. Price (org.), The Necronomicon: Selected Stories and Essays Concerning the Blasphemous Tome of the Mad Arab. VvAa. A Chaosium Book, 1996; pp. 130-198.

  1. «Quem não compreende, ou se cale, ou aprenda».

  1. O último exemplar da perdida livraria de John Dee, e por sinal da autoria deste, foi descoberto e doado à St. John’s College Library em Junho de 2009. Tem por título: General and rare Memorials pertayning to the Perfect Arte of Navigation (London, 1577).

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da
revista BANG! n.º 7, publicada em fevereiro de 2009.

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More

%d bloggers like this: