Sabemos que existe vida noutros planetas e queremos descobrir tudo o que há para saber sobre ela. Aqui, damos protagonismo a membros ativos de fandoms internacionais que nos concedem o privilégio de partilhar connosco as suas experiências, seja como editores, autores, fãs, bloggers ou organizadores. Neste número: Fábio Fernandes
A vida aqui neste planeta chamado Brasil é, neste momento, muito interessante. Não necessariamente interessante no melhor sentido; talvez possamos aplicar a expressão chinesa (uns dizem maldição, mas depende do ponto de vista) que diz: «Possa você viver em tempos interessantes.»
O FANDOM BRASILEIRO VIVE EM TEMPOS INTERESSANTES
Até 2007, o CLFC (Clube de Leitores de Ficção Científica) estava em atividade, com um fanzine, o SOMNIUM, que, embora já fosse publicado com irregularidade (depois de quase vinte anos saindo com periodicidade regular, ora semestral, ora trimestral, e uma vez, até mesmo bimestral), ainda se mantinha galhardamente como o maior representante nacional da FC. Outro grande zine brasileiro, o MEGALON, inexplicavelmente deixou de ser publicado no momento em que seu editor, Marcello Simão Branco, teve de optar entre migrar para a Web e abandonar o papel ou parar a publicação. Ele parou. (Hoje, Branco edita o Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, em parceria com César Silva.)
Contudo, além dessas e de outras poucas iniciativas isoladas (aconteceu, em meados desse ano, um evento chamado Invisibilidades, promovido pelo Instituto Itaú Cultural, com a curadoria de Roberto de Sousa Causo e com a presença de nomes da FC brasileira clássica dos anos 60 e 70, como André Carneiro), pouca coisa acontecia de fato.
Até 2008. Nesse ano aconteceu, em grande parte graças às redes sociais (particularmente o Orkut, através da comunidade Ficção Científica, criada por mim em 2004, mas da qual eu já não participava desde 2005), uma espécie de revival do fandom, com a movimentação de uma novíssima geração de fãs e candidatos a autores de FC e Fantasia, que começava a discutir novas possibilidades de publicação e divulgação.
Isso me animou a voltar ao fandom – eu andava afastado desde a virada do milênio. O casamento, mais a mudança de cidade (Rio de Janeiro para São Paulo), e uma série de outros fatores (mudança de emprego, mestrado e doutorado), haviam me tirado de cena, ainda que não das leituras do gênero. Daí, ao ver a efervescência no Orkut, achei que era hora de voltar ao fandom.
INICIATIVAS BRASILEIRAS
Nesse mesmo ano de 2008, o Itaú Cultural resolveu dar uma «extreme makeover» no Invisibilidades e me chamou para fazer a curadoria. Realizei a segunda edição do evento, iniciando uma ponte entre o fandom e a academia, levando pesquisadores-fãs (na tradição de Henry Jenkins), como Adriana Amaral, autora de Visões Perigosas, um excelente livro sobre a relação de Philip K. Dick com os cyberpunks, e o crítico de cinema Alfredo Suppia, membro da Science Fiction Research Association. O evento é bienal, e a terceira edição, realizada em 2010, com mais ênfase no acadêmico e na multimídia, bateu recorde de público no auditório do Instituto (que tem cerca de 600 lugares) e, se tudo correr bem, a quarta, em 2012, terá seus primeiros convidados internacionais.
Em paralelo ao Invisibilidades, ocorre também a Fantasticon, que é um evento exclusivamente para fãs, onde há estandes de editoras, sessões de autógrafos e grupos animados fazendo cosplay por todo o local do evento. A Fantasticon é anual e bem animada, tendo sido considerada recentemente por Christopher Kastensmidt (escritor norte-americano radicado no Brasil e finalista dos Nebula Awards este ano, na categoria Novelette) uma séria candidata a hospedar uma WorldCon, no futuro próximo.
