Por Vasco Curado
Publicado originalmente na Revista Bang! 1, Março de 2006
Poucos repararam no cargueiro que cruzou lentamente o rio e foi encostar na Doca de Alcântara. Com dificuldade se lia na amurada o nome Santa Irene. Elementos da capitania do porto fizeram averiguações a bordo. O cargueiro procurava urgentemente onde atracar para proceder a reparações. Navegando com a bandeira panamiana, servia uma empresa sediada na Malásia. O armador foi contactado e descobriu-se que falira. Ninguém estava interessado em reclamar a posse do navio, que ia ter de aguardar decisões a seu respeito. O comandante e os seus imediatos tiveram permissão para deixar o navio entregue à administração portuária. Entregaram também à responsabilidade desta o resto da tripulação, que permaneceu embarcada. Uma frota de camiões veio recolher a carga, constituída por várias toneladas de peças de automóvel. Complicações legais, que se adivinhavam morosas, levaram a que se procurasse outro local onde o navio pudesse permanecer a título indefinido. Os agentes portuários rebocaram-no para um cais encerrado na parte oriental da cidade, zona ignorada dos lisboetas, cheia de antigos parques industriais e fábricas desactivadas. O cais, longe do bulício e da agitação diária da cidade, consiste num empedrado rude e esburacado, escadas de pedra cujos degraus, cobertos de limos, vão desaparecer nas águas, e ruínas de armazéns. Os tripulantes que restavam do Santa Irene olharam para aquelas paredes estropiadas, tectos desabados, montes confusos de entulho e estuque, papelão rasgado e molhado da chuva, restos de madeiras e sacos de plástico, a erva daninha e as urzes a crescer entre as fissuras das paredes e dos restos de tecto onde escorria humidade. Eram cerca de trinta pessoas, todas originárias, dizia-se, de um arquipélago do Pacífico e que se empregavam, aos milhares, como tripulantes marítimos espalhados por todos os oceanos. Uma observação mais atenta por parte das autoridades poderia levantar a suspeita de intentos de e- migração. Vendo-se negligenciadas tanto pelos antigos patrões como pela cidade que, a contragosto, as remetera para um cais arruinado, passaram a desprezar a cidade que por sua vez as desprezava. Alimentavam-se sobretudo da pesca proporcionada pelo rio. Condutas enferrujadas de armazéns próximos forneciam-lhes água. A pouco e pouco, transferiram a sua vida do cargueiro imobilizado para terra. Limparam o entulho, consolidaram algumas paredes, fortificaram alguns tectos. Os materiais que usavam eram, principalmente, peças do próprio navio, que, durante semanas, meses, anos, foi sendo desmantelado como o grande corpo de um animal morto descarnado pela rapacidade de outros. Grandes chapas metálicas eram arrancadas do cargueiro e atiradas para o cais, indo integrar-se nas ruínas como paredes, tectos, portas, janelas, chão. Fragmentos e pedaços diversos do navio iam acoplar-se às ruínas, ao ponto de estas se transformarem em casas extravagantes, misto de barco e de habitação terrestre. A população revelava um extraordinário engenho prático. Tudo o que pertencera ao navio tinha algum aproveitamento. Muito lentamente, à medida das necessidades, o navio ia ficando mais e mais decomposto, a sua substância revela-se moldável, trabalhável, ia integrar-se organicamente noutros materiais das ruínas, numa fusão criativa e útil. O que fora o Santa Irene chegou ao ponto de ser uma estrutura que se diria esquemática e irredutível, baloiçando ao sabor das ondas que batiam no cais, chiando e gemendo a partir das juntas cada vez mais desagregadas. De vez em quando, pedaços desse magnífico esqueleto separavam-se e desapareciam no fundo do rio. Mas mesmo essa estrutura não era ainda a coisa final, porque a população decompunha-a ainda mais, fraccionava-a, transformava-a em habitações, cercas, barreiras, pavimentos. O navio que, um dia, entrara a barra era só uma vaga recordação da cidade, um acontecimento perdido em registos burocráticos, acontecimento do qual já se podia duvidar ou sobre o qual se podiam tecer versões fantasiosas e contraditórias. A aldeia, que surgira dos materiais recompostos do navio e das ruínas, mantinha-se aninhada entre cercas fechadas a cadeado das fábricas abandonadas, lixeiras e esgoto do rio. Os seus membros eram agora muito mais numerosos; havia muitas crianças, numa multiplicação que se revelava fecunda. Alguns curiosos espreitavam ocasionalmente, mas do interior do reduto não vinha nenhuma saudação de boas-vindas e iam-se embora. Movimentos cívicos e políticos interessaram-se por aquelas pessoas que sobreviviam em condições que se supunham degradadas e aviltantes para o género humano. Comissões