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H. P. Lovecraft: Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea (Parte 1)

por José Carlos Guerreiro Gil


Uma dissertação fundamentada, que se estenderá ao longo de três números da BANG!, sobre a importância de H. P. Lovecraft para a cultura popular ocidental e a portuguesa em particular. A não perder!


H. P. Lovecraft (1890‑1937) permanece um nome relativamente desconhecido para o público português, algo que inicialmente aconteceu no seu próprio país, sensivelmente até ao final da primeira metade do século xx.

Não tendo ainda vencido totalmente a barreira do preconceito por parte de alguma da crítica e do público em relação à sua escrita, Lovecraft é hoje um nome indiscutivelmente associado à cultura ocidental contemporânea, constituindo uma referência para múltiplos artistas devido ao seu conceito de «terror cósmico». A presente dissertação propõe‑se ser um modesto contributo para um melhor conhecimento do autor e futura compreensão da sua obra junto do público português, traçando as influências de alguns dos precursores mais influentes. Neste estudo tentar‑se‑á, igualmente, salientar características determinantes que justificam a continuidade e actualidade da obra lovecraftiana, bem como realçar algumas das mais importantes marcas da obra de um autor tão marcante para a criação literária e artística contemporânea.

 

Agradecimentos 

Não obstante uma certa inquietude que me espicaçava alguns anos após a conclusão da licenciatura, uma certa resistência perante o trabalho e as dificuldades inerentes a um curso de mestrado persistia em impedir‑me de dar o passo decisivo para esta aventura. Como quase sempre tem acontecido ao longo da vida, os meus pais, particularmente a minha mãe, foram fundamentais para que alguns receios se ultrapassassem e a decisão fosse tomada.

Aos meus pais, mas também à minha restante família, devo este incentivo. Obrigado, tia Cândida e tia Augusta. À minha prima Isabel, um obrigado especial, pela sua preciosa ajuda.

É claro que nenhum encorajamento teria sido suficiente se não tivesse surgido um curso de mestrado, com cujo tema me identificasse desde o primeiro momento. A associação das problemáticas da Criação a áreas como a Física, a Biologia, ou a Ecologia constituíram um factor de originalidade e ponte para algumas áreas, desde sempre alvos do meu interesse pessoal. Nesta abrangência, foi fundamental o espírito inovador da Professora Doutora Maria Antónia Lima, que tão gratas memórias me havia deixado no decorrer da licenciatura. Verificar que a mesma era uma das responsáveis pelo curso de mestrado constituiu, por si só, mais uma ajuda para a decisão que viria a tomar.

As minhas expectativas não foram goradas.

Desde o primeiro momento, pude contar com a sua experiência, sabedoria, apoio logístico e moral, bem como com uma disponibilidade total para nos auxiliar. Ainda que imersos num universo gótico, a nossa mentora sempre se revelou tudo menos isso. À nossa Professora, devo o meu mais profundo agradecimento.

A todos os restantes professores dirijo também uma palavra especial de agradecimento, os quais me enriqueceram e fizeram crescer como pessoa ao longo de todas as suas aulas.

A minha gratidão vai igualmente para o fabuloso grupo de colegas que constituiu este «círculo gótico», o primeiro, mas decerto não o último. Provando como a sorte é importante na vida, devo‑lhes o bom ambiente que sempre se respirou nas nossas aulas, a entreajuda e a verdadeira camaradagem, contribuindo significativamente para que, semana após semana, tivesse sempre vontade de voltar e saudades das aulas em comum. Todo o meu carinho vai para João Luís Nabo, Paula Lagarto (Paulinha), Vera Guita, Vilma Serrano, Hugo Coelho e Isabel. Uma palavra igualmente para os colegas «não góticos», particularmente as minhas queridas colegas e amigas, Sandra Piçarra e Sónia Valério Leal, que sempre tiveram uma palavra amiga e me encorajaram.

Nunca poderia, igualmente, deixar de agradecer aos membros do Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas de Almodôvar, os professores Maria João, Jorge e Edite, todo o apoio, a compreensão e as condições que desde o primeiro momento me proporcionaram, bem como uma palavra de apreço aos meus restantes colegas que também sempre manifestaram apoio e interesse ao longo deste tempo. A todos eles, o meu obrigado.

Uma última palavra para a minha esposa, Ana, quem mais directamente partilhou os momentos bons e os momentos menos bons, mas que foi constante no seu carinho e ajuda, nunca me tendo deixado faltar o alento.

A todos, o meu obrigado.

 

Introdução

Para aqueles que, entre nós, estão familiarizados com o Gótico e mesmo com a ficção científica, o nome H. P. Lovecraft não será desconhecido. Contudo, poderá persistir um certo sentimento de menosprezo perante esta figura ainda algo obscura para o público português. Esta situação não é estranha ou pouco frequente na literatura, nem tampouco inédita em relação a este autor americano. Com efeito, o cavalheiro alto e magro, originário de Nova Inglaterra, foi, durante muitos anos, ignorado e relegado para um lugar secundário no seu próprio país, olhado de soslaio como alguém que se movimentou no mundo menor da pulp fiction. Poderíamos apontar vários factores para o insucesso literário experimentado durante a sua vida, entre os quais destacaríamos falhas de gestão na sua carreira, uma excessiva sensibilidade à crítica, a incapacidade de encontrar um editor que verdadeiramente apreciasse o seu trabalho, bem como algumas fatalidades do destino.

A discreta existência de Lovecraft (1890‑1937) estaria, provavelmente, relegada ao esquecimento não fosse o contributo de August Derleth, seu admirador e seguidor, ao fundar a editora Arkham House e ao publicar a ficção do seu mentor em inúmeras edições. Estas foram, paulatinamente, conquistando públicos mais numerosos e chamando a atenção de outros autores e estudiosos, entre os quais poderíamos destacar S. T. Joshi, pelo seu contributo decisivo no estudo da sua obra e biografia. Graças a este e outros estudiosos, tem sido possível trazer à luz do dia a obra, a vida e o pensamento de alguém que, de outra forma, permaneceria visível somente para um restrito círculo, perdendo‑se assim múltiplas relações possíveis de serem estabelecidas em vários domínios artísticos e influências que perpassaram para a cultura popular anglófona a um nível muitas vezes desconhecido.

Traçar algumas dessas relações e, sobretudo, tentar entender o que torna a escrita de Lovecraft tão actual serão os objectivos principais deste estudo. Daremos conta de alguns autores marcantes para a sua obra, dando depois conta das suas influências, directas e indirectas, na cultura popular contemporânea.

Particularizando um pouco, as mesmas podem, por exemplo, ser encontradas na escrita de autores contemporâneos influentes, tais como Robert Bloch, Stephen King ou Neil Gaiman, sendo estas reconhecidas pelos próprios.

Tentaremos também demonstrar a influência, mais ou menos directa, do cavalheiro de Providence em alguns domínios artísticos além da pintura, como o cinema, a banda desenhada e a ilustração, domínios efectivos da cultura popular sobre a qual nos debruçaremos. No domínio da pintura, será inevitável referir os nomes de Goya, Gustave Doré ou Nicholas Roërich, por terem tido um impacto relevante na obra do autor de Providence.

No que concerne à sétima arte, tentaremos traçar ideias e conceitos que tenham chegado pela mão de Lovecraft a alguns cineastas, tais como Ridley Scott, Guillermo del Toro ou John Carpenter. Este último, assumidamente influenciado pelo escritor, poderá igualmente ser visto como um outsider, alguém que se movimenta de fora para dentro do mainstream, com um círculo de admiradores que se vai alargando.

O mesmo aconteceu ao escritor norte‑americano, ao conseguir libertar‑se do universo da pulp fiction e chegar a um público mais abrangente, embora, a exemplo de muitos outros autores, só o tenha conseguido após a sua morte.

Do lado dos artistas por ele influenciados, será inevitável falarmos de H.R. Giger, surrealista suíço, que marcou o século xx com as suas criações.

Já no que respeita à banda desenhada e à ilustração, poderíamos referir novamente o nome de Neil Gaiman, autor da série Sandman, detentora de assumidas influências lovecraftianas. Não se tratando de tarefa inédita naquilo a que nos propomos, pretende‑se também determinar as eventuais e, aparentemente, recentes contaminações entre Lovecraft e autores portugueses, tais como David Soares e Fernando Ribeiro, entre outros. Assim, provar‑se‑á que nem só a cultura anglófona é permeável ao peso da sua escrita extravagante, por muitos considerada excessiva e barroca, mas elogiada por outros, como é o caso do escritor Michel Houellebecq, na sua obra H.P. Lovecraft: Against the World, Against Life (2005).

A multiplicidade e variedade de influências lovecraftianas na cultura contemporânea já seriam, por si só, merecedoras de algumas páginas escritas, mas essa importância sai sublinhada quando um olhar mais atento descobre paralelos entre a sua escrita, o seu pensamento e a nossa sociedade, sobretudo após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Em Supernatural Horror in Literature (1927), Lovecraft afirma: «The oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest kind of fear is fear of the unknown.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 21) Desde logo, a afirmação dá‑nos conta do que todos nós sabemos à partida: o medo sempre existiu em cada um de nós e no seio das nossas sociedades, não havendo, neste aspecto, uma era anterior e uma posterior aos atentados. A diferença residirá na intensidade desse medo e nas suas consequências na nossa maneira de viver. A sociedade americana actual, ou a sociedade ocidental em geral, é um tipo de sociedade mergulhada em vários medos. Um deles é aquilo que poderíamos chamar de «medo da tecnologia». Os atentados terroristas de Setembro de 2001 são apenas um exemplo da utilização de tecnologia, à partida benévola, mas para fins destrutivos. O ataque às Twin Towers veio exacerbar o sentimento de que a mesma tecnologia que possibilitou a nossa prosperidade possa vir a ser utilizada contra nós, como, aliás, já aconteceu por inúmeras vezes ao longo da História, contrariando a perspectiva optimista do progresso. A visão negativa sobre os efeitos perversos da Ciência é uma temática recorrente no Gótico em geral, mas no Gótico americano é particularmente forte, especialmente em Lovecraft. Os conhecimentos científicos que este autor possuía possibilitaram uma visão ainda mais clara e abrangente sobre as possíveis e indesejáveis consequências da aplicação de conhecimentos científicos de forma incauta ou com fins deliberadamente negativos. O conhecimento e a descoberta de novas realidades, que estilhaçam a normalidade, é a essência do «terror cósmico» tão caro a Lovecraft, a tal ponto que, no início do seu conhecido conto «The Call of Cthulhu» (1926), o narrador afirma:

«The most merciful thing in the world, I think, is the inability of the human mind to correlate all its contents. We live in a placid island of ignorance in the midst of black seas of infinity, and it was not meant that we should voyage far. The sciences, each straining in its own direction, have hitherto harmed us little; but some day the piecing together of dissociated knowledge will open up such terrifying vistas of reality, and of our frightful position therein, that we shall either go mad from the revelation or flee from the deadly light into the peace and safety of a new dark age.» (Lovecraft 1994: 61)

O conceito de «terror cósmico» irá, igualmente, ser alvo da nossa análise pela sua centralidade na obra lovecraftiana e pelas múltiplas relações possíveis de estabelecer com o pensamento contemporâneo, particularmente com uma perspectiva existencialista da realidade. No conto atrás referido, encontramos um dos embriões daquilo que viria a ser conhecido como «Cthulhu Mythos», expressão inventada por August Derleth e que constitui o panteão pseudo‑mitológico deixado por Lovecraft e pelos escritores que contribuíram, e ainda contribuem, para o mesmo. Este é, provavelmente, o legado mais notório e influente do autor, sendo, porventura, o aspecto mais conhecido da sua obra no seio da cultura popular. O «Mythos» pressupõe a existência de um autêntico mundo paralelo de criaturas que detiveram e detêm um poder e importância muito superiores ao poder da Humanidade. A suposta existência de cultos secretos que laboram para que esses imensos poderes voltem a dominar o nosso planeta colocam o inimigo no seio das nossas sociedades, sendo inevitável a associação com organizações terroristas.

Existe uma evidente identificação entre os sentimentos dos protagonistas lovecraftianos, pelo seu desespero e sensação de impotência que sentem, com os experimentados pelas vítimas de actos terroristas e catástrofes naturais.

De igual forma, o receio pelos actuais fundamentalismos religiosos assenta no temor de grande parte das sociedades ocidentais por um regresso a uma nova «Idade das Trevas», consubstanciada numa ausência de separação entre o estado e a religião, o profano e o sagrado, o racional e o irracional. O marcado ateísmo e atitude de Lovecraft em relação à religião, deixada patente ao longo da sua obra e vastíssima correspondência, deixa igualmente transparecer a crise de valores e o declínio da importância da religião, característica da nossa sociedade, bem como pode ajudar a explicar a atracção, que a sua escrita continua a exercer sobre muitos leitores actuais.

