Publicado originalmente na Revista Bang! 1, Novembro de 2006
Numa época prenhe de efemérides comemorativas, poucos se parecem ainda ter recordado que 2006 marcará o octogésimo aniversário da criação do género “ficção científica” e, provavelmente, da primeira tentativa estrutural de definição do mesmo, por mãos de Hugo Gernsback. Com efeito, no editorial da revista Amazing Stories, de Abril de 1926, Gernsback definia “scientifiction” como “o tipo de história escrita por Jules Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe – um romance encantador, misturado com factos científicos e uma visão profética”, acrescentando ainda que “não só estas histórias são uma leitura tremendamente interessante, como divulgam conhecimento de uma forma agradável. As aventuras que nos são apresentadas hoje nas histórias de cientificção, podem muito bem acontecer no mundo de amanhã”. Não quer isto dizer, obviamente, que a Ficção Científica (FC) nasceu em 1926; esta terá nascido, de forma mais ou menos reconhecível, com Verne e Wells, embora afloramentos anteriores, mas não pacíficos, se pudessem encontrar já em Robinson Crusoe (1719), Frankenstein (1818) ou na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849). E nem sequer o termo “ficção científica” foi criado nessa data; Gernsback referia-se a scientifiction, apenas adoptando o termo “ficção científica” em 1929 (termo que, por sua vez, fora utilizado pela primeira vez por William Wilson na sua obra A Little Earnest Book Upon a Great Subject (1851), embora não num sentido que hoje reconhecêssemos como adequado). No entanto, seria demasiado negligente olvidar que a FC é, na sua essência, uma colagem de géneros e modos que lhe são anteriores e, em determinados casos, já perfeitamente consolidados, cabendo a Gernsback o mérito de primeiramente ter sentido a necessidade de criação de uma categoria editorial que agregasse tão díspares elementos, convertendo-os num veio incontornável da literatura do Século XX. Talvez por isso, a celebração destes 80 anos de existência do “género FC”, nos merecesse uma breve reflexão sobre o seu estado actual, não no seu panorama global – quer internacional, quer nacional (razões de espaço e sintetismo impedem-nos esse exercício) – mas de uma perspectiva que, estamos em crer, não é normalmente apercebida entre as hostes de fãs portugueses (por muito escassas que elas sejam). Habituados a ver a FC ser tão mal tratada e negligenciada entre nós, torturada em colecções impessoais e pouco criteriosas, e meio aturdidos pelas novas que nos chegam do exterior com a canção fúnebre do seu óbito, não nos apercebemos de um queixume distinto, que se faz ouvir baixinho, mas porventura com um grau de importância inteiramente desproporcionado. Refiro-me à queixa que repetidas vezes ouvimos dos nossos cientistas e divulgadores da ciência, muitos professores universitários, muitos outros com acesso à televisão, e que parece manifestar um crescente e inevitável divórcio com o género literário que, imaginávamos, lhes seria mais próximo. Hoje já não se escreve FC como antes, suspiram; que saudades de quando a FC era escrita por cientistas, lamentam, e, inevitavelmente, deixam escapar os nomes de Asimov, ou Clarke, como expoentes dessa desaparecida FC, cuja ausência os empurra para longe do género. E se numa primeira reacção somos levados a ignorar tais protestos como o manifestar de um certo saudosismo por uma mítica idade do ouro, frequentemente ligada às memórias pessoais da infância de cada um, o facto de tal queixume irromper de uma diversidade tão grande de gargantas devia-nos levar a uma consideração mais atenta, pelo menos enquanto sintoma de que padece a FC em Portugal, não só no nível criativo/autoral, mas no plano mais vasto da percepção do próprio género por parte dos seus destinatários principais, os leitores. Sintoma que somos obrigados a reconhecer se queremos, um dia, consolidar um gosto por tal género literário. Impor-se-ia, então, e em primeiro lugar, interrogar-nos sobre qual é a FC cujo desaparecimento é lamentado por estas vozes tão díspares. A frequente referência a Asimov, Clarke e outros autores da Golden Age Campbelliana (1938-1946) permite-nos desde logo intuir algo sobre o modo em questão; no entanto, o facto de Clarke ainda se encontrar esporadicamente activo, e de Asimov ou Heinlein terem continuado a escrever até às suas mortes (respectivamente em 1992 e 1987), produzindo obras em determinados casos bastante distintas das que assinavam nos seus anos áureos (para melhor e para pior, consoante os gostos de cada um), obriga-nos a apertar um pouco mais o crivo da interrogação que nos propomos responder. Ora, uma dessas vozes, que se faz ouvir de forma mais ponderada e articulada, e à qual podemos ir buscar algumas indicações úteis ao nosso propósito, é a de António Bettencourt Viana. No prefácio à sua colectânea Histórias de Espantar (Vega, 2004), o autor escreve que “a ficção científica poderia ser um excelente instrumento educativo se, sem descurar imaginativas aventuras, um pouco de enredo e algo de embelezamento literário, tivesse como primeira preocupação a verosimilhança.” Como veremos mais adiante, esta concepção é sintomática de um entendimento da FC que não poderemos aceitar inteiramente, mas para o caso sub judice, importa-nos, acima de tudo, atentar na gradação do enredo (“…um pouco…”) e do embelezamento literário (“…algo de…”), e na relação entre “instrumento educativo” e “verosimilhança”. Da tensão subjacente à articulação que Bettencourt Viana faz destes conceitos (deixando transparecer, para o leitor atento, aquela que foi uma das principais clivagens nas fileiras dos autores de FC nestes últimos 80 anos), parece-nos lícito concluir que as vozes de que vimos cuidando se referem ao desaparecimento do tipo de narrativas que, durante muitos anos, foram conformadoras do núcleo da FC – quiçá da própria identidade do género – ou seja, aquilo que normalmente designamos como FC HARD. Ao fim e ao cabo, independentemente da definição com que queiramos limitar os contornos da literatura de extrapolação científica, esta sempre foi, essencialmente, uma “expressão de dois elementos comuns na cultura ocidental: (1) a fé Baconiana de que pela investigação sistemática da natureza, o homem consegue dominar os segredos do universo desconhecido, assim melhorando a condição humana; e (2) a convicção de que o universo é um mecanismo, indiferente ao homem e desprovido de qualquer plano ou propósito divinos”.(1) A FC Hard preocupa-se, assim, com a depreciada beleza da verdade, e do prazer que se encontra na sua busca – e obtenção – por meio do processo de descoberta científica. A razão primordial que nos leva às páginas da FC é a comunhão de uma exploração figurativa dos mecanismos do Universo, por meio da razão e da “investigação sistemática da natureza”, conforme ela é levada a cabo por personagens que, a mais das vezes, não passam de meros clichés que empurram a narrativa rumo àquele significativo momento do Eureka! que constituirá o seu clímax. Já tacteada por Gernsback, seria afirmada no reinado de Campbell como director da Astounding Stories (actualmente Analog), onde o termo seria cunhado por P. Schuyller Miller no final dos anos 50, como tronco central da Ficção Científica, se não mesmo como único tronco da Ficção Científica. Algo que apenas se pode compreender, se atentarmos no quase absoluto domínio que este gigante editorial exerceu até aos anos 50, altura em que outros editores igualmente carismáticos, como Healy, McComas e Boucher, e depois Moorcock nos anos 60, tomaram as rédeas das suas próprias publicações e conduziram a FC a outros rumos e paragens. Hoje em dia, por via de contingências de mercado, condicionantes sociológicas, géneros concorrentes e perspectivas estéticas opostas, a FC Hard encontra-se arredada do papel central que desde sempre desempenhara no cânon do género. Com efeito, a mudança de milénio pareceu processar-se num clima de confusão intelectual quanto à possibilidade de alcançar o conhecimento de uma verdade objectiva, quando não mesmo de dúvida profunda quanto à existência de uma tal verdade. Sob o ímpeto alucinado das escolas de pensamento francesas, o conhecimento científico e a própria ciência são equiparadas enquanto instrumentos de interpretação do real a uma panóplia de mundividências subjectivas, nas quais se encontram as perspectivas mitológicas arcaicas, a religião, e mesmo as filosofias pop dos new agers.