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ANIQUILAÇÃO: Os Mistérios da Área X

por Safaa Dib

Antes de entrarmos na Área X

Poder-se-ia dizer que a carreira de Jeff VanderMeer (e tive a oportunidade de a acompanhar de perto, nos últimos dez anos) é uma que serve de exemplo a todos os aspirantes a escritores. O seu nome começou a surgir no início da primeira década de 2000, associado a small-press e editoras independentes. A sua primeira grande obra que começou a ganhar reconhecimento entre a comunidade de leitores de fantástico norte-americano terá sido City of Saints and Madmen (a primeira edição é de 2001 da Cosmos Books, tendo já surgido mais duas edições pela Prime Books e Tor Books), uma coletânea de histórias que decorrem na cidade ficcional de Ambergris. Com um estilo barroco e artístico, a imaginação vivaz de VanderMeer associa-o nessa obra a um novo género, o New Weird, que começara na década de 90, mas que atinge um pico nos primeiros anos do novo milénio com autores como China Miéville, K. J. Bishop, Steph Swainston e o próprio VanderMeer.

 


 

A FICÇÃO WEIRD

E em que consistia o New Weird? As definições mais consensuais indicam que se manifesta por um desvanecer de fronteiras entre os géneros da fantasia, ficção científica e horror, e procura subverter os elementos tradicionais da literatura fantástica, criando novos cenários urbanos e sofisticados, num estilo literário refinado que entra nos territórios do estranho e/ou bizarro. Se este novo movimento pareceu originar uma revolução e inspirar toda uma série de autores – especialmente britânicos −, é preciso notar que é uma revolução que já vem de outras experiências no género, já tentadas em décadas anteriores, por autores como J. G. Ballard, Thomas Disch ou Brian Aldiss. Algo que caracteriza a literatura fantástica é a sua incapacidade para a estagnação, tendo surgido sempre autores capazes de expandir as fronteiras, modificá-las ou mesmo arrasá-las completamente.

E o New Weird foi uma nova experiência contemporânea que tentou e conseguiu ir mais longe na dissecação da nossa realidade, através da linguagem da ficção especulativa.

Tendo assentado raízes na ficção Weird (uma possível tradução seria ficção bizarra), VanderMeer continuou diligentemente a produzir obras como Veniss Underground ou Shriek: An Afterword, recuperando nesta última os cenários de Ambergris. Por esta altura, já VanderMeer conseguira a atenção de editoras comerciais como a Tor Books e Macmillan, à medida que desenvolvia em paralelo uma intensa atividade como editor, junto com a sua mulher, Ann VanderMeer. A antologia The New Weird surgiu em 2007 e nos anos seguintes foram lançados Best American Fantasy, Steampunk, The Weird ou The Time Traveler’s Almanac, revelando toda uma série de novos talentos. No meio da sua atividade como escritor e editor, o autor ainda encontrou tempo para dar aulas de escrita criativa e participar em inúmeros workshops e oficinas. Parte da sua experiência como professor foi concretizada no guia de escrita criativa Wonderbook: The Illustrated Guide to Creating Imaginative Fiction.

Na língua portuguesa, Jeff VanderMeer surgiu pela primeira vez com A Transformação de Martin Lake & Outras Histórias, editada pela Livros de Areia, que ocasionou a primeira visita do autor a Lisboa, em 2006. Em 2011, a SDE publicou o Almanaque das Doenças Excêntricas e Desacreditadas, com base na edição original The Thackery T. Lambshead Pocket Guide to Eccentric & Discredited Diseases, editada por Jeff VanderMeer.