Além desses dois eventos “genéricos”, vale a pena mencionar a enorme ascensão da cultura steampunk em terras brasileiras. A coisa chegou a tal ponto que mereceu não uma, mas diversas menções de Bruce Sterling em sua coluna da Wired Magazine, pasmo que ele estava por ver inclusive o conceito de Lojas Maçônicas aplicado às filiais estaduais do Conselho Steampunk, fundado pelo carioca Bruno Accioly. O interessante desse conselho, entretanto, é sua total desfiliação da geração anterior de fãs de ficção científica.
Embora exista contato e amizade entre os dois grupos, o conselho atua de forma inteiramente independente e promove, através de suas lojas, eventos periódicos (quase mensais) em todo o Brasil. Na recém-lançada The Steampunk Bible, editada por S. J. Chambers e Jeff VanderMeer, há uma seção inteira dedicada ao Brasil. Um dos nomes de maior destaque desse movimento steamer é Romeu Martins, cuja história Cidade Phantástica teve um excerto traduzido por mim, para esse livro.
NOVA GERAÇÃO DE AUTORES E EDITORAS
Além disso, a nova geração de autores tem publicado bastante – muito mais que a minha. Isso se atribui em grande parte ao bom momento financeiro que o Brasil vem passando, o que tem barateado o preço de publicar livros. Isso fez com que diversas editoras surgissem nos últimos anos, como a Draco, a Tarja e a Estronho, entre várias outras, criando uma saudável concorrência que só fez bem aos escritores. Muitas coletâneas foram lançadas, como a Imaginários (Draco) e a Paradigmas (Tarja), congregando autores jovens e veteranos. Este semestre ainda, eu e Nelson de Oliveira, escritor de mainstream que, nos últimos anos, tem assumido sua paixão pela FC, nos juntamos e organizamos uma antologia New Weird, intitulada As Cidades Indizíveis, uma homenagem referência a Calvino e Lovecraft, mas com uma abordagem mais Miéville e contos de vários autores de todas as tendências. E, pelo que sei, muitos outros autores vão lançar livros de FC e Fantasia este ano.
A coisa parece ter atingido velocidade de escape e saído de órbita para finalmente tomar seu rumo às estrelas. Tanto que, desde o ano passado, Jeff VanderMeer tem me pedido para escrever uma pequena relação sobre o que de mais interessante se lançou no Brasil anualmente, na Locus online. E tenho sido muito chamado para participar de chats, como o primeiro do Salon Futura, de Cheryl Morgan, várias vezes ganhadora do Hugo Award de Best Fan Writer e com quem atualmente estou envolvido num projeto, junto com Nicola Griffith, sobre FC feminista (mas ainda não posso falar mais que isso a respeito), ou round-table discussions para sites como o SF Signal. As opiniões dos brasileiros estão cada vez mais importantes, e me sinto honrado e feliz por representar o país.
TRIBO GLOBAL
O curioso é que eu tenho escrito cada vez menos em português (a não ser pelos textos acadêmicos, os quais em sua maioria são sobre FC, que tem tido uma acolhida cada vez mais calorosa pela academia brasileira). Eu e um autor da nova geração, o ótimo Jacques Barcia (que publicou recentemente um conto na antologia SHINE, de Jetse de Vries), atualmente estamos escrevendo somente em inglês.
Não posso falar em nome de Jacques, mas, nos últimos dois anos, meus contatos nos Estados Unidos e na Europa têm sido maiores e mais frutíferos que no Brasil. Atualmente, colaboro como blogueiro para o site Tor.com, esporadicamente para o blog The World SF Blog (do israelense globe-trotter Lavie Tidhar e do filipino Charles Tan), o zine neozelandês b0t, editado por Grant Stone), e em breve, vou estrear como colunista para o site SF Signal. Também tenho alguns contos publicados em inglês e outros por aí, em slush piles, à espera de avaliação.
Acredito que este é o caminho: se o mundo não vai ter um governo unificado, como nos sonhos dos autores clássicos da FC, podemos ter um fandom unido, com membros de vários países trabalhando juntos em projetos diferentes. Uma tribo global.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 10, publicada em junho de 2011.