(2) Uma tal envolvente cultural é pouco propícia ao desenvolvimento de uma literatura de carácter fantástico, onde a natureza desse mesmo carácter fantástico assenta na possibilidade não só de conhecimento objectivo do real, mas de extrapolação, com carácter de realismo, das condições desse mesmo real em circunstâncias ainda não directamente experienciáveis (e, consequentemente, apenas intelectualmente intuíveis) por via das limitações da tecnologia contemporânea. Somando-se aos factores macroculturais, o crescente predomínio do cinema de grande-orçamento e dos jogos de computador, com a sua linguagem e códigos de leitura próprios, e a ênfase atribuída aos aspectos de estética visual e de impacto sensorial, voluntariamente desconexos da esfera intelectual, têm contribuído para a busca de um imaginário completamente distinto da FC de carácter Hard entre aquele que outrora fora o seu público-alvo privilegiado(3), factor a que se soma a própria mutação do mercado editorial ao longo dos últimos cinquenta anos, conforme afloraremos infra, ainda que brevemente. Não se pense, porém, que a deslocação do eixo da Ficção Científica desde a FC Hard para outros discursos é um fenómeno tão recente como os efeitos de CGI ou os videojogos. Se no período da Segunda Guerra Mundial a FC Hard dominou o género, sob impulso e imposição de Campbell (por sua vez como forma de reacção contra a pura space-opera, escrita de forma entusiástica mas sem grande mérito literário que caracterizava as revistas de Gernsback), a partir principalmente de finais dos anos cinquenta – curiosamente a partir do momento em que foi rotulada – outras exigências lhe começavam a ser feitas (por Damon Knight, Judith Merril, James Blish, Michael Moorcock, Brian Aldiss, etc.), em termos de temas, estruturas, estilo literário e teleologias, como resultado das próprias tensões internas ao género que exigiam um alargamento, ou mesmo a subversão, das suas regras. Tal golpe de estado literário(4) deu-se como reacção manifesta contra a ficção científica campbelliana, à data estagnada ou entregue a um proselitismo desconexo, de ideias perfeitamente ridículas, como a cientologia ou as capacidades precognitivas, com que Campbell ia preenchendo os seus editoriais. Conhecida como a New Wave, dum lado e outro do Atlântico, onde Merril e Knight pelos Estados Unidos, e Moorcock, Aldiss e Ballard pelo Reino Unido, pretenderam declarar a FC Hard anterior a 1965 como história literária, um projecto falido, e estabelecer um novo ponto de partida para a ficção científica, ponto de partida esse que a aproximaria do corpo principal da Literatura (mesmo que assim esbatesse a sua personalidade, características e atractivos próprios). A FC que nos foi devolvida pela New Wave nos anos setenta, era um mero pastiche desossado, descarnado, e com menor coerência genérica do que alguma vez tivera em toda a sua história (situação que, como os leitores habituais do género sabem, se mantém até ao presente, não obstante o recente surgimento de dois movimentos de recuperação de temas clássicos, e de regeneração do seu tratamento dentro das regras do género, o New Weird e a Space Opera Gótica(5), e de um movimento importante nos anos 80 – o Cyberpunk – que logrou representar as duas correntes em duas das suas figuras de proa, Gibson e Sterling(6). Não se pense com isto, porém, que a intentona foi bem sucedida na erradicação da FC Hard. Se Asimov, de certa forma desagradado com o tratamento a que a FC era submetida, se afastou da escrita do género que ajudou a criar durante quase vinte anos, Heinlein, a segunda figura máxima da Golden Age (ultrapassado, em termos de importância relativa, apenas por Campbell), logrou, durante os anos da New Wave, assinar não só a melhor das suas novelas de FC Hard, The Moon is a Harsh Mistress (1966), mas também a sua obra mais popular, perfeitamente ao estilo da New Wave, Stranger in a Strange Land (1961). Nem se pense, também, que a New Wave foi um movimento desprovido de méritos; quando não entregues aos excessos do zeitgeist da