de visitantes foram rechaçadas pelos habitantes do lugar, pouco dados ao civismo e à política. Lisboa relegara-os para ali, para uma zona de despejo, com o desconforto das soluções provisórias que ameaçam tornar-se definitivas. A cidade parecia agora querer incorporar aquele objecto estranho. Havia uma tendência crescente para se falar do assunto, quando se reacendia o debate sobre a reabilitação da orla fluvial e o seu planeamento. A cidade renova-se por digestão: torna sua a substância que era estranha. As forças e energias da cidade aproximavam-se e afastavam-se, num misto de interesse e repugnância. Um vereador camarário e um jornal fizeram uma investigação sobre os forasteiros. Reagrupando factos e testemunhos de agências marítimas internacionais, puderam apurar o pouco que se sabe sobre eles. Trinta anos antes, a ilha do Pacífico sul de que são originários sofrera um cataclismo vulcânico e desaparecera no mar. O mesmo vulcão que, numa era para lá da memória histórica, fizera a ilha, agora destruía-a, deus irado que cria a vida e a morte como actos que estão para além do controlo e compreensão dos humanos. A multidão de sobreviventes fugiu à derrocada, ao fogo, às cinzas, ao tsunami, em pequenas embarcações, começo de um êxodo que se espalharia por todas as partidas do mundo como ondas concêntricas e cada vez mais dispersas, mais diluídas. Empregaram-se na sua maioria a bordo de navios, sobretudo cargueiros. Tornaram-se conhecidos dos armadores de navios pela sua capacidade de trabalho, resistência, agilidade e conhecimento das coisas marinhas. Quando um destes indivíduos revelava a sua origem não encontrava dificuldades em empregar–se a bordo. Preferiam os cargueiros, o que se explica talvez pelo seu carácter pouco sociável: não têm de agradar a passageiros, concentram-se inteiramente nas manobras e manutenção do navio, na carga a ser recolhida num porto e largada noutro. Onde quer que se encontrem estes indivíduos, formam um grupo coeso, fechado sobre si mesmo, cioso das suas características enquanto elementos de um povo e de uma cultura. No fundo de porões, nos cantos mais escuros de conveses, organizam os seus misteriosos cultos religiosos, onde nenhum estranho é admitido. Consta que na sua língua, que não pertence a nenhum grupo linguístico conhecido da zona do globo de onde provêm, evocam divindades marinhas, que culturas vizinhas consideram monstros, numa mitologia cujos temas recorrentes falam de cataclismos, ciclos de destruição e germinação, a dissolução de continentes no mar, o regresso à vida aquática e às origens submarinas. À luz da mitologia, a catástrofe que apagou a sua ilha do mapa pode ser encarada como um evento esperado – um evento inevitável e necessário. A investigação recuperou uma história a que a imprensa mundial deu algum eco, há quinze anos. Um cargueiro neozelandês divulgou as atribulações da sua viagem, que consistiram em dois acontecimentos perturbantes. O primeiro foi o desaparecimento de dezoito membros da tripulação, todos eles da mesma etnia dos do Santa Irene, em pleno alto mar. Nas circunstâncias, só havia uma alternativa a estar no navio: o mar. Não se encontraram vestígios de terem usado um escaler ou construído uma jangada, nem razões para o fazerem. O que pensar disto? Suicídio colectivo? Só se sabia que, nas últimas noites, se tinham intensificado as suas reuniões exclusivas, as suas missas e orações numa língua ininteligível, que ocorriam num compartimento do porão só usado por eles. O comandante e o resto da tripulação estavam transtornados com este desaparecimento em massa, totalmente inexplicável, quando se deu o segundo acontecimento: na noite seguinte, que era a primeira da Lua cheia, avistaram perto de uma vintena de golfinhos, ou algo parecido, a nadar ao largo, fazendo emergir à superfície as suas cabeças irreconhecíveis, como que a fitar a Lua. Não pareciam ser golfinhos, aliás raros naquelas paragens. Não se pareciam com nada. As testemunhas oculares não podiam ter qualquer certeza, dada a distância e a luz enganadora do luar reflectida nas ondas instáveis. Posto isto, desapareceram. Eis tudo o que foi possível apurar sobre a origem e a história de pessoas como aquelas que viviam isoladas no cais decadente. Eram elementos de um povo à beira da extinção, dispersos pelo mundo, principalmente pela parte aquática deste. Talvez o mesmo estivesse a acontecer noutros navios e noutros cais. De qualquer forma, a investigação não produziu mudanças no regime de vida daquela gente e o interesse social e jornalístico esmoreceu também. Circulavam boatos sobre quem seriam aquelas pessoas e a que actividades se entregariam no seu isolamento