Também não necessitamos de muita imaginação para entender as semelhanças entre estas ficções e as múltiplas teorias da conspiração que florescem no nosso tempo, a que alguns escritores americanos como Joan Didion, Thomas Pynchon ou Philip K. Dick dão uma muito original expressão evocativa de certas visões ou pre‑visões de Lovecraft.

Há uma percepção actual de que o verdadeiro poder por detrás das grandes decisões não é, nem nunca foi, o poder político institucionalizado e de que o inimigo se movimenta no seio da nossa sociedade. Os terroristas, que actualmente tanto receamos, são uma encarnação desse inimigo invisível, uma temática igualmente recorrente no cinema – lembremo‑nos, por exemplo, de They Live (1988), do já referido John Carpenter.

A propensão moderna para essas mesmas teorias da conspiração contribuiu também, pelo menos em parte, para criar uma aura de misticismo à volta da figura do autor aqui em análise. Boa parte da sua notoriedade, alcançada nos Estados Unidos da América e no resto do mundo, deve‑se à ideia de que Lovecraft terá sido o fiel depositário de conhecimentos ocultos, ou de que este terá pertencido a sociedades secretas e mantido contacto com figuras célebres do mundo do ocultismo tais como Aleisteir Crowley ou o escritor galês Arthur Machen, que em tempos pertenceram à Hermetic Order of the Golden Dawn, provavelmente uma das principais responsáveis pelas correntes místicas e gnósticas do século xx.

Neste caso concreto, a lenda não poderia andar mais longe da realidade, pois, para quem estiver mais familiarizado com a obra e a correspondência publicada do autor americano, facilmente verificará que fundamentalmente este era, em termos filosóficos, um materialista‑mecanicista, esvaziando o Universo de qualquer sentido teleológico e da dicotomia Bem‑Mal presente na maioria das religiões. O facto individual mais importante para esta autêntica «teoria da conspiração» que rodeia o autor será, porventura, a criação do livro ficcional Necronomicon, supostamente escrito pelo árabe louco Abdul Alhazred. Quando Lovecraft introduziu o nome desta obra fictícia nos seus contos, elaborou uma história da sua génese e encorajou escritores amigos, tais como Robert E. Howard, Robert Bloch ou Clark Ashton Smith a mencioná‑la em contos seus.

Contudo, estaria longe de imaginar que, mais tarde, teria de vir a público desmentir a existência real da mesma e do seu suposto autor. Num autêntico fenómeno de cultura popular e de consumismo exacerbado, em que tudo vale para vender, o suposto livro proibido tomou vida própria e transformou‑se num autêntico «Santo Graal» para todos aqueles sedentos de conhecimentos ocultos.

É, hoje, possível encontrar o título e referências aos seus «conteúdos» não só na literatura, mas também na música, no cinema, séries televisivas, banda desenhada, jogos de computador, para não falar das inúmeras ligações possíveis de estabelecer na Internet. A utilização de referências a este livro em múltiplos contos e por diversos autores revelou‑se um recurso tão eficaz que existem, inclusivamente, casos de fraude envolvendo vendedores e compradores ávidos da suposta obra «proibida». Igualmente interessante é a existência de algumas edições publicadas com o mesmo título como o Necronomicon e Necronomicon II, do conhecido artista surrealista suíço H.R. Giger, ou ainda o Simon Necronomicon, amplamente inspirado na mitologia suméria.

Esta, já extensa, referência ao mítico volume serve um duplo objectivo. Por um lado, exemplifica o alcance de um dos múltiplos «tentáculos» lovecraftianos na cultura popular (à semelhança da própria criatura tentacular o «Grande Cthulhu») e, por outro, acrescenta valor a um autor que, neste aspecto, e escrevendo sobre livros fictícios, lança mão de uma técnica utilizada por vultos maiores da literatura, tais como Jorge Luís Borges na sua História Universal da Infâmia e O Livro de Areia. Como veremos mais adiante, o próprio Borges não escaparia incólume à influência do escritor norte‑americano, referindo‑se a ele na sua An Introduction to American Literature e escrevendo um pequeno conto intitulado «There Are More Things», claramente inspirado por ele.

Contudo, as ligações entre a escrita de Lovecraft e a nossa época não terminam nos receios pela utilização desregrada da ciência, nem nas modernas teorias da conspiração. Muitas mais poderão ser estabelecidas, tais como a temática da indiferença do Universo em relação à nossa existência. Para alguém pertencente ao nosso tempo, esta temática poderá ser, porventura, uma das que mais impacto produz. A perspectiva de que tudo aquilo que fazemos, pensamos e a que damos importância é, num sentido mais vasto, inconsequente e insignificante, pode ser tão ou mais perturbador do que tudo o que foi anteriormente referido. Na nossa vivência quotidiana não é estranho o sentimento de alienação e de insignificância experimentado pelo indivíduo, particularmente nas grandes metrópoles. Na ficção lovecraftiana, essa insignificância é atribuída a toda a Humanidade face à dimensão esmagadora do Cosmos e dos seres poderosíssimos que alberga. É, mais uma vez, a afirmação do «terror cósmico» em toda a sua plenitude. Lovecraft afirma a esse propósito:

«Contrary to what you may assume, I am not a pessimist but an indifferentistthat is, I don’t make the mistake of thinking that the resultant of the natural forces surrounding and governing organic life will have any connexion with the wishes or tastes of any part of that organic lifeprocess […]. Human liking or welfare is no probabilityfactor at all – and no person has a right to express an opinion on the future of the world, so long as he has the least tendency to consider a manfavouring course as intrinsically more likely to be probable than any other course. If he lets the quality of manfavouringness serve in lieu of real evidence to predispose him toward belief in any direction, then his opinion is null and void as a serious philosophical factor» (Lovecraft, ed. Joshi 2000b: 229‑230)

Quando as suas personagens típicas são confrontadas com a existência de criaturas infinitamente mais antigas e poderosas, que têm objectivos próprios e para as quais a Humanidade é vista da mesma forma como nós veríamos seres que consideramos inferiores, completamente impotentes, poderemos pensar em como nos sentimos perante acontecimentos sociais, políticos ou naturais que nos ultrapassam completamente enquanto indivíduos, ou até mesmo enquanto raça humana. Bastará recordarmo‑nos, novamente, dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 ou do tsunami na Indonésia, para termos uma consciência bem real dessa impotência. Confrontado com acontecimentos dessa magnitude, uma das reacções poderá ser o refúgio, ou a procura de respostas na religião.

Contudo, para outros, como Lovecraft, esse porto de abrigo não existe. Não há espaço para tal na sua concepção de Universo. Tudo o que resta ao Homem é suportar estoicamente as condições que lhe são apresentadas e refugiar‑se na segurança relativa e muito limitada da tradição, tão cultivada pelo autor americano de descendência inglesa.

Tudo isto é também corroborado pelo já mencionado Michel Houellebecq:

«Lovecraft was well aware of the distinctly depressing nature of his conclusions. As he wrote in 1918, “all rationalism tends to minimalise the value and the importance of life, and to decrease the sum total of human happiness. In some cases the truth may cause suicidal or nearly suicidal depression.” He remained steadfast in his materialism and atheism. In letter after letter he returned to his convictions with distinctly masochistic delectation. Of course, life has no meaning. But neither does death. And this is another thing that curdles the blood when one discovers Lovecraft’s universe. The deaths of his heroes have no meaning. Death brings no appeasement. It in no way allows the story to conclude. Implacably, HPL destroys his characters, evoking only the dismemberment of marionettes. Indifferent to these pitiful vicissitudes, cosmic fear continues to expand. It swells and takes form. Great Cthulhu emerges from his slumber.» (Houellebecq 2005: 32)

Esta visão do Mundo, encontrada também em filósofos como Nietzsche e Schopenhauer, lidos por Lovecraft, parece ocupar um lugar cada vez mais notório na realidade actual da sociedade ocidental, nas quais o peso da religião e do antropocentrismo conferido, mas também, paradoxalmente, negado pela Ciência têm cada vez menos importância.

Por todas as ligações já aqui enunciadas, bem como por muitas outras que ainda poderão ser estabelecidas, consideramos pertinente proceder à investigação de influências lovecraftianas na cultura popular contemporânea, dá‑las a conhecer e entender porque perduram ainda hoje na sociedade ocidental, para que H. P. Lovecraft possa emergir, como o «Grande Cthulhu», devendo ser considerado como um autor digno de ser conhecido e lido pelo público português. Finalmente, face à sua relativa complexidade e fulcral importância para os objectivos a que nos propomos, será feita uma análise do «Cthulhu Mythos». Sendo discutível sobre se será no contexto pseudo‑mitológico que residem as obras de maior qualidade literária do autor, parece‑nos bastante evidente que são as obras que gravitam à volta do «Mythos» aquelas que maior impacto tiveram e têm no cinema, literatura, pintura e ilustração nos nossos dias, provando a popularidade actual gozada pelo autor e a sua importância, na cultura ocidental contemporânea.

Nem sempre será fácil definir a obra deste autor, uma vez que esta não se pode identificar totalmente com o que viria a ser conhecido como Ficção Científica, mas o Gótico também se caracteriza por essa indefinição e transgressão de categorias e géneros literários. Como Fred Botting afirma: «… changing features, emphases and meanings disclose Gothic writing as a mode that exceeds genre and categories, restricted neither to a literary school nor to a historical period.» (Botting 1996: 14) Poderá ser precisamente nessa indefinição que reside um dos segredos da longevidade e actualidade da escrita do alto e magro escritor de Nova Inglaterra, sobrevivendo a autores muito mais populares na sua época, mas que não ultrapassaram o teste do tempo.

 

Capítulo 1
Precursores de Lovecraft

Neste primeiro capítulo tentaremos identificar os autores que constituíram as principais influências para Lovecraft, realçando nesses contributos os aspectos que acabariam por perdurar na sua obra e, posteriormente, na cultura popular contemporânea.

Para alcançar esse objectivo, serão, em primeiro lugar, analisadas algumas das principais influências recebidas dos seus precursores, como Poe, Hawthorne ou Arthur Machen. Veremos como coabitam no autor, em simultâneo, a tradição e a inovação, ingredientes antagónicos de onde a originalidade da sua escrita deriva. Nessa análise incluiremos alguns dos temas presentes em cada um dos autores, temas esses que passaram para a escrita do autor americano e que com o seu cunho pessoal contribuíram para o desenvolvimento do Gótico contemporâneo.

Podem identificar‑se três fases distintas na escrita de Lovecraft. Na primeira, o autor é claramente influenciado pelos autores que leu numa fase precoce da sua vida e que, assumidamente, o influenciaram.

A escrita desta primeira fase poderá ser considerada mais conservadora e próxima dos parâmetros mais convencionais da escrita gótica. É uma escrita claramente influenciada por Edgar Allan Poe e Nathaniel Hawthorne, entre outros. A segunda fase da sua escrita é claramente fantasista e seguidora da escrita do autor anglo‑irlandês Lord Dunsany.

Esta fase é também conhecida pelo Dream Cycle e dela fazem parte obras como The DreamQuest of Unknown Kadath. A terceira fase de escrita é, porventura, a mais importante, a mais original e a que acabou por conferir maior notoriedade ao autor, criando e desenvolvendo o «Mythos», elemento que acabaria por perdurar na cultura ocidental. No desenvolvimento da sua derradeira fase de escrita não terá sido alheia a influência de Arthur Machen, através de obras como The Great God Pan, na qual fica clara a temática da persistência de entidades antigas no mundo moderno e da verdadeira realidade que se esconde para além da ilusória aparência da normalidade. Boa parte da dicotomia tradição/inovação poderá ser posta em evidência se analisarmos a evolução de Lovecraft através das diferentes fases até alcançar o seu próprio estilo, demarcando‑o dos demais autores do Gótico, e mantendo‑o actual nos dias de hoje.

Igualmente importante para uma melhor compreensão da sua obra será necessário entender que, para alguém que viria a escrever maioritariamente no mundo da pulp fiction, Lovecraft teve uma infância bastante invulgar. O facto de ter nascido no seio de uma família de old americans, abastada e com uma extensa biblioteca, ajudou no desenvolvimento do que poderia ser considerada uma criança‑prodígio. Enquanto o seu pai definhava, vítima de sífilis terminal, o seu avô chamou a si boa parte da responsabilidade pela educação do neto, colocando‑o em contacto com os principais autores greco‑latinos, influência que iria fazer‑se sentir em todo o seu percurso literário. As Mil e Uma Noites iriam igualmente constituir uma marca indelével no seu imaginário, contribuindo para o seu gosto pelo exótico.