contra-cultura, legou-nos alguns dos melhores e mais marcantes autores e obras do género, embora num registo que da FC canónica guardavam apenas a iconografia, os temas e algumas ideias determinantes. No entanto, se algo distinguiu a New Wave e os seus seguidores, de forma significativa, foi o tratamento dado a tais ícones, temas e ideias; mais do que a forma literária mais elaborada, e a consciência de que a FC não precisava de ser mal escrita ou má literatura – ideia que, aliás, já Campbell defendia – aquilo que cavou um profundo fosso entre a FC Campbeliana e a New Age foi a reperspectivação do seu objecto. Alguns diriam mesmo, a sua radical distorção. Se o tom de uma e outra eram distintos, com o optimismo que parecia marcar a FC dos heróis-cientistas-engenheiros a ser substituído pelo niilismo sombrio de Ballard, mais distinta ainda era a noção, absolutamente anti-FC Hard, de que o género da literatura extrapolativa devia possuir um subtexto, uma mensagem, um código de conduta (pro-status quo ou anti-establishment) de relevo imediato para o aqui-e-agora. De certa forma, e de forma algo redutora, poder-se-ia dizer que o que a New Wave trouxe de novo foi a erradicação do futuro do núcleo da Ficção Científica. A Ficção Científica, tal como o mainstream, passaria a ser uma expressão do seu tempo. Isto não quer dizer que a FC não possua, ou não deva possuir, uma ligação ao contexto histórico da sua criação. Como qualquer actividade intelectual humana, encontra-se profundamente marcada pela envolvente cultural do momento em que é escrita; mas, ao contrário da demais literatura, que realmente procura representar experiências passadas, presentes, ou futuras com relevo para a conduta individual ou colectiva do presente imediato, cingindo-se àquilo que Ken MacLeod(7) considera serem os confortáveis temas do Indivíduo contra a Sociedade e da Sociedade contra a Sociedade; já o tema central da FC, ecoando a resposta de Hal Clement quando lhe perguntaram porque não incluía vilões nas suas obras (Porque acho que o Universo é um vilão mais do que suficiente!), é o da posição da humanidade no Universo, ainda que este seja “um mecanismo, indiferente ao homem e desprovido de qualquer plano ou propósito divinos”. Não é difícil compreendermos que MacLeod se refere claramente à FC Hard, como sendo a razão de ser da própria Ficção Científica. Na esteira da New Wave, parece-nos dizer MacLeod, a FC, numa corte descarada aos paparicos da crítica mainstream, e buscando uma credibilidade que nem as presenças constantes de Vonnegut, Asimov ou Heinlein nas listas de best-sellers do New York Times lhe pareceram lograr, tornou-se essencialmente Ficção Científica para pessoas que não gostam de Ficção Científica(8). Uma Ficção Científica (por vezes disfarçada sob a capa mais ou menos imaginativa de literatura especulativa, slipstream, ou qualquer outro cosmético aviltante) que, vergando-se ao relativismo epistemológico tão em voga numa sociedade de entretenimento avessa ao mais pequeno esforço mental, e ávida das mais reconfortantes panaceias que lhe confirmem o acerto do seu estilo de vida de laxismo intelectual, descarta o saber científico que lhe devia estar ínsito na alma. Os avanços tecnológicos, a descoberta científica que gerava o sense of wonder próprio da FC da era áurea, vê-se agora reduzida ao papel de símbolo que porá em marcha uma mera exploração teorética, confortável e familiar, da realidade do hoje, para as gentes do hoje. É então do desaparecimento da FC Hard que se queixam os nossos cientistas? Para avançar um pouco mais na tentativa de obter uma resposta a esta questão, importa definir, ainda que vagamente, os contornos da criatura a que chamamos FC Hard. John Taylor(9), define-a como sendo “a arte de tornar um ‘e se?’ científico interessante, sendo que esse ‘e se?’ científico é um postulado ou proposição de cariz científico”. Embora discorde da necessidade que esta definição parece reconhecer de se tornar interessante uma hipótese científica (esta é-o, por si própria), embora considere que se pode traduzir esse “interessante” pela proposição mais correcta de “atractiva para o leigo”, ela parece conter em si, de forma