suspeito. Os boatos que passavam de boca em boca, regressando transformados às fontes originais, diziam que eram contrabandistas e traficantes de droga. Outros garantiam que se dedicavam à magia negra e comiam crianças. Por toda a parte contavam-se histórias lúgubres e improváveis sobre os estrangeiros que viviam ao pé do rio. Era frequente aparecerem pessoas a contar que, tendo ido passear próximo daquela zona, ouviram gritos em línguas estranhas ou sentiram o cheiro de carne queimada que bem podia ser humana. As autoridades municipais perceberam que se estava a carregar de modo perigoso o tom de hostilidade. Decidiram tomar o recinto como uma habitação ilegal e desmantelá-lo, a fim de realojar os habitantes num bairro social. A oposição das pessoas do Santa Irene não foi suficiente para evitar a invasão. Foram expulsas das suas casas, que causaram a maior estranheza a quem as viu ainda de pé, o que forneceu mais factos incompreensíveis à imaginação exaltada da cidade. As casas foram deitadas abaixo e todo o entulho removido. As grades e cercas envolventes foram reforçadas com cadeados novos. A população, desbaratada, recusou ser absorvida na cidade e refugiou-se numa pequena praia no outro lado do Mar da Palha, batida por um vento agreste, protegida pela variação da maré e por charnecas de difícil travessia. Disse-se que foram para ali a nado, homens, mulheres e crianças, novos e velhos, testemunho que, todavia, não colheu crédito. As autoridades, ridicularizadas pela opinião pública (que antes se assustara e agora se divertia), adiaram novamente a resolução do problema. O que queriam aquelas pessoas? Porque recusavam ser integradas? De que viviam naquela praia, em condições ainda mais precárias do que antes? Enquanto crescia, sem solução à vista, este sentimento de tensão, apareceram em várias escolas e infantários alguns sinais inquietantes: uma quantidade inesperada de desenhos feitos pelas crianças onde se representavam rituais canibais, ou seres metade humanos e metade peixes atacando a cidade. A psique infantil, mais próxima daquelas camadas inconscientes que são um património da espécie, está mais capaz de reconhecer certas realidades que a civilização quis apagar, bem como os seus símbolos. Seriam os desenhos espontâneos das crianças a reemergência, sobre uma folha de papel, de uma memória marinha antiquíssima, eco das vicissitudes pré-históricas do planeta, das suas convulsões geológicas, climáticas e bioquímicas? Uma reminiscência confundida com a massa do nosso sangue e a sua origem salina e aquática; pertencente, enfim, aos estratos mais profundos do inconsciente colectivo, que continua a produzir as suas emanações em busca de uma reactualização, de uma repetição cíclica inscrita no devir íntimo da matéria. A incredulidade é a reacção mais frequente a quem se depara com esta terrível hipótese. Contudo, o que ela tem de terrível não deve fazer esquecer o que tem de verdadeiro. De diferentes pontos era possível avistá-los, exímios nadadores, sobre as ondas, durante horas seguidas, especialmente em noites enluaradas. Dir-se-ia que tinham encontrado o seu elemento. Um barco da polícia marítima começou a rondar a praia. Lançava a luz de holofotes potentes sobre a área, o que causava agitação nos forasteiros – que, aparentemente, se tinham conformado com uma existência dentro da água! Uma noite o barco da polícia marítima foi visto, desgovernado, a bater contra um banco de areia, onde encalhou. Outro barco policial, e duas embarcações de pesca, aproximaram-se para o resgatar. Os corpos dos três polícias foram encontrados na água. Observou-se um golpe profundo na garganta de cada um deles, produzido por um objecto cortante, uma faca ou uma garra. Foi montado um cerco gigantesco a toda a zona, com bases de apoio numa e noutra margem do rio. À procura dos forasteiros, as autoridades olhavam instintivamente para a barra do Tejo – e para o mar invisível para além dela. Lançou-se o alerta da vigilância costeira e marítima, no pressuposto de que era para o litoral, para o mar livre, que eles tinham ido. Numa das noites da busca, uma sentinela do Forte do Bugio contou que viu deslocar-se em direcção ao mar, e em grande velocidade, algo que lhe pareceu um cardume, de uma espécie que não pôde identificar. Contavam-se entre setenta e oitenta cabeças, que assomavam à superfície e quase pareciam humanas. Entre setenta e oitenta era, precisamente, o número de pessoas procuradas. Alguém quis acreditar que na sua fuga precipitada aos holofotes, e após terem perpetrado o homicídio dos polícias, os forasteiros adentraram o mar com escassos meios e ter-se-ão afogado. No entanto, nenhum corpo deu à costa.