A par com autores clássicos e as influências orientais, Lovecraft teve um contacto precoce com autores anglo‑saxónicos, em parte explicando o futuro apego do autor em relação à «mãe Inglaterra», admirando os autores ingleses e, particularmente, o século xviii inglês como uma «época de ouro». Fazendo parte dos preferidos, poderemos destacar The Rime of the Ancient Mariner, de Coleridge, Paradise Lost, de Milton, ambos com ilustrações de Gustave Doré, Wonder Book, de Hawthorne, a poesia de Keats, entre muitos outros.

 

1.1 – Edgar Allan Poe: Uma Influência Capital

Por muito importantes que os outros autores referidos possam ser, a influência determinante para o seu interesse no género Gótico terá sido, indubitavelmente, Edgar Allan Poe. O próprio Lovecraft afirma: «Then I struck Edgar Allan Poe! It was my downfall, and at the age of eight I saw the blue firmament of Argos and Sicily darkened by the miasmal exhalations of the tomb!» (Lovecraft, cit Joshi 1996: 27)

Não é nosso objectivo realizar um estudo exaustivo de todas as influências de Poe na obra de Lovecraft, mas sim dar conta daquelas que se afiguram importantes para o perdurar da sua obra na contemporaneidade. Uma prova importante da relevância que Poe detinha para o escritor de Nova Inglaterra é o facto de este lhe ter dedicado todo um capítulo em Supernatural Horror in Literature, em que o autor reconhece não só o impacto em si próprio, mas também no Gótico em geral.

Parece‑nos bastante claro que a forte ligação de Lovecraft à Ciência é um dos factores mais influentes na manutenção da sua actualidade, aspecto que partilha, de alguma forma, com Poe, para além do apego que os dois nutriam igualmente pelos clássicos, quer greco‑latinos, quer ingleses. Será de todos nós conhecido, o emprego de algumas das mais recentes teorias e descobertas científicas e pseudo‑científicas na escrita de Poe: a hipnose em The Facts in the Strange Case of M. Valdemar, teorias bastante próximas do «Big Bang» em Eureka, ou a utilização de códigos secretos em The GoldBug.

Da mesma forma são encontradas influências dos mais variados ramos científicos na ficção lovecraftiana. Desde logo, a astronomia, sem a qual a própria noção de «terror cósmico» não teria sido possível. Servem também de exemplo as inúmeras referências à geologia, paleontologia, anatomia, entre outras, presentes em At the Mountains of Madness, fazendo lembrar, por sua vez, The Narrative of Arthur Gordon Pym, pela localização de parte da narrativa na Antártida, o tom épico da narrativa, os cenários sublimes na sua grandiosidade, ou o misterioso grito proferido pelos protagonistas de ambas as obras: «Tekelili, tekelili!». De assinalar também a referência ao ninth planet em The Whisperer in the Darkness, quando o planeta Plutão tinha sido descoberto muito recentemente.

O uso da Ciência é, no entanto, ambíguo.

Através dela alguns mitos e superstições podem ser desfeitos, já não havendo lugar para os «vulgares» fantasmas e fórmulas góticas tradicionais em ambos os autores, constituindo esta característica uma marca da sua modernidade. Por outro lado, a Ciência continua a ser uma fonte de inquietações, abrindo perspectivas novas e aterradoras da realidade, como em At the Mountains of Madness, ou pode ainda dar respostas insatisfatórias a alguns problemas decorrentes da condição humana. Recordemos novamente o exemplo de The Facts of the Strange Case of M. Valdemar, em que, através da hipnose alguém é impedido de morrer. Apesar do sucesso aparente em travar a morte, a Ciência não é capaz de oferecer uma verdadeira alternativa, nem é capaz de explicar a proveniência das estranhas vozes que emanam do corpo hipnotizado. Esta mesma inquietação e ambivalência em relação à Ciência irá perpassar por grande parte da obra de Lovecraft, oferecendo‑nos uma perspectiva fria e realista da existência, não nos presenteando com um conforto alternativo à religião e, tal como as estranhas vozes do conto de Poe, poderá abrir horizontes perturbadores numa realidade que pensávamos conhecer e dominar.

Tanto em Poe como em Lovecraft, manifesta‑se o fim da visão ingénua do pensamento positivista dominante até ao século xix, antecipando alguma desilusão em relação à ciência, típica do século xx. A nível da forma, refira‑se a predilecção dos dois autores pela short story. A este respeito, Lovecraft afirma, no seu ensaio crítico: «Truly may it be said that Poe invented the short story in its present form.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 43)

O facto de o americano de Providence ter igualmente escolhido a narrativa de curta extensão não terá sido por acaso. O efeito que esta produz no leitor encontra‑se também intrinsecamente ligado à preponderância conferida à narrativa, em detrimento da caracterização psicológica das personagens. Lovecraft também irá pronunciar‑se sobre esse aspecto:

«Like most fantaisistes, Poe excels in incidents and broad narrative effects rather than in character drawing. His typical protagonist is generally a dark, handsome, proud, melancholy, intellectual, highly sensitive, capricious, introspective, isolated, and sometimes slightly mad gentleman of ancient family and opulent circumstances; usually deeply learned in strange lore, and darkly ambitious of penetrating to forbidden secrets of the universe.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 46)

Nesta descrição, Lovecraft bem poderia estar a fazer o retrato de muitas das suas próprias personagens.

Estas são, de uma forma bastante semelhante, anti‑heróis, mais concretamente, e na esmagadora maioria dos casos pacatos homens de letras, economistas e outros indivíduos sem quaisquer aptidões aventureiras. Deparando‑se com visões e acontecimentos perturbadores, as suas vidas são afectadas de forma irreversível. Ao tentarem lidar com situações para as quais nenhum ser humano está capacitado (muito menos este tipo de homens), o desfecho é, quase invariavelmente, a loucura ou a morte.

Apesar desta tónica na narrativa, partilhada por Lovecraft e Poe, não poderemos esquecer a superior ênfase que Poe coloca nos traços psicológicos das suas personagens, trabalhando, muitas vezes, no sentido de o leitor duvidar da fiabilidade destas e do próprio narrador. Este aspecto muito importante em Poe está também presente, embora em menor medida, na ficção de Lovecraft, quando as personagens deixam de ser fidedignas, fruto da loucura provocada pelas terríveis descobertas que fazem. Em At the Mountains of Madness, face às perturbadoras descobertas que comprometem toda a história conhecida pela Humanidade, uma das personagens parece ter perdido a Razão, embora outras possíveis explicações para o seu perturbado estado sejam propostas:

«It is very probable that the thing was a sheer delusion born of the previous stresses we had passed through, and of the actual though unrecognized mirage of the dead transmontanecity experienced near Lake’s camp the day before; but it was so real to Danforth that he suffers from it still. He has on rare occasions whispered disjointed and irresponsible things about ”the Black Pit”, “the carven rim”, “the protoShoggoths”, “the windowless solids with five dimensions”, “the nameless cylinder”, the “elder Pharos”, “YogSothoth”, “the primal white jelly”, “the color out of space”, “the wings”, “the eyes in darkness”, “the moonladder”, “the original, the eternal, the undying”, and other bizarre conceptions; but when he is fully himself he repudiates all this and attributes it to his curious and macabre reading of earlier years.» (Lovecraft 1989: 138)

A propósito da ambiguidade de Poe em relação aos factos narrados, Fred Botting afirma:

«Poe’s tales sustain a distance, an ambivalence towards the terrors and imaginings they present. Questioning as well as promoting the dark powers of the imagination, Poe’s fiction leaves boundaries between reality, illusion and madness unresolved rather than, in the manner of his contemporaries, domesticating Gothic motifs or rationalising mysteries.» (Botting 1997:120).

Marca também sempre presente em Poe é a utilização dada aos cenários como forma de caracterizar as mentes perturbadas dos protagonistas. As descrições minuciosas servem, por conseguinte, a dupla função de aproximar a narrativa da realidade, transformando‑a num espelho mental dos seus protagonistas.

Um caso paradigmático é, sem dúvida, a caracterização da velha casa em The Fall of the House of Usher, profundamente representativa da mente perturbada de Roderick Usher. Donald A. Ringe, em American Gothic, vem confirmar a utilização simbólica que Poe faz do espaço:

«In using a house or a room as a symbol of mind, Poe was by no means original. In the major romances of Charles Brockden Brown, a temple, house, room, closet, or cave is often used to symbolize the mental state of a character, and in Richard Henry Dana’s ‘Paul Felton’, the protagonist goes completely mad in a hut called, appropriately, the Devil’s Haunt. But if Poe resembles Brown and Dana in his use of such enclosures a consistent pattern of imagery, which detailed and explicit, contributes markedly to our understanding of his characters and the themes he attempts to express through their bizarre actions.» (Ringe 1982: 136‑137)

Parece‑nos razoável afirmar que, neste aspecto em particular, Lovecraft e Poe diferem, pois o autor de Providence usa a descrição dos espaços maioritariamente como o prenúncio de uma ameaça exterior, ao mesmo tempo que realça a insignificância humana face à mesma. O espaço parece centrar‑se predominantemente no Universo exterior.

No caso de Poe, este toma uma feição mais interior.

Em The Colour Out of Space, escrito por Lovecraft, a natureza, alterada pelo estranho meteorito, transfigura‑se, tornando‑se, ela própria, alienígena e tão singular quanto o próprio elemento vindo do espaço.

Marcas desse exterior profundamente alienígena e ameaçador são igualmente encontradas em The Call of Cthulhu, consubstanciadas nas estranhíssimas formas arquitectónicas presentes na cidade, até então submersa, local onde «O Grande Cthulhu» se encontrava adormecido:

«Johansen and his men were awed by the cosmic majesty of this dripping Babylon of elder demons, and must have guessed without guidance that it was nothing of this or of any sane planet. Awe at the unbelievable size of the greenish stone blocks, at the dizzying height of the great carven monolith and, and at the stupefying identity of the colossal statues and basreliefs with the queer image found in the shrine on the Alert, is poignantly visible in every line of the mate’s frightened description. (…) He has said that the geometry of the dreamplace he saw was abnormal, nonEuclidean, and loathsomely redolent of spheres and dimensions apart from ours. Now an unlettered seaman felt the same thing whilst gazing at the terrible reality.» (Lovecraft, ed. Joshi 1999: 211)

Não obstante estas diferenças, outros pontos de aproximação são possíveis de ser estabelecidos entre os dois autores. Já foi anteriormente referido que o «terror cósmico» é central na obra lovecraftiana. Parece haver, em termos deste conceito, uma aproximação entre o mesmo e algumas obras de Poe. É o próprio Lovecraft que no seu ensaio Supernatural Horror in Literature evidencia essa aproximação, quando no capítulo vii, dedicado exclusivamente ao autor seu predecessor, menciona o conto «The Man of the Crowd». A propósito deste diz o seguinte: «The Man of the Crowd, telling of one who roams day and night to mingle with streams of people as if afraid to be alone, has quieter effects, but implies nothing less of cosmic fear.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 44).

Os dois autores sentem a mesma necessidade em penetrar nos mistérios da morte, bem como nos mistérios do tempo e do espaço. Esse interesse pelos mistérios do Universo e pela ameaça que ele pode representar, tão evidente na obra lovecraftiana, é também encontrada em Eureka de Poe. Como é sabido, nesta sua obra emblemática, Poe consegue articular aspectos do interior do indivíduo, nomeadamente, o seu «impulso para o perverso» com a natureza do próprio Universo. Este surge de uma partícula primordial, a manifestação de Deus, que explode numa diversidade que dará origem a todos os objectos existentes, incluindo o ser humano.

Contudo, ao longo de um tempo quase infindável, todo este processo irá ser revertido até todo o Universo voltar à sua unidade original, para se voltar a expandir novamente, num processo cíclico que nunca terminará. A ligação com o indivíduo é feita no sentido em que, embora todos os seres humanos possuam um sentimento forte em relação à sua unidade individual, existe um impulso igualmente forte no sentido contrário, um impulso no sentido da reunificação com o Todo, implicando este processo a anulação do meramente pessoal. É precisamente esta reunificação que é entendida como perversa, pois atenta contra a existência individual.

A ligação que pode ser estabelecida com Lovecraft não reside tanto nas implicações para o indivíduo, mas sim naquelas que advêm da integração no Universo e da convivência com as suas forças superiores. Com efeito, ambos os autores parecem acreditar que o Cosmos já contém em si a semente da sua própria destruição, pois o Universo é, de certa forma, perverso e conspira contra nós enquanto seres individuais. É essa perversidade cósmica que aproxima, neste aspecto, Lovecraft de Poe. Para Lovecraft, a ameaça exterior que o Cosmos nos coloca é bem real. O Universo não se preocupa connosco e poderá mesmo ter um papel activo na nossa eliminação. Na melhor das perspectivas, este poderá ser apenas indiferente.