bastante económica, as principais características da FC Hard, conforme haviam já sido definidas por Gernsback em 1926. Esta é uma literatura que, em maior ou menor grau, assenta a tensão narrativa num postulado ou numa hipótese científica, e suas consequências (para o indivíduo ou para a sociedade), as quais devem ser igualmente validáveis, tanto quanto possível, à luz do conhecimento científico contemporâneo ou da lógica racional própria da investigação científica. Rudy Rucker (10) chega mesmo a considerar que a FC Hard, para ser realmente meritória, “para além de incluir informação credível sobre ciência real ou possível, deveria incluir factos científicos novos, matérias que ainda não foram objecto de uma grande divulgação a nível popular”. Historicamente, a FC Hard tem assentado crucialmente num estilo de escrita simples e directo, sem grandes floreados, à semelhança dos relatórios científicos em que frequentemente se baseia ou que os seus cultores originais escreviam eles próprios, como meio privilegiado de expor de forma credível o universo ideal da ciência. As personagens principais reflectem esta teleologia, normalmente um cientista ou engenheiro desenrascado, que vive, como vigário do leitor, o frisson da descoberta, da solução, do confronto emocional com aquilo que é cientificamente verdadeiro, para o que exigirá dos leitores, não só uma vasta experiência de leitura do género, como de conhecimentos científicos elementares. Assim entendida, dificilmente se poderá considerar que a FC Hard tenha desaparecido do panorama literário; autores como Adam Roberts, Gregory Benford, Larry Niven, Jerry Purnelle, David Brin, Stephen Baxter, Greg Bear, Peter F. Hamilton, Dan Simmons, Walter Jon Williams, Charles Stross, Vernor Vinge, Jack McDevitt, Ben Bova, Alastair Reynolds, John Barnes, Greg Egan, Rudy Rucker, James Patrick Kelly, Kim Stanley Robinson, e tantos outros que se torna aqui impossível enumerar, continuam a manter aceso aquele sol newtoniano que guiara já Asimov, Raymond F. Jones, Heinlein, Dean Ing, Poul Anderson (et. al.), reproduzindo, com maior ou menor sofisticação literária o mesmo prazer pela contemplação intelectual da verdade que os seus antecessores haviam partilhado connosco. Nas suas obras, encontram-se os temas tradicionais da FC Hard; a trilogia marciana de Kim Stanley Robinson, a saga de exploração científica e exploração económica do sistema solar de Ben Bova, Heart of the Comet (1986), de Benford e Brin, apresentam soluções de continuidade face ao espírito pioneiro da Golden Age, ao passo que as Space Opera Góticas mais recentes, a Night’s Dawn Trilogy (1997-2000) de Hamilton, a saga de Reynolds iniciada com Revelation Space (2000), a série dos Moties de Niven e Pournelle (1974-1993), ou a Guerra da Elevação de Brin, retomam o tema bélico que sempre lhe foi próximo, desde With the Night Mail (1905) de Kipling, até ao fantasma da Segunda Guerra Mundial que pairou íntimo da Golden Age; Pushing Ice (2005), de Alastair Reynolds, Quarantine (1992) de Egan, ou até The Sex Sphere (1983) de Rucker, retomam de forma brilhante o tema do primeiro contacto, ao passo que On (2002) de Adam Roberts recupera o desafio da adaptação a ambientes hostis de que Hal Clement assinou a opus magna com o seu Mission of Gravity (1954). Robert A. Metzger devolve-nos o engenheiro Heinleiniano, actualizado e modernizado (talvez por isso, mais contido, mais domado), no seu brilhante Picoverse (2004), uma narrativa clássica de uma invenção fora de controlo, adaptada ao mundo da física quântica; e Paul J. McAuley, um dos melhores autores contemporâneos de FC Hard, mostra-nos uma inteligentíssima invasão alienígena em Seeds of Life, e um universo completamente povoado por exobiontes na sequência Child of the River, assim dando resposta cabal à retórica questão de Aldiss (Who cares about the lives of worms?). Um finíssimo corte transversal ao longo de três décadas de desenvolvimento do género, e que nos demonstra à saciedade uma plúrima manifestação de um – alguns diriam o – modo principal de tratamento literário da Ficção Científica. Com vozes, estilos e temáticas perfeitamente distintas, e no entanto coerentes