UMA NOVA PROPOSTA EDITORIAL

Um escritor a full-time desde 2007, quando termina o romance Aniquilação, recebe três propostas de editoras (nenhuma ligada à publicação do género fantástico) e decide aceitar a proposta da editora Farrar, Straus e Giroux, que inclui um plano invulgar de publicar no mesmo ano os três romances que constituem a trilogia, de modo a não fazer esperar os leitores. Jeff VanderMeer aceitou a proposta, mesmo sabendo que isso implicava escrever os restantes dois romances num prazo duro de dezoito meses. O processo de escrita foi documentado por ele num artigo publicado no The Atlantic, «From Annihilation to Acceptance: A Writer’s Surreal Journey», e descreve a forma fascinante como os sonhos e os acontecimentos que marcam o nosso quotidiano se infiltram no subconsciente do autor e encontram o caminho para o romance. A escrita coincidiu com alguns períodos de doença, tornando esta experiência ainda mais contaminada de surrealismo. A publicação de Aniquilação, em 2014, foi bem recebida pela crítica especializada e catapultou o autor para um novo patamar de sucesso. A obra venceu os prémios Nébula e Shirley Jackson para Melhor Romance, os direitos foram adquiridos em mais de 28 países e, a cereja em cima do bolo, a Paramount Pictures adquiriu os direitos para a adaptação cinematográfica, com o reputado realizador Alex Garland ao leme. Mas, afinal, de que trata esta trilogia a que o autor deu o nome de Southern Reach Trilogy (A Trilogia da Área X)?

PERIGO! ESTÁ PRESTES A ENTRAR NA ÁREA X

Há mais de 30 anos, a Área X está vedada ao resto da civilização por fronteiras invisíveis. A agência secreta Extensão Sul tem como missão investigar a área selvagem onde se registam estranhas e inexplicáveis ocorrências ambientais e ecológicas. De cada vez que a agência envia uma expedição à Área X, os seus membros são confrontados com desastre; desaparecem ou regressam a casa amnésicos e, mais tarde, vítimas de cancros agressivos. Quando o livro se inicia, acompanhamos a 12.ª expedição, composta por quatro mulheres que não têm nomes e são conhecidas apenas pelas funções que desempenham na sua missão: bióloga, antropóloga, psicóloga e topógrafa. Narrado do ponto de vista da bióloga, a Área X começa a ganhar contornos mais definidos numa atmosfera pautada por mistério e o sentimento de que algo ameaçador paira no ar, mas não tem nome ou forma.

É inevitável que o background científico de VanderMeer acabe por contaminar o enredo do livro. Rodeado por familiares cientistas toda a sua vida, e tendo vivido nas ilhas Fiji durante um período de tempo, as viagens com a família pelos vários continentes inspiraram-lhe um intenso interesse em biologia. O facto de residir no norte da Flórida, e ter investigado a fundo a sua ecologia peculiar, permitiu-lhe captar detalhes realistas da vida natural e absorver todos esses elementos na narrativa.

A ECOLOGIA NEGRA QUE SE ESTRANHA NA ÁREA X

De acordo com a bióloga, há vários ecossistemas a dominar a Área X, num mundo que nunca chegamos a descobrir se consiste ou não nos Estados Unidos da América. A zona costeira que a expedição tem como missão explorar movimenta-se em pântanos, praias tropicais ou florestas de pinheiros. O que devem temer os membros da expedição? Nem eles sabem. Mas, a pouco e pouco, a bióloga apercebe-se de que a Área X está a transformar-se em algo contranatura que desafia as leis da Natureza. Animais aterrorizadores escondem-se na vegetação e os seus barulhos são escutados. Nadam no mar golfinhos com olhos humanos. E, além disso, há as fronteiras invisíveis que se tornam difíceis de atravessar, forçando a agência Extensão Sul a declarar a zona como um local de desastre ambiental.

Até os mapas que a expedição leva parecem não se adequar à realidade que encontram no terreno. Quando se deparam com uma estranha formação geológica a que chamam de «túnel», deparam-se com os primeiros momentos aterradores e de suspense. Apenas a bióloga sente no seu âmago que é muito mais do que um simples túnel e insiste em chamar o estranho local de «torre». A descrição indica um buraco, ou uma espécie de poço, cavado no solo com uma escada em espiral que descende para as trevas. Curiosamente, o autor