Donald A. Ringe em American Gothic – Imagination & Reason in Nineteenth‑Century Fiction também aproxima os dois autores neste aspecto em particular, quando defende que a concepção cósmica de Poe explica, não apenas o sentimento contraditório de cada indivíduo perante a morte, o sentimento de repulsa e de atracção perante a sua própria destruição, mas algumas das suas histórias são também parábolas sobre a destruição do próprio mundo em que vivemos, com a consequente destruição da Humanidade. Ringe afirma:

«The Fall of the House of Usher ends with the collapse of the whole world of the tale into the tarn; and The Masque of the Red Death concludes with a phrase that suggests no limited application of its theme. Three of the last four words in the tale are absolutes: “Darkness and Decay and the Red Death held illimitable dominion over all”. This certainly implies a great deal more than the destruction of a group of revelers in a castellated abbey, or even the personal demise of Prince Prospero. This is the death of a World.» (Ringe 1982: 150‑151)

Quer Poe, quer Lovecraft afastam‑se, assim, do optimismo transcendentalista ao negarem um carácter essencialmente benigno ao Universo, pois em Eureka está implícito que o destino último da vida é a morte. Para Lovecraft, o Universo é também tudo menos benigno, embora a sua concepção do mesmo não implique necessariamente um destino universal pré‑definido. O Universo, parece, isso sim, governado pelo Caos e são imprevisíveis as forças que o moldam. O papel do ser humano, individual ou colectivamente, parece não ter qualquer expressividade no seio de todos os acontecimentos. Quaisquer pretensões de importância num contexto universal são negadas por Lovecraft.

Não se esgotando todas as ligações possíveis de estabelecer entre Poe e Lovecraft, fica desde já patente a indelével influência que o primeiro exerceu sobre o segundo, embora o cavalheiro de Providence tenha vindo progressivamente a encontrar o seu próprio estilo e espaço ficcional, como veremos mais adiante.

 

1.2 – Hawthorne e o Puritanismo

Profundamente ligado à «sua» Nova Inglaterra, Lovecraft não foi o primeiro a centrar grande parte das suas inquietações e contos nesse cenário, característica facilmente reconhecível por todos aqueles que conhecem e apreciam a sua obra. Enquanto Poe preferiu muitas vezes os tradicionais cenários europeus, mais condizentes com o imaginário gótico, Nathaniel Hawthorne soube descobrir, nas agrestes elevações e sombrias florestas do leste americano, um substituto à altura para os castelos mediterrânicos. Exemplo disto é a sua incontornável obra The House of the Seven Gables, em que a própria arquitectura típica das construções dos puritanos colonizadores da Nova Inglaterra é a peça mais central deste romance. Na psicologia puritana conseguiu ainda descobrir uma fonte inesgotável de inquietações que iriam caracterizar em grande parte a sua obra. A respeito das diferenças entre Poe e Hawthorne, contemporâneos um do outro, Lovecraft escreveu:

«Poe represents the newer, more disillusioned and more technically finished of the weird schools that rose out of this propitious milieu. Another school the tradition of moral values, gentle restraints, and mild, leisurely phantasy tinged more or less with the whimsical was represented by another famous, misunderstood and lonely figure in American letters – the shy and sensitive Nathaniel Hawthorne, scion of antique Salem and great grandson of one of the bloodiest of the old witchcraft judges» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 47).

A influência de Hawthorne foi precoce. Alguns dos clássicos greco‑latinos que Lovecraft leu na sua infância vinham incluídos em A Wonder Book e Tanglewood Tales, mencionados pelo autor no seu Supernatural Horror in Literature. Para além do já referido apego à terra natal, outros pontos de contacto significativos surgem, fruto de obras como o já referido romance The House of the Seven Gables, considerada por Lovecraft como «New England’s greatest contribution to weird literature» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 48).

A temática do castigo de descendentes pelos pecados dos seus antecessores («sins of the fathers»), tão tipicamente puritana e já detectável em The Castle of Otranto, de Horace Walpole, é também tratada por Lovecraft, embora com algumas diferenças.

No pensamento puritano, alguns indivíduos estarão já indelevelmente marcados pelo pecado, nada podendo fazer a esse respeito. Há um factor de tragédia e de inevitabilidade do destino, associado ao Puritanismo.

De igual forma, em The Birthmark, o sinal em forma de mão no rosto da esposa do protagonista sugere a marca do pecado e transforma‑se no alvo da obsessão do cientista pela perfeição. Como Lovecraft, Hawthorne critica também os efeitos decorrentes do progresso e da revolução industrial do século xix.

Não obstante estes pontos em comum, quando falamos de H. P. Lovecraft não poderemos esquecer o seu completo ateísmo, característica que perpassa para a sua obra. Desta forma, falar das implicações religiosas do pensamento puritano não fará grande sentido se as encararmos de maneira directa.

Algumas implicações indirectas poderão, isso sim, ser detectadas no pessimismo com que Lovecraft encara a existência humana e a inevitabilidade do seu desaparecimento. Constituindo uma excepção, o conto lovecraftiano «Rats in the Walls», inclui a temática do pecado que não pode ser expurgado de uma forma mais evidente, sendo que o mesmo será alvo da nossa análise um pouco mais à frente.

Apesar de se considerar um «puritano em decadência», Lovecraft irá, de facto, reter algumas características desse factor tão marcante no pensamento e na literatura americana. David Punter, em The Literature of Terror, defende que aos contos que têm como tema a degenerescência por motivos históricos (ou familiares), o escritor de Providence irá acrescentar inquietações sobre o passado «genético».

No cenário claustrofóbico da Nova Inglaterra de Hawthorne, encontraremos o tenebroso passado da caça às bruxas ou o peso do pecado e da culpa omnipresente.

Na Nova Inglaterra ficcionada de Lovecraft irão ser acrescentadas inquietações que se prendem com miscigenações genéticas (The Shadow Over Innsmouth), ou mesmo com o facto de a origem da espécie humana não coincidir com a visão religiosa e, consequentemente, puritana. Tais medos só seriam possíveis de transpor num autor pós‑darwinista e que, de facto, aceitasse a teoria da evolução das espécies com todas as suas implicações, ao mesmo tempo que a desconfiança e o medo em relação a diferentes culturas e grupos étnicos, característica tipicamente puritana, permanece. Outras obras de Hawthorne com claro pendor gótico, incluem Rappaccini’s Daughter e The Birthmark. A temática subjacente a ambas diz respeito à obsessão dos protagonistas em alcançar um objectivo, particularmente a perfeição. É o caso da segunda obra, em que o cientista Aylmer, marido de Georgiana, fica obcecado em remover o sinal de nascença em forma de mão que esta tem no rosto.

A fútil procura pela perfeição leva à tragédia.

É, sem dúvida, uma crítica à ciência e aos valores positivistas levados ao extremo, retirando qualquer possibilidade de transcendência à existência humana.

Mais uma vez, como marca indelével da sua ficção, Lovecraft partilha deste receio em relação à Ciência, mais por medo da parcela de realidade até então desconhecida e que nos será revelada, do que propriamente por um conflito religioso no seu interior.

No aspecto religioso, pouco ou nada já resta de puritano no autor.

Outro ponto de contacto essencial entre os dois autores, e fundamental para a compreensão das respectivas obras, é, como já foi referido, o papel central que a Nova Inglaterra ocupa nas suas ficções. De facto, contrariamente a Poe, e, tal como Hawthorne, H. P. Lovecraft situou boa parte da sua ficção no seu local de origem. É certo que essa Nova Inglaterra é em parte ficcionada – lembremo‑nos do Miskatonic Valley, das cidades de Innsmouth, Dunwich, Arkham ou a «célebre» Miskatonic University, possuidora de uma biblioteca repleta de «livros proibidos». Da mesma forma, o lado atlântico do território americano é peça essencial para a ficção de Hawthorne. Uma vez mais, a propósito de The House of the Seven Gables, Lovecraft afirma em Supernatural Horror in Literature:

«[] an ancestral curse is developed with astonishing power against the sinister background of a very ancient Salem house – one of those peaked gothic affairs which formed the first regular buildingup of our New England coast towns…» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 48)

A consciência da capacidade que o ambiente em que cresceu tinha, para criar uma atmosfera de terror e moldar o espírito dos seus habitantes, fica bastante clara no seu conto «The Picture in the House»:

«[] But the true epicure in the terrible, to whom a new thrill of unutterable ghastliness is the chief end and justification of existence, esteems most of all the ancient, lonely farmhouses of backwoods New England, for there the dark elements of strength, solitude, grotesqueness, and ignorance combine to form the perfection of the hideous.» (Lovecraft, ed. Joshi 1999: 12)

Não será demais realçarmos o importante papel que a Nova Inglaterra ficcionada pelo autor detém no perdurar da sua obra. Com efeito, ao criar esse território mítico, Lovecraft consegue, igualmente, criar um espaço coerente no qual muitos dos seus contos se interligam e fazem sentido no seu conjunto.

É também nesse espaço que muitos dos autores seguidores da sua obra continuarão a situar os respectivos contos, contribuindo para a expansão e divulgação do local ficcionado.

Aquilo que poderia parecer um factor limitador, prendendo a obra a um tempo e um espaço específico, acaba por não o ser, pois a temática da obra lovecraftiana acaba por ser universal, «cósmica» até, sendo possível transpô‑la para outros locais, como poderemos ver nos capítulos subordinados aos autores seguidores da sua influência. Contribuindo como um espaço potenciador para a ocorrência de acontecimentos extraordinários, embora com o realismo necessário à sua verosimilhança, atrever‑nos‑íamos a dizer que o Miskatonic Valley poderá rivalizar em celebridade, salvo as devidas diferenças, com a Terra Média, cenário de boa parte da obra de J. R. R. Tolkien.

As razões para a popularidade dessa Nova Inglaterra criada por Lovecraft poderão prender‑se com o facto de que, embora ficcional, o Miskatonic Valley parece encaixar totalmente na nossa percepção de mundo real, até ao momento em que este se torna um mundo invadido pelo «Exterior». Nos seus contos, a erupção do que é alienígena afigura‑se‑nos perfeitamente concreto e duradouro, não desaparecendo com o acordar de um pesadelo.

A derradeira fase de escrita lovecraftiana rompe com a escrita fantasista, onde os acontecimentos têm lugar num mundo completamente à parte da nossa realidade quotidiana, como é o caso de Pegãna de Dunsany, ou da Terra Média de Tolkien, para colocar‑nos perante uma ameaça que sempre fez parte do nosso mundo, embora fosse uma parte desconhecida dessa realidade. Não se trata de situações em que os protagonistas são transportados para um mundo de fantasia paralelo ao nosso, como acontece com as obras do, presentemente, popular C. S. Lewis e o seu mundo de Narnia. Nos contos de Lovecraft, o mundo «real» e familiar é confrontado pelo aparentemente irreal, o que poderá potenciar uma maior identificação do leitor com os acontecimentos narrados. Um contexto perfeitamente verosímil, penetrado pelo inverosímil terá, sem dúvida, um maior efeito potenciador de identificação por parte dos leitores do que um mundo de fantasia, totalmente distinto, e com as suas próprias regras.