e identificáveis, a FC Hard, embora porventura perdendo alguma da centralidade de que gozou na conformação da identidade do género, mostra-se vicejante e presente, dando continuidade e multiplicidade de expressões aos temas e obras centrais da Golden Age (e mesmo anteriores). E, sendo assim, fácil se torna concluir que quando alguém lamenta o desaparecimento de uma “ficção científica escrita por cientistas”, que possa servir como “interessante instrumento educativo”, não lamenta o desaparecimento de uma expressão do género, mas o desaparecimento de uma época e de um contexto histórico que foi aquele dos anos quarenta do século passado. Tomando a liberdade de ‘ler’ nesses queixumes o lamento por um tipo narrativo específico, o do conto de FC tal como ele foi cultivado por Asimov, Clarke ou Heinlein, caracterizado essencialmente pela centralidade de um facto científico como núcleo apoteótico da tensão narrativa. O conto era invariavelmente construído em torno desse facto científico, que lhe servia de coluna vertebral, ora no início do conto (impondo aos personagens uma reacção a tal facto) ou no final, como Eureka!, como exposição de uma relação de conexão entre um facto científico conhecido e os elementos de tensão existentes na narrativa.(11) Era uma estrutura ainda reminiscente das suas origens na cultura da popular mechanics, do engenheiro-herói e, sobretudo, da short-story (esforços de fôlego como os de Hal Clement são infelizmente raros). A própria natureza do mercado americano – o mercado da FC até aos anos 60 – que privilegiou a narrativa curta até finais dos anos cinquenta (12), ou seja, até ao advento do paperback de ampla distribuição, que finalmente veio permitir a chamada de atenção sobre a novela. Tal facto, aliado a claras políticas editoriais de um punhado de editores criteriosos e de grande qualidade (Horace Gold e Frederick Pohl na Galaxy, Anthony Boucher e McComas na Fantasy and Science Fiction, John W. Campbell na Astounding, entre outros) permitiu uma especial longevidade a um tipo homogéneo de história, perfeitamente identificável pela publicação em que surgia, e que contaminava a própria percepção da FC como um todo (aparentemente) homogéneo. No entanto, e face à explosão de modos, estilos, temas e formas de expressão que se seguiram à New Wave (ela própria centrada na revista New Worlds), e à crescente variedade de casas editoriais especificamente dedicadas à FC (Del Rey, Tor, DAW, etc…), a FC passou a apresentar um aspecto fragmentado e heterogéneo (se calhar mais consentâneo com a sua própria natureza histórica). Em Portugal, a falta de critério na escolha das principais colecções de FC que as editoras oferecem ao público, misturando obras (muitas vezes escolhidas do fundo do catálogo em termos de qualidade, e servidas de péssimas traduções) oriundas de diversas correntes e períodos históricos, impede sequer um conhecimento ontogenético do género, conferindo ao todo um aspecto desarticulado e caótico. Em tal panorama de fragmentação, é natural que o núcleo coeso e coerente de autores da Golden Age e suas obras – muitas delas objecto de sucessivas edições – surja perante os olhos dos leitores como expressão de uma Ficção Científica que já não existe, desacompanhada da necessária percepção de que, se não existe, tal se deve apenas à natural evolução do género (tal como pensamos ter demonstrado, ainda que a talhe de foice, supra). Desapareceu assim a noção de uma Ficção Científica que, por via da sua evolução, já não existia dessa forma, como força dominante do género, há muito tempo. Os lamentos que reproduzimos no início deste breve ensaio, são assim oriundos da saudade de uma Ficção Científica ainda na sua juventude, encarada pela crítica como um género infantil e irrelevante, que teria como única característica redentora, a potencialidade de educação das massas numa era de grande crescimento científico e tecnológico na história dos Estados Unidos da América. Uma Ficção Científica que “poderia ser um excelente instrumento educativo se, sem descurar imaginativas aventuras, um pouco de enredo e algo de embelezamento literário, tivesse como primeira preocupação a verosimilhança.” Um papel demasiado redutor para um género com oitenta anos bem vividos, que soube envelhecer em arte, complexidade narrativa, recursos estilísticos e relevo social. O contrário seria acreditar que “os contos deste tipo, que se inspiram na ciência que está sendo feita ou nas futuras aplicações práticas de teorias razoavelmente estabelecidas, tratam naturalmente do futuro e esse costuma interessar sobretudo aos jovens, pela óbvia razão de que só eles têm futuro.” (13) Acreditar que a idade do ouro da FC, são efectivamente os doze anos. BANG!