 

1.3 – Arthur Machen e os Mundos Ocultos

Essa mesma consciência da influência do meio ambiente no espírito, característica de uma mentalidade puritana, possuía‑a também o escritor galês Arthur Machen, que, ao contrário de Poe e de Hawthorne, foi uma influência tardia para Lovecraft e que profundamente determinaria a derradeira fase da sua escrita. Com efeito, Lovecraft terá contactado com as obras de Machen apenas em 1923, e a excitação provocada pela descoberta foi tamanha que levou o autor americano a dizer: «Of living creators of cosmic fear raised to its most artistic pitch, few if any can hope to equal the versatile Arthur Machen.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 61)

Em Supernatural Horror in Literature, Machen é incluído no capítulo intitulado «Modern Masters», juntamente com outros nomes, tais como Algernon Blackwood e Lord Dunsany. No conjunto dos elogios que Lovecraft dedica ao escritor galês, refere o apego que este tinha pela sua terra natal, também havendo, nesse aspecto, bastante proximidade entre os dois autores. Para além da veneração romântica pelos elementos naturais dos respectivos locais de origem, partilhavam ainda uma profunda admiração pela cultura greco‑romana. A esse propósito, refere no seu ensaio:

«Mr. Machen, with an impressionable Celtic heritage linked to keen youthful memories of the wild domed hills, archaic forests, and cryptical Roman ruins of the Gwent countryside, has developed an imaginative life of rare beauty, intensity, and historic background. He has absorbed the mediaeval mystery of dark woods and ancient customs (…) and finds strange magic in the fortified camps, tersellated pavements, fragments of statues and kindred things which tell of the day when classicism reigned and Latin was the language of the country.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 62)

 

Em ligação com o mundo greco‑latino, Lovecraft faz referência a The Great God Pan, que introduz também a temática da permanência de seres antigos e a influência que exercem nos tempos actuais. Sendo o conto atrás referido a história da miscigenação entre um ser humano e uma divindade, resultado de uma experiência científica e com resultados desastrosos, sobressaem, desde logo, as semelhanças com o conto «The Dunwich Horror», do autor americano. Lovecraft irá ainda elogiar a capacidade de Machen em conseguir criar «terror cósmico», ao deixar entrever a existência de seres primordiais, mais antigos e poderosos que a raça humana. A este respeito, e a propósito de The Novel of the Black Seal, Lovecraft afirma:

«This theme receives its finest treatment in the episode entitled The Novel of the Black Seal; where a professor having discovered a singular identity between certain characters scrawled on Welsh limestone rocks and those existing in a prehistoric black seal from Babylon, sets out on a course of discovery which leads him to unknown and terrible things. A queer passage in the ancient geographer Solinus, a series of mysterious disappearances in the lonely reaches of Wales, a strange idiot son born to a rural mother after a fright in which her inmost faculties were shaken; all these things suggest to the professor a hideous connexion and a condition revolting to any friend and respecter of the human race.» (Idem: 64)

Na procura do «terror cósmico» e de uma maior verosimilhança, o célebre conto lovecraftiano «The Call of Cthulhu» irá utilizar algumas das mesmas técnicas que Machen utilizou nos seus contos, nomeadamente a «descoberta» de artefactos em diferentes partes do mundo e em diferentes culturas, mas que apontam para a existência das mesmas poderosas e perturbadoras entidades. No entanto, Lovecraft irá diferenciar‑se de Machen no sentido em que estas entidades, apesar de largamente superiores aos seres humanos, podem, para o autor americano, contrariamente ao galês, ser explicadas racionalmente através da Ciência. No caso da ficção do autor galês, o lado espiritual encontra‑se mais presente, o que é explicável pelo facto de, ao contrário de Lovecraft, este autor não se posicionar como um ateu.

Sobre este aspecto, S. T. Joshi diz o seguinte:

«Temperamentally Machen was not at all similar to Lovecraft: an unwavering AngloCatholic, violently hostile to science and materialism seeking always for some mystical sense of “ecstasy” that might liberate him from what he fancied to be the prosiness of contemporary life. Machen would have found Lovecraft’s mechanistic materialism and atheism repugnant in the extreme.» (Joshi 1996: 298)

Também David Punter, em The Literature of Terror, deixa entrever o conceito de separação entre corpo e alma, quando, a propósito do contacto entre humanos e o Great God Pan, refere:

«The paradox of “The Great God Pan” is that the visitation which liberates the human being from the repression of false assumptions also destroys the barriers which retain human individuation: the liberation of desire returns man to his primal association with the beast and destroys the soul.» (Punter 1978: 264)

Para além da ideia da separação entre o corpo e a alma, este excerto também nos revela que o tópico da realidade para além da aparência ilusória se encontra em Machen. Em Supernatural Horror in Literature, Lovecraft refere a obra The Three Impostors do escritor galês, dando conta disso mesmo:

«Here we find in its most artistic form a favourite weird conception of the author’s; the notion that beneath the mounds and rocks of the wild Welsh hills dwell subterraneously that squat primitive race whose vestiges gave rise to our common folk legends of fairies, elves, and the “little people”, and whose acts are even now responsible for certain unexplained disappearances, and occasional substitutions of strange dark “changelings” for normal infants.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 64)

A mesma temática é central para compreendermos a obra de H. P. Lovecraft, bem como a explicação que justifica o seu perdurar na cultura ocidental contemporânea. O facto de o terror ser exterior e muitas vezes invisível não significa que seja inexistente, ou que não volte à superfície, como um autêntico «regresso do reprimido».

 

1.4 – «Rats in the Walls»: Síntese de Várias Influências

Podendo servir como demonstração da influência fundamental dos três autores aqui abordados, analisemos brevemente o célebre conto «Rats in the Walls», presente em numerosas antologias que incluem contos de Lovecraft, e que parece condensar muitas temáticas comuns às obras de Poe, Hawthorne e Machen. Nele é possível encontrar características muito semelhantes a certos tópicos do pensamento puritano, tais como a profunda fixação no pecado que não pode ser expurgado, aqui materializado na ideia de uma casa amaldiçoada que acompanha toda uma família e a inevitabilidade de uma tragédia que nem a emigração de um antecessor consegue impedir. Tudo isto depõe a favor de uma concepção fatalista da inevitabilidade do destino.

Um dos aspectos mais relevantes e reveladores de características puritanas é a sujeição a uma fatal predestinação, neste caso da compra da casa. É uma fatalidade que atravessa o próprio Oceano Atlântico, não obstante as lendas que falavam de terríveis acontecimentos relacionados com a casa Exham Priory:

«It was this legendry which definitely turned my attention to my transatlantic heritage, and made me resolve to purchase and restore the family seat which Norrys shewed to Alfred in its picturesque desertion…» (Lovecraft, ed. Joshi 1997: 15)

São manifestamente claras as semelhanças com a obra de Hawthorne, The House of the Seven Gables, na qual acompanhamos uma aparente maldição que marca toda uma casa e uma família, ao longo de gerações. A maldição é lançada à família Pyncheon como consequência dos terríveis actos cometidos por um dos seus patriarcas, estendendo‑se a mesma aos seus sucessores. «Rats in the Walls» irá retomar a temática gótica dos denominados «sins of the fathers», aproximando‑se assim do tópico puritano:

«Neither my father, nor I knew what our hereditary envelope had contained, and as I merged into the greyness of Massachussets business life I lost all interest in the mysteries which evidently lurked far back in my family tree. Had I suspected their nature, how gladly I would have left Exha Priory to its moss, bats and cobwebs!» (idem: 45)

Por outro lado, a profunda ligação que o protagonista tem com a casa, parecendo a mesma possuir vida própria, e em que a sua existência se confunde com a dos seus habitantes, assemelha‑se, nesse aspecto, à ligação inextricável entre a casa e os dois irmãos de The Fall of the House of Usher, de Poe. Igualmente observamos a recorrência de uma temática típica de Machen, pelo facto de a antiquíssima mansão, Exham Priory, estar situada em terrenos nos quais se praticavam remotos e terríveis cultos ligados à antiguidade e que continuam a exercer o seu poder no presente. O próprio processo de regressão evolutiva que o protagonista sofre ao descobrir a terrível verdade sobre a sua família, assemelha‑se ao destino que a misteriosa e mortífera jovem, filha do deus Pan e da mulher enlouquecida pelo contacto com a divindade, sofre em The Great God Pan. Apesar de o capítulo referente às influências de outros escritores na escrita de Lovecraft ter sido centrado nos três autores supracitados, mais alguns nomes poderiam ter sido referidos. Dentre este último grupo, destacar‑se‑iam os nomes de Lord Dunsany e Robert Chambers. Em relação a Dunsany, já anteriormente referido, não poderemos esquecer a influência que exerceu, dando à escrita de Lovecraft um pendor mais fantasista e, porventura, menos original, como diversos críticos têm apontado ao longo dos anos. Não tivesse Lovecraft enveredado por um estilo mais individualizado, o seu nome teria, provavelmente, sido apagado da memória de todos, algo que aconteceu, em certa medida, ao próprio Dunsany. Como contributo importante, poderíamos destacar a inspiração para a criação de um panteão de criaturas poderosas, as quais iriam dar origem ao «Cthulhu Mythos». Tal inspiração, refere S. T. Joshi, teria sido retirada concretamente das obras The Gods of Pegãna e Time of the Gods, ambas envolvendo um conjunto de histórias ligadas entre si por um panteão imaginário.

Em relação a Robert Chambers, o mesmo é referido por Lovecraft em Supernatural Horror in Literature como autor de alguns dos mais inspirados contos de terror. Desses realça «The King in Yellow», um conjunto de contos vagamente ligados entre si pela existência fictícia de um livro proibido que leva à loucura, tragédia, ou mesmo à morte de quem com ele entrar em contacto. Deste conjunto de contos, Lovecraft destaca «The Yellow Sign», que, para além do livro, envolve também um talismã com um estranho hieróglifo, ambos capazes de libertar, nas mentes de cada um, conhecimentos ancestrais que não devem ser lembrados.

Não teremos de ter muita imaginação para encontrarmos semelhanças com as histórias lovecraftianas ligadas entre si pelo Necronomicon ou com outros «textos proibidos» saídos da imaginação do escritor de Nova Inglaterra e dos seus amigos escritores, tais como Robert Bloch, Robert E. Howard ou Clark Ashton Smith, contribuindo estes com muitos outros contos lovecraftianos para o «Mythos».

 

Capítulo 2
Terror Cósmico: A Indiferença do Universo Numa Realidade para Além da Aparência

Quando nos interrogamos acerca da pertinência e da actualidade de H. P. Lovecraft na cultura popular contemporânea, poderemos tentar responder a essa questão centrando‑nos nos temas que são transversais à sua obra e nas obras influenciadas pelo autor. Um bom ponto de partida poderá ser o tema que dá título a este capítulo, pois ele cumpre o requisito da transversalidade atrás referida, reflectindo, ao mesmo tempo, inquietações bem presentes nas sociedades ocidentais contemporâneas. A crise das religiões amplia o sentimento de ausência de um sentido para a existência. A falta desse sentido, habitualmente providenciado pela religião, é algo absolutamente familiar nas mentes de milhões de seres humanos. Em Gothic, Fred Botting dá conta dessa mesma tendência, particularmente notória desde o século XVIII:

«In a world which, since the eighteenth century, has become increasingly secular, the absence of a fixed religious framework as well as changing social and political conditions has meant that Gothic writing, and its reception, has undergone significant transformations.» (Botting 1997: 2)

A ficção lovecraftiana consegue, desta forma, estar perfeitamente de acordo com este estado de espírito contemporâneo. Por conseguinte, não será de admirar que possa parecer mais verosímil aos actuais leitores a ideia de uma ameaça exterior, contra a qual não existe protecção possível. Contrariamente a Poe, mais centrado nos impulsos interiores perversos, Lovecraft transporta a ameaça para fora do indivíduo. Na sua perspectiva, todo o Universo é, no melhor dos casos, indiferente à nossa existência. A constatação de que a espécie humana não constitui a peça central do Universo pode ser mais perturbadora do que as esferas interiores conturbadas da psique humana, ou as dicotomias bem/mal do Gótico mais tradicional. Na sua ficção, a marca de uma interioridade psíquica diz maioritariamente respeito à reacção das personagens face à ameaça do Exterior, do «Outside». A pensar neste transporte da fonte do terror para o exterior, Fritz Leiber chamou a Lovecraft «a literary Copernicus» no seu ensaio sobre o mesmo, incluído em H. P. Lovecraft: Four Decades of Criticism:

«Howard Phillips Lovecraft was the Copernicus of the horror story. He shifted the focus of supernatural dread from man and his little world and gods, to the stars and the black and unplumbed gulfs of intergalactic space… When he completed the body of his writings, he had firmly attached the emotion of spectral dread to such concepts as outer space, the rim of the cosmos, alien beings, unsuspected dimensions, and the conceivable universes lying outside our own spacetime continuum.» (Leiber, cit Joshi 1980: 50‑51)

Não pensemos, contudo, que Lovecraft rompe com todas as convenções habitualmente associadas a este género. Com efeito, o próprio tema da realidade aparente é recorrente na Literatura Gótica. Leslie Fiedler em Love and Death in the American Novel, ao estabelecer semelhanças entre Melville e Hawthorne, nota o seguinte:

«Among the assumptions of Melville and Hawthorne are the following: that the world of appearance is at once real and a mask through which we can dimly perceive more ultimate forces at work; that Nature is inscrutable, perhaps basically hostile to Man but certainly in some sense alien…» (Fiedler 1966: 432)

O próprio Robert Bloch, de alguma forma discípulo de Lovecraft, afirmou, bem a propósito: «Horror is the removal of masks.» (Bloch, cit Lucas 1981:46) Como podemos ver, aquilo que Lovecraft faz é dar continuidade a esta temática, tornando os elementos naturais ainda mais exteriores ao Homem, levando‑nos para territórios e origens do terror bem mais longínquos. A Natureza, trabalhada por muitos outros autores, afigura‑se neste aspecto, mais limitada, mais próxima de nós. Trabalhada por Lovecraft, esta inclui os recantos mais remotos do Universo. Se, para muitos outros, a Natureza pode ser alienígena, para o autor americano ela será totalmente alienígena.

Esse carácter exterior do terror está profundamente ligado à sua percepção daquilo que o conto gótico tem de provocar: o medo. Contudo, esse sentimento primordial, como Lovecraft o define em Supernatural Horror in Literature, apresenta algumas diferenças em relação a outros autores, tratando‑se de um terror cósmico. O conto de terror deve, nesta perspectiva, ser capaz de inspirar um sentimento quase religioso em quem o lê, devolvendo‑lhe uma intuição básica e humana acerca do Mundo.

Contrapondo‑se a esse carácter básico e primordial, capaz de ser promovido pela Literatura Gótica, encontra‑se a «material sophistication», que traduz uma primazia do racionalismo e do positivismo, que pretenderam e ainda pretendem dar resposta aos mais variados anseios do ser humano, promovendo uma existência essencialmente materialista e utilitarista, em que a própria literatura se vê subordinada aos impulsos de conformidade com as convenções sociais. É contra esta mentalidade associada a um domínio dos valores burgueses na sociedade que Lovecraft se insurge:

«The oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest kind of fear is fear of the unknown. These facts few psychologists will dispute, and their admitted truth must establish for all time the genuiness and dignity of the weirdly horrible tale as a literary form. Against it are discharged all the shafts of a materialistic sophistication which clings to frequently felt emotions and external events, and of a naively insipid idealism which deprecates the aesthetic motive and calls for a didactic literature to uplift the reader towards a suitable degree of smirking optimism.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 21)

Na crítica ao didactismo literário e ao excessivo realismo, Lovecraft evidencia semelhanças com autores modernistas, ao recusar‑se a dourar uma realidade que se lhe afigurava angustiante, debaixo de uma perspectiva unicamente objectiva. Esse carácter de modernidade demonstrado por Lovecraft, já tinha sido notado por Leslie Fiedler, na sua obra Love and Death in The American Novel (1960), considerando o romance gótico um sub‑género verdadeiramente «avantgarde»:

«Despite its early adoption by Mrs. Radcliffe, the gothic is an avantgarde genre, perhaps the first avantgarde art in the modern sense of the term. A pursuit, half serious enterprise, halffashionable vice, of the intellectuals of the end of the eighteenth century, it remained highbrow enough to tempt the Shelleys and Byron, for instance, to try their hands at it. The popular success of Frankenstein, perpetuated still in movies and known in its essence to children in the street, has obscured the fact that it was launched as an advanced book; and that it belongs to a kind, one of whose functions was to shock the bourgeoisie into an awareness of what a chamber of horrors its own smuggly regarded world really was. But the gothic represents also an attempt to redeem “the improbable and marvelous”, the stuff of the fancy which Richardson had presumably banned from the new novel. It was, in short, an antirealistic protest, a rebellion of the imagination against confining fiction to an analysis of contemporary manners and modes.» (Fiedler 1966: 135)

Apesar da sua atracção pela Ciência, pelo racional e do seu carácter eminentemente cerebral, Lovecraft recusa uma existência somente assente numa perspectiva racionalista e utilitarista, sem consideração pelos anseios estéticos dos indivíduos mais sensíveis, uma atitude que também partilha com o seu ilustre precursor E. A. Poe. Aliás, no exercício da sua ficção, Lovecraft encontra uma libertação para essa mesma realidade que o oprime, tal como por várias vezes o exprimiu: «The “punch” of a truly weird tale is simply some violation or transcending of fixed cosmic law – an imaginative escape from palling reality.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000b: 350) Não será também por acaso que em alguns dos seus contos os artistas são vistos como aqueles a quem a realidade se revela em toda a sua plenitude e, simultaneamente, terríveis consequências. É o caso do pintor Pickman em Pickman’s Model, ou dos artistas que sofrem de sonhos e que são particularmente sensíveis ao chamamento de Cthulhu em «The Call of Cthulhu», por oposição aos indivíduos menos inclinados às artes e que parecem ser imunes à influência psíquica do Old One.

A importância do conceito de «terror cósmico» parece‑nos determinante para a demonstração da importância do tema deste capítulo na ficção lovecraftiana, bem como para o cumprimento de uma das premissas desta dissertação: tentar entender a razão pela qual Lovecraft continua a deter uma forte influência na cultura popular contemporânea. Noël Carroll, em Philosophy of Terror or The Paradoxes of the Heart, a propósito do paradoxo do terror, desvaloriza um pouco a posição de Lovecraft no pressuposto de que uma obra de terror deve provocar «terror cósmico», argumentando que muitos escritos góticos cumprem o seu objectivo sem necessariamente obedecerem a esse requisito e que nessa obrigatoriedade o autor parece estar apenas a reflectir os seus próprios gostos e preferências. No entanto, naquilo que concerne ao autor em análise, parece‑nos que o segredo da sua actualidade e influência reside grandemente no cumprimento da condição que advogava: o «terror cósmico», o qual perpassa ao longo da sua obra mais significativa. Para o crítico S. T. Joshi, o «cosmicismo» característico de Lovecraft é a sua grande mais‑valia. A falta de realismo nas relações humanas, a frieza e a impessoalidade são consideradas como uma virtude, sendo evidente a impossibilidade de um autor poder ser «cósmico» e humano ao mesmo tempo. Joshi não evita o uso de ironia para reforçar a sua convicção:

«If one wants affecting pictures of married bliss or children at play or people working at the office, one does not turn to the fiction of Lovecraft or Poe or Bierce or any other horror writer except perhaps the soapopera supernaturalism of King or Charles L. Grant. And yet, the poignancy with which Lovecraft’s characters react to the perception of cosmic insignificance gives to his work a genuine emotional resonance.» (Joshi 1996: 652)

A falta de empatia de Lovecraft pela Humanidade remove o ser humano do centro dos contos, para concentrar a nossa atenção no fenómeno extraordinário, o verdadeiro «protagonista» das histórias. Joshi afirma:

«Lovecraft boldly challenged that most entrenched dogma of art – that human beings should necessarily and exclusively be the centre of attention and aesthetic creation – and His defiance of the “humanocentric pose” is ineffably refreshing.» (Joshi 1996: 652)

Neste raciocínio, não esqueçamos outro factor importante no moldar da sua ficção: o seu completo ateísmo. Poderá ser pura especulação, mas será talvez pertinente imaginarmos que Lovecraft se terá interrogado, enquanto ateu, acerca da melhor maneira de provocar terror num público igualmente desprovido de crenças religiosas. Seguindo este raciocínio poderemos chegar à conclusão que algumas das formas mais tradicionais encontradas no género, pura e simplesmente não funcionariam, tais como dicotomias de ordem religiosa ou seres associados a um contexto cristão.

Na ausência de crença num Deus cristão, ou de qualquer outra religião, ainda que todos sejamos possuidores do impulso para tal, como o próprio autor reconhecia, o que pode ser perturbador e indutor de terror é o sentimento de solidão fruto da indiferença do Universo perante a nossa existência, conceitos interligados, uma vez que um resulta do outro. Se a essa indiferença somarmos a “existência” de seres poderosíssimos que nos transcendem largamente em longevidade, poder e propósitos totalmente alheios aos nossos, aumentaremos, proporcionalmente, o potencial criador de terror, atingindo o «terror cósmico» pretendido pelo autor de Nova Inglaterra. Joyce Carol Oates, na introdução de Tales of H.P. Lovecraft, fala acerca do «Cthulhu Mythos» como uma «anti‑mitologia», uma reacção contra as crenças religiosas:

«For Lovecraft, who was proud of his lifelong atheism, the Cthulhu Mythos was an “antimythology”; an ironic inversion of traditional religious faith. It constitutes an elaborate, detailed workingout of an early recurring fantasy of Lovecraft’s that an entire alien civilization lurks on the underside of the known world; as a “nightgaunt” may lurk beneath a child’s bed in the darkness, or as mankind’s tragically divided nature may lurk beneath civilization’s veneer. [Lovecraft was writing during and after World War I.] In the Cthulhu Mythos, there are no “gods” but only displaced extraterrestrial beings, the Great Old Ones, who journeyed to Earth many millions of years ago, bringing with them, disastrously, their slaves, called “shoggoths”, protoplasmic creatures that gradually overpower and defeat their masters. Deluded human beings mistake the Great Old Ones and their descendants for gods, worshiping them out of ignorance.» (Lovecraft, ed. Oates 2000c: xii ‑ xiii)

O sucesso e a popularidade do «Cthulhu Mythos» no nosso tempo parecem advir, parcialmente, de um cada vez maior ateísmo da sociedade ocidental e, ao mesmo tempo, do fascínio que o poder das entidades do «Mythos» parece exercer em muitos de nós, numa espécie de identificação que o leitor faz com a criatura agressora, e não apenas com a vítima, constituindo um dos paradoxos mais relevantes que o género gótico suscita. Mais uma vez, Noël Carroll refere esta atracção, embora considere que ela não é aplicável a todo o género, pois o leitor dificilmente conseguirá identificar‑se com determinadas criaturas, por muito poder que estas detenham:

«Another way of explaining the attraction of horror – one that may be connected with elements of the religious account – is to say that horrific beings – like deities and daemons – attract us because of their power. They induce awe. In one mode of speaking, it might be said that we identify with monsters because of the power they possess – perhaps monsters are wishfulfillment figures.» (Carroll 1990: 167‑168)

Apesar da posição defendida por Carroll, o impacto que o panteão pseudo‑mitológico detém na cultura popular contemporânea é indesmentível, independentemente das principais razões que levaram à sua popularidade. A forma inicialmente pouco interligada não deixaria antever o desenvolvimento e a popularidade que alcançaria, muito em parte graças ao contributo do círculo de amigos e seguidores de Lovecraft.

A pertinência que os «Old Ones» detêm, neste capítulo em concreto, reside no facto de que, habitualmente, é a intrusão destes seres na realidade quotidiana que irá rasgar o «véu» da normalidade e provocar angústias nas personagens, as quais nunca conseguirão regressar às suas vidas anteriores. O contacto com o «exterior» deixa marcas irreversíveis, uma das quais a loucura, que normalmente se sobrepõe à morte das personagens.

 Na ficção lovecraftiana, o contacto com o elemento destabilizador pode, de forma típica, resultar do simples acaso (The Shadow Over Innsmouth ou The Colour Out of Space), ou da busca de conhecimento, que pode ser uma busca deliberada de conhecimento «proibido» (The Dunwich Horror, Pickman’s Model), ou a busca de conhecimento científico (At the Mountains of Madness). É precisamente At the Mountains of Madness, obra atipicamente extensa no universo da ficção lovecraftiana, que nos poderá servir de ponto de partida para aprofundarmos os aspectos a que nos propomos neste capítulo em particular. Tal não significa que a mesma não possa voltar a ser utilizada para nos remeter para outras temáticas igualmente importantes, pertencentes a outros capítulos.

 

2.1 – At the Mountains of Madness: Ficção Lovecraftiana por Excelência

Tratando‑se do relato de uma expedição à Antártida, é difícil evitarmos a associação imediata com The Narrative of Arthur Gordon Pym, de E. A. Poe, que Lovecraft conhecia perfeitamente. De facto, no início do século xx, o continente gelado continuava a merecer a curiosidade de grande parte do público e da comunidade científica, fomentando bastantes teorias, algumas delas tão bizarras, embora amplamente aceites, como a teoria da «hollow Earth», que alimentou a imaginação de bastantes autores.

Fazendo uso da narração na primeira pessoa, como é típico na obra do autor, o narrador, participante de uma primeira expedição ao extremo Sul, relata os factos em retrospectiva, alertando os «incautos» leitores de que é seu dever impedir a próxima expedição que está a ser preparada. Esta é, por isso, uma tentativa de impedir que as novas descobertas venham estilhaçar para sempre a anterior visão da realidade, tal como o Homem a entendia. É desta forma que Lovecraft antecipa, desde logo, o tema a ser tratado. O próprio narrador é, a exemplo de outras personagens deste e de outros contos, um pacato cientista da fictícia Miskatonic University. Este, não procurando deliberadamente o «conhecimento proibido», acaba por ser colocado numa situação que não controla, denotando uma temática comum no género gótico: a incapacidade do racionalismo em conseguir explicar a totalidade da realidade. Não se trata aqui de um «overreacher plot», como Noëll Carroll designa em The Philosophy of Horror, pois a expedição não tem a intenção, pelo menos inicialmente, de obter conhecimentos que vão para além da esfera que a Ciência habitualmente trabalha. Não se trata do tópico do cientista de ego desmedido que encontramos em Herbert West – Reanimator, mas sim mais próxima do tema da intrusão do Exterior, do Caos, que irrompe de forma aleatória nas vidas dos protagonistas.

Na retrospectiva feita pelo narrador, ficamos a saber que incríveis descobertas foram feitas no continente gelado. Uma das descobertas mais perturbadoras é a de uma cadeia montanhosa capaz de fazer a cordilheira dos Himalaias parecer insignificante.

Junto ao sopé das montanhas são descobertos numerosos fósseis que testemunham uma história evolutiva bizarra e completamente em desacordo com tudo aquilo que a Ciência conhecia. No topo das mesmas são encontradas ruínas de cidades com formas bizarras e dimensões titânicas, igualmente distintas de tudo aquilo que era, até então, conhecido.

Numa fase posterior do conto, o narrador e uma outra personagem, levada à loucura pelas circunstâncias, dedicam‑se a explorar as ruínas da cidade alienígena, descobrindo provas, na forma de gravuras e relevos, de que a Terra tinha sido, ao longo de milhões de anos, colonizada por várias raças de seres extraterrestres. A longevidade e poderio destas iam para além da compreensão humana actual.

Baseados nas gravuras, descobrem ainda que o aparecimento da raça humana não terá sido mais do que um acontecimento engendrado pelos seres superiores, os quais viram na criação do antepassado do Homem, uma espécie de símio, nada mais do que uma fonte de diversão e de alimento:

«It interested us to see in some of the very last and most decadent sculptures a shambling primitive mammal, used sometimes for food and sometimes as an amusing buffoon by the land dwellers, whose vaguely simian and human foreshadowings were unmistakable.» (Lovecraft, ed. Joshi 1997: 276)

Esta pequena passagem é ilustrativa da pouca empatia que o autor demonstrava em relação à nossa espécie na sua ficção. É aqui evidente o conceito estético que perpassa ao longo da sua obra. Um profundo niilismo e caracteristicamente moderno distanciamento em relação à sua condição de ser humano são professados na ficção e na sua correspondência pessoal, dando conta das suas profundas convicções e de um notável estoicismo. Numa carta a Edwin Baird, datada de 1923, afirma:

«Only a cynic can create horror – for being every masterpiece of the sort must reside a driving daemonic force that despises the human race and its illusions, and longs to pull them to pieces and mock them.» (idem: 336‑337)

Para conseguir alcançar o objectivo último, provocar o terror num sentido cósmico, como defendido pelo próprio autor, At the Mountains of Madness irá revestir‑se de um notável realismo, a fim de conseguir uma maior verosimilhança para os elementos estranhos à realidade quotidiana. Esse manto de realismo é conferido pelas extensas e pormenorizadas descrições técnicas das mais variadas áreas, como a Arqueologia, Física, Paleontologia, Meteorologia, Química, entre outras, e que conseguem criar uma atmosfera perfeitamente credível, capaz de colocar o leitor no centro da acção. De facto, na elaboração desta novela, Lovecraft ter‑se‑á inspirado em várias expedições levadas a cabo na época, retirando preciosas lições em termos do equipamento e de toda a logística necessária para erguer algo dessa magnitude. Revela ainda um conhecimento bastante profundo ao nível da Paleontologia, sobretudo se pensarmos que o escritor americano era um autodidacta:

«They had struck a cave. Early in the boring the sandstone had given place to a vein of Comanchian limestone, full of minute fossil cephalopods, corals, echini, and spirifera, and with occasional suggestions of siliceous sponges and marine vertebrate bones – the latter probably of teleosts, sharks, and ganoids. This, in itself, was important enough, as affording the first vertebrate fossils the expedition had yet secured; but when shortly afterward the drill head dropped through the stratum into apparent vacancy, a wholly new and doubly intense wave of excitement spread among the excavators. A goodsized blast had laid open the subterrene secret; and now, through a jagged aperture perhaps five feet across and three feet thick, there yawned before the avid searchers a section of shallow limestone hollowing worn more than fifty million years ago by the trickling ground waters of a bygone tropical world.» (Lovecraft 1989: 28)

Trata‑se de uma descrição minuciosa e com o condão de criar uma exaltação das emoções, não fazendo uso dos clichés da Literatura Gótica, mas sim através de um conteúdo denso, detalhado e enciclopédico capaz de produzir um efeito quase encantatório. Acaba por ser uma entrada na realidade corrente dos domínios mais exclusivos da Ciência.

Na época em que estas obras são escritas (início do século xx), já a Ciência se profissionalizara há muito, afastando‑a da vivência quotidiana do cidadão comum. Esse mesmo cidadão comum dificilmente entenderá boa parte do vocabulário científico, fruto dessa profissionalização e especialização.

Nesta perspectiva, os termos científicos são pouco acessíveis ao comum dos mortais, provocando sensações de desconcerto no leitor. Ainda em sintonia com a teoria que professou em Supernatural Horror in Literature, o seu manifesto teórico, poderemos reparar como as camadas geológicas descritas, as dimensões temporais implicadas no desfiar de diversas eras, reforçam a ideia lovecraftiana da insignificância humana, bem contrária à comum percepção antropocentrista. Tudo é colocado em perspectiva, todos os feitos humanos são entendidos como irrisórios e até fúteis pois, face à indiferença do Cosmos e ao nosso inevitável desaparecimento, tudo terá sido em vão.

«Children will always be afraid of the dark, and men with minds sensitive to hereditary impulse will always tremble at the thought of the hidden and fathomless worlds of strange life which may pulsate in the gulfs beyond the stars, or press hideously upon our own globe in unholy dimensions which only the dead and the moonstruck can glimpse. […] The true weird tale has something more than secret murder, bloody bones, or a sheeted form clanking chains according to rule. A certain atmosphere of breathless and unexplained dread of outer, unknown forces must be present; and there must be a hint, expressed with a seriousness and portentousness becoming its subject, of that most terrible conception of the human brain – a malign and particular suspension or defeat of those fixed laws of nature which are our only safeguard against the assaults of chaos and the daemons of unplumbed space.» (Lovecraft 1989: 425‑426)

Atrever‑nos‑emos a dizer que, para Lovecraft, a paisagem e os estratos de solo descodificados pela Arqueologia são um livro de histórias, guardando a memória. Contudo, ainda que também criando novas memórias para o futuro, o Homem não irá estar cá para vê‑las. Esta é uma das pedras de toque do pensamento lovecraftiano. A Humanidade é arrancada do seu papel central no Universo, uma posição tida como um dado adquirido desde o Renascimento e reforçada pelo Iluminismo. O vácuo deixado por essa negação de antropocentrismo também não é preenchido por um teocentrismo ou uma teleologia. A realidade, segundo a visão de Lovecraft, é desprovida de sentido e, se o nosso próprio planeta é um grão de areia no vasto Universo, o que seremos nós? O próprio confronto de seres humanos com outras civilizações em contos como At the Mountains of Madness serve para demonstrar o carácter efémero da nossa existência, mostrando que as mesmas existiam muito antes de nós e continuarão a existir para além do desaparecimento da Humanidade.

Se Edgar Allan Poe, para não referirmos muitos outros autores, obriga o leitor a um esforço de introspecção e até a alguma inquietação perante o desconhecimento de nós mesmos a um nível muito pessoal, em obras como William Wilson e The Fall of the House of Usher, H. P. Lovecraft desafia‑nos e inquieta‑nos numa dimensão colectiva, afastando toda a Humanidade do centro e perspectivando‑nos como insignificantes face à indiferença e dimensão do cosmos. Para tal, o autor coloca‑nos perante factos, sejam eles científicos ou pseudo‑científicos (o nosso cérebro precisará, simplesmente, de acreditar que são factos) e perante uma «realidade» nua e crua.

A apresentação do nosso planeta como um minúsculo grão de poeira face à vastidão do Cosmos só é possível graças às descobertas científicas feitas até e durante a vida do autor de Providence, particularmente as descobertas feitas pela Astronomia. Ao combinar factos científicos com elementos absolutamente ficcionais, consegue, ainda assim, uma imagem bastante realista da nossa existência.

Na realidade, tal como na ficção, a ciência representa o papel de abertura de novas perspectivas, algumas delas profundamente perturbadoras.

At the Mountains of Madness

 

2.2 – At the Mountains of Madness e o «Cthulhu Mythos»

Tome‑se como referência o seguinte pensamento de Edith Birkhead, em The Tale of Terror (1921):

«The history of the tale of terror is as old as the history of man. Myths were created in the early days of the race to account for sunrise and sunset, stormwinds and thunder, the origin of the earth and of mankind. The tales men told in the face of these mysteries were naturally inspired by awe and fear. The universal myth of a great flood is perhaps the earliest tale of terror.» (Birkhead 1921: 1)

O mito, tão antigo como o Homem, servirá para conferir algum sentido a uma existência dificilmente conhecida na totalidade pela nossa consciência.

A matéria‑prima de grande parte dos mitos antigos parece ter sido o terror e o medo. Lovecraft irá servir‑se deste pressuposto para enriquecer as suas obras e criar verdadeiro terror cósmico. É assim criado o seu legado mais duradouro e conhecido do público contemporâneo: o «Cthulhu Mythos», título, como já foi dito, não criado por si, mas apropriadamente introduzido por August Derleth. At the Mountains of Madness é central nesta criação, pois, embora não seja esta novela a introduzir o panteão de criaturas sobrenaturais, serve de ponte com outros contos que fazem referência às mesmas e desenvolve todo o conceito inerente ao «Mythos». É nesta novela que a junção entre um mito artificial, possuidor de características similares às de uma religião, e a Ciência ocorre em pleno, formando um todo com bastante impacto.

Como já foi referido atrás, Lovecraft compreendia que seria extremamente difícil, senão mesmo impossível, afastar a tendência natural do Homem para a religião. Face a isto, uma das soluções para representar as incomensuráveis forças em conflito no Universo poderia passar pela sua personificação em entidades sobrenaturais. A propósito da questão do sobrenatural em Lovecraft, a mesma será tratada num capítulo dedicado ao mesmo.

Ciente da necessidade de criar uma mitologia artificial para conseguir os objectivos que entendia para a literatura do terror, o autor afirma o seguinte numa carta a Harold S. Farnese, datada de 1932:

«In my own efforts to crystallise this spaceward outreaching, I try to as many as possible of the elements which have, under earlier mental and emotional conditions, given man a symbolic feeling of the unreal, the ethereal, and the mystical – choosing those least attacked by the realistic, mental and emotional conditions of the present. Darkness – sunset – dreams – mists – fever – madness – the tomb – the hills – the sea – the sky – the wind – all these, and many other things have seemed to me to retain a certain imaginative potency despite our actual scientific analyses of them.» (Lovecraft, ed. Joshi 1997: 342)

O autor reconhece, pois, a permanência de determinados elementos presentes no Gótico desde os seus primórdios, capazes de evocar determinadas emoções na mente humana, mas defende a necessidade de os adequar aos tempos modernos.

Neste aspecto, reside um dos segredos para a longevidade e modernidade de que Lovecraft usufrui no presente, contribuindo para a sua popularidade actual. Prova evidente do reconhecimento da necessidade dessa adaptação ao presente, reside noutro excerto da mesma carta: «… an artificial mythology can become subtler and more plausible than a natural one, because it can recognise and adapt itself to the information and moods of the present» (idem: 342). Em At the Mountains of Madness, são descobertas criaturas cilíndricas diferentes de tudo aquilo que a moderna Ciência conhece, num estado que aparentava ser o da morte, mas que, na realidade, era apenas uma espécie de hibernação (embora uma que tinha durado milhões de anos).

Algumas dessas criaturas iriam ser autopsiadas e dissecadas pela equipa de cientistas da Miskatonic University, procedimento que é longa e minuciosamente descrito pelo autor. A implausibilidade da existência de tais criaturas é contrabalançada pela minúcia das descrições e ainda pelo vocabulário eminentemente técnico profusamente utilizado.

Numa verdadeira inversão de papéis, algumas das criaturas que hibernavam irão despertar e sujeitar os cientistas humanos ao mesmo tratamento, comportando‑se, elas próprias, como verdadeiros cientistas humanos, uma vez mais atestando uma concepção amoral do Universo, como é frequente em Lovecraft:

«Poor devils! After all, they were not evil things of their kind. They were the men of another age and another order of being. Nature had played a hellish jest on them – as it will on any others that human madness, callousness, or cruelty may hereafter drag up in that hideously dead or sleeping polar waste – and this was their tragic homecoming. They had not been even savages – for what indeed had they done? That awful awakening in the cold of an unknown epoch – perhaps an attack by the furry frantically barking quadrupeds, and a dazed defence against them and the equally frantic white simian with the queer wrappings and paraphernalia… poor Lake, poor Gedney… and poor Old Ones! Scientists to the last – what had they done that we would not have done in their place? God, what intelligence and persistence!» (idem: 316)

Após esta passagem, até poderemos detectar uma certa predilecção por parte do narrador em relação às criaturas extraterrestres, ao realçar a sua condição biológica e racionalmente superior, por comparação aos humanos e cães que os retiraram do seu repouso. Assistimos aqui a uma inversão de papéis, traduzindo a perspectiva do próprio autor em relação à Humanidade, não lhe dando primazia, negando‑lhe um papel central e considerando‑a transitória, como muitas outras espécies o são, ou como aquelas já desaparecidas o foram. A amoralidade e indiferença das próprias criaturas que teriam a função de causar terror é mais um factor de aproximação à realidade contemporânea das sociedades ocidentais, na perspectiva de uma relativização do mal, podendo igualmente ajudar a explicar uma atracção moderna pelas obras de Lovecraft.

 

2.3 – O «Chtulhu Mythos»: Uma Mitologia Moderna

Lovecraft compreendia perfeitamente os desafios impostos aos autores góticos pela sociedade contemporânea, no sentido de tornar credíveis as suas obras. Compreendeu, desde logo, que a modernidade já não se compadecia com as habituais fórmulas empregues. Os autores teriam de reinventar as fontes do terror para que elas funcionassem num mundo cada vez mais movido pela racionalidade e pelo peso da realidade. Contudo, o autor americano também sabia que seria impossível para a generalidade dos seres humanos eliminar totalmente o peso da religião e a dimensão sobrenatural das suas mentes.

Corroborando esta visão, poderemos mencionar Robert F. Geary que, no seu ensaio intitulado «On Horror and Religion», compilado por Clive Bloom em Gothic Horror, afirma o seguinte:

«Yet none of this – not the decline of the churches, not the theological levelling, not the withdrawal of certain spheres of activity from under the umbrella of religious ethics – none of this adds up to the picture of a general march into the Age of the Profane, an age from which the sacred and the supernatural have been forever banished.» (Geary, ed. Bloom 1998: 296).

Robert Geary, citando no seu ensaio um outro autor, Thomas Luckmann em The Invisible Religion, refere que o panorama actual é extremamente complexo, uma vez que o «preto ou branco», de uma polarização no campo do sagrado ou do profano não parece estar a ocorrer. Apesar do seu peso actual, o racionalismo não substituiu totalmente o sagrado, embora este, em muitos casos, e no que se refere às religiões instituídas, não parece já ditar valores para a totalidade das situações vividas pelos cidadãos no mundo ocidental. O que parece estar a acontecer é a existência de cada vez mais áreas «cinzentas», nas quais ocorre uma junção de elementos profanos com elementos religiosos e pseudo‑religiosos. Veja‑se a profusão de seitas religiosas e movimentos gnósticos, em conjunto com a secularização da sociedade actual, para percebermos que, para muitas pessoas, a construção da realidade passa por essa amálgama. Só assim se explica que, na nossa sociedade contemporânea, ainda seja possível ocorrerem situações como a que é descrita por Geary, na seguinte passagem:

«The March issue of Science Digest, amid articles purporting to reveal hitherto undiscovered powers of brain and body, contained a fullpage colour advertisement for a deluxe leatherbound and silveredged copy of The Necronomicon, supposedly an ancient handbook of sorceror’s magic. This “talisman against the Forces of Darkness”, readers were assured, “reveals charms against demons who assail in the night, how to call spirits from the land of the lost dead, and even to win the love of another. For fifty dollars the readers of Science Digest could acquire this small monument to the secularization of religion and the rise not of Profane Man but of the doityourself sacred cosmos”.» (Geary, ed. Bloom 1998: 297)

É, pois, graças a este terreno fértil que poderemos encontrar uma explicação parcial para o perdurar da obra de H. P. Lovecraft, assente em larga medida na popularidade do seu panteão mitológico artificial. Numa sociedade ocidental em que a maior parte da população continua a oscilar entre uma explicação divina ou científica para a sua existência, o «Cthulhu Mythos» poderá representar essa dicotomia.

Lovecraft, o seu criador, era por temperamento e convicção um materialista‑mecanicista, achando ridícula qualquer noção que atribuísse um sentido definitivo para o Universo. Contudo, literariamente, tal concepção levaria a uma certa aridez nos conceitos e na forma de os apresentar. Sendo um artista, Lovecraft teve decerto a percepção de ter de apelar ao sentido estético dos seus leitores, bem como à natural tendência para o sobrenatural, já anteriormente referida em Supernatural Horror in Literature:

«… all the conditions of savage dawnlife so strongly conduced toward a feeling of the supernatural, that we need not wonder at the thoroughness with which man’s very hereditary essence has become saturated with religion and superstition.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000a: 21‑22)

O «Cthulhu Mythos» torna‑se, então, uma forma de veicular a sua concepção pessimista da realidade, ou, como o próprio diria, uma realidade indiferentista, revestida de uma forma deística, pese embora o facto de as entidades por ele criadas não serem verdadeiramente sobrenaturais no sentido mais comum da palavra. Um caso paradigmático desta união paradoxal entre um panteão de «deuses» e visões do mundo afastadas de qualquer concepção de teor religioso, reside na figura do «deus» Azathoth. Azathoth é mencionado em várias obras do autor em análise, nomeadamente em The DreamQuest of Unknown Kadath.

Segundo Lovecraft, Azathoth é o «deus» supremo que se encontra no centro do Universo e que, sendo «cego» e «idiota», não possui qualquer vontade deliberada em dar um sentido ao «Todo».

A partir da flauta que toca, são formadas novas estrelas, galáxias e até novos universos, embora sem qualquer sentido deliberado. Sob a figura de um «deus», encontramos a encarnação do mais absoluto Caos, verdadeira força criativa e destrutiva à qual tudo está subordinado, embora sem qualquer sentido:

«That last amorphous blight of nethermost confusion that blasphemes and bubbles at the centre of all infinity – the boundless daemonsultan Azathoth, whose name no lips dare speak aloud.[…] The nameless larvae of the Other Gods that are like them blind and without mind, and possessed of singular hungers and thirsts […] unlighted chambers beyond time wherein Azathoth gnaws shapeless and ravenous amidst the muffled, maddening beat of vile drums and the thin, monotonous whine of accursed flutes.» (Lovecraft 1989: 483)

Azathoth, uma entidade poderosíssima, embora desprovida de inteligência e de propósitos, serve para proclamar a crença do autor num Universo também ele poderosíssimo, mas igualmente vazio de propósitos e de objectivos, em que um sentido teológico está absolutamente ausente. A interessante contradição neste processo é a de que Lovecraft utiliza uma espécie de divindade para corporizar esse conceito, apelando, uma vez mais, à tendência humana para a religião e para a mitologia como formas de explicar e organizar a realidade. Lembremo‑nos das inúmeras divindades, mais ou menos antropomórficas, que serviam para personificar os mais variados fenómenos naturais ao longo de toda a história da Humanidade. O próprio antropomorfismo de muitas dessas divindades é uma forma de dar algum lugar de relevo ao Homem no seio dos Cosmos, relevo esse que parece ser totalmente negado por Lovecraft na sua ficção.

Poderemos, pois, inferir que boa parte do sucesso e popularidade de que o «Mythos» goza se deve à, aparentemente, intemporal propensão do ser humano para a mitologia. Essa natural propensão sai reforçada em épocas em que a desilusão em relação à Ciência e ao pensamento exclusivamente racional ocorre. A propósito da naturalidade e intemporalidade do pensamento mitológico e do preconceito em relação a este nas sociedades ainda fascinadas pelo pensamento racional e avanços tecnológicos, C. G. Jung refere no seu Psychology of the Unconscious: A Study of the Transformations and Symbolisms of the Libido:

«Has humanity at all ever broken loose from the myths? Every man has eyes and all his senses to perceive that the world is dead, cold and unending, and he has never yet seen a God, nor brought to light the existence of such from empirical necessity. […] Thus one can indeed withhold from a child the substance of earlier myths but not take from him the need for mythology. One can say, that should it happen that all traditions in the world were cut off with a single blow, then with the succeeding generation, the whole mythology and history of religion would start over again. Only a few individuals succeed in throwing off mythology in a time of a certain intellectual supremacy – the mass never frees itself. Explanations are of no avail; they merely destroy a transitory form of manifestation, but not the creating impulse.» (Jung 1916: 30)

Não deixa de parecer paradoxal que Lovecraft, alguém que defendia com a mais profunda convicção a inexistência da espiritualidade e refutava a religião, algo sobejamente declarado na sua numerosíssima correspondência pessoal e ficção, viesse veicular as suas ideias materialistas‑mecanicistas através de uma mitologia, ainda que artificial.

Na sua breve autobiografia, intitulada Some Notes on a Nonentity, Lovecraft dá conta dessa posição desde a sua juventude: «Science had removed my belief in the supernatural, and truth for the moment captivated me more than dreams. I am still a mechanistic materialist in philosophy.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000b: 347) S.T. Joshi, em Primal Sources – Essays on Lovecraft, aponta igualmente para essa visão materialista que o autor possuía da realidade:

«Lovecraft’s materialistic stance could not allow him to conceive of realms that overtly contradicted reality as known to science: instead, he chose to work in what E. F. Benson called “the strange uncharted places that lie on the confines and borders of science”, borders that the tyrannous and inexorable intellect does not yet have the power to refute.» (Joshi 2003: 65)

A realidade é, desta forma, algo que pode estar para além da percepção dos nossos sentidos, não significando isso que esta não exista e que não venha a ser descoberta num estádio mais avançado da Ciência. Numa lógica interior à sua própria obra, o panteão de criaturas extraterrestres poderá ser verosímil, até para um total céptico em relação ao sobrenatural, se a explicação dada para a sua existência e para os actos incríveis que poderão realizar residir numa incapacidade momentânea da Ciência, ou até das limitações do nosso intelecto para os compreendermos. No seu conto «From Beyond» poderemos ler:

«What do we know, he had said, of the world and the universe about us? Our means of receiving impressions are absurdly few, and our notions of surrounding objects infinitely narrow. We see things only as we are constructed to see them, and can gain no idea of their absolute nature. With five feeble senses we pretend to comprehend the boundlessly complex cosmos, yet other beings with a wider, stronger, or different range of senses might not only see very differently the things we see, but might see and study whole worlds of matter, energy, and life which lie at hand yet can never be detected with the senses we have.» (Lovecraft 1987: 90)

Numa outra perspectiva, esta utilização da mitologia também não é incongruente segundo Jung, pois admite que, num mundo voltado para o pensamento racional, o pensamento mitológico é, apesar de tudo, bem tolerado num contexto artístico:

«The point of our interest is displaced wholly into material reality; antiquity preferred a mode of thought which was more closely related to a phantastic type. Except for a sensitive perspicuity towards works of art, not attained since then, we seek in vain in antiquity for that precise and concrete manner of thinking characteristic of modern science» (Jung 1916:24)

Não esqueçamos que Lovecraft era, também ele, um artista e, como tal, terá compreendido muito bem que as regras do racionalismo não se aplicam rigidamente à literatura, sobretudo quando estamos a falar de um escritor ligado ao modo fantástico. Aliás, este meio de expressão poderá muito bem servir como uma forma de escapar às limitações impostas pela realidade quotidiana. A criação literária poderá também representar a reacção do mundo onírico a uma realidade física e vivência quotidiana que nos oprimem com as suas limitações. Para o autor, a escrita constitui o derradeiro escape:

«However – the crucial thing is my lack of interest in ordinary life […] the only conflict which has any deep emotional significance to me is that of the principle of freedom or irregularity or adventurous opportunity against the eternal and maddening rigidity of cosmic law…especially the laws of time.» (Lovecraft, ed. Joshi 2000b: 268)

O apelo da fantasia e da mitologia terá entrado na vida de Lovecraft muito cedo. É bem verdade que a fantasia é característica comum a todas as crianças, mas já não é tão comum encontrarmos crianças que incluem nas suas brincadeiras elementos próprios da mitologia grega e romana.

Recordemos que o escritor americano contactou bastante precocemente com os autores da Antiguidade Clássica na sua vasta biblioteca familiar, contacto esse que o marcaria indelevelmente: «When about seven or eight I was a genuine pagan, so intoxicated with the beauty of Greece that I acquired a halfsincere belief in the old gods and Naturespirits.» (Lovecraft, cit Joshi 1996: 25) A junção paradoxal de elementos tão díspares é também reconhecida pelo próprio autor na sua correspondência pessoal:

«I should describe mine own nature as tripartite, my interests consisting of three parallel and dissociated groups – a) Love of the strange and the fantastic. (b) Love of the abstract truth and of scientific logick. (c) Love of the ancient and the permanent. Sundry combinations of these three trains will probably account for all my odd tastes and eccentricities.» (Lovecraft, cit. Joshi 1996: 18).

Poderemos, então, concluir que o presente apelo exercido pelo panteão pseudo‑mitológico sobre muitos autores e sobre o público em geral, se deve à feliz combinação de todos os factores por nós aqui enunciados. Por um lado, a lógica científica ou pseudo‑científica indispensável para a verosimilhança, que a ficção lovecraftiana possuiu ao longo do século xx e ainda possui neste novo milénio, por outro, o apelo à irracionalidade, manifestado no recurso a «deuses» que transgridem o comum conceito de divindade, ao transformarem‑se em entidades poderosíssimas de uma sobrenaturalidade material tão perturbante como afinal todos os fenómenos de um real inquietante.


*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 6, publicada em maio de 2009.

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