NOTAS:
(1) Mark R. Hillegas, SF as a Cultural Pheno-menon: A Reevaluation, in SF: The Other Side of Realism, Thomas D. Clareson, Ed. (1971) (2) Em Portugal, tais correntes encontraram os seus principais paladinos em Boaventura Sousa Santos e Eduardo Prado Coelho. Curiosamente, quando aplicadas à literatura lusa, não conseguiram, a título de produção crítica, mais do que Margarida Rebelo Pinto, o que não deixa de ser, certamente, significativo. (3) Habituados que estamos ao cinema de FC de grande espectáculo, podemos por vezes pensar que os poucos filmes de FC que poderíamos considerar Hard, ou seja, com uma aposta em factos científicos correctos como elementos essenciais da narrativa, seriam um fenómeno raro até ao 2001:A Space Odyssey (1968) de Kubrick e Clarke. No entanto, isso seria ignorar a trilogia de filmes cientificamente correctos – mais, com ênfase colocado na correcção científica (apesar de alguns erros comuns à época) – produzidos por George Pal entre 1950 e 1955 (Destination Moon, When Worlds Collide e Conquest of Space), verdadeiras superproduções para a época, às quais poderíamos somar a série de filmes documentais TOMORROWLAND da Disney. (4) Peço modestamente emprestada tal expressão a David G. Hartwell, provavelmente o maior especialista na história da Hard SF. (5) Terminologia que não é de todo desa-dequada, se atentarmos na intrínseca tensão gerada entre os dois termos; o clássico Space Opera, tão antigo como a FC gernsbackiana dos anos 20, e o qualificativo gótico, modo apropriado pelos cultores da New Wave, como Aldiss, que caracterizou toda a FC como Mary Shelleyana. (6) Na sua intervenção nas Utopiales 2004, realizadas em Nantes, Sterling avançou a sua proposta de substituição do termo “ficção científica” por “design fiction”, servindo-se do exemplo de Neuromancer (1984) para o fazer; na sua perspectiva, o leitor moderno não está interessado na mecânica funcional das tecnologias apresentadas na FC, mas sim na sua utilização e sensações daí decorrentes. (7) Ken MacLeod, “Does Science Fiction Have to Be About the Present?”, in New York Review of Science Fiction, January 2004. (8) Conforme a expressão cunhada por Andrew Weiner e que, por não lograr obter um acrónimo sonante ou atractivo, resolveu converter em “Sf-Not!”, para descrever as obras (a que Sterling chamaria, sem dúvida, de slipstream) como as de Vonnegut, Tevis, Doris Lessing, Margaret Atwood, Russel Hoban, Michael Crichton, Paul Theroux, Steve Erickson ou Martin Amis. (9) John Taylor, “Scientific Thought in Fiction and in Fact”, in Science Fiction at Large, Peter Nichols, Ed, Gollancz, London. 1976. (10) Em entrevista a Annalee Newitz, na revista on-line Bad Subjects, Issue #24, February 1996. (11) Exemplo perfeito de tais narrativas será “A Bola de Bilhar” (1946) de Asimov, onde dois cientistas debatem a superioridade dos dois ramos da física, teórica ou aplicada, uma sobre a outra, em torno de um jogo de bilhar, para que a solução seja dada, de forma curiosa, por uma inesperada revelação do funcionamento prático dos conceitos científicos em causa. Curiosamente, Asimov viria anos mais tarde a corrigir esse ponto apoteótico da narrativa, quando estudos posteriores revelaram que a reacção da bola de bilhar não seria exactamente a descrita no conto. Contos semelhantes foram escritos por Heinlein, Clarke, Simak, Van Vogt, et al. (12) Aliás, atente-se que as primeiras ‘novelas’ publicadas nos anos 50, eram ainda ‘fix-ups’, colagens de narrativas mais curtas, anteriormente surgidas nas páginas das revistas. (13) António Bettencourt Viana, prefácio a “Histórias de Espantar” (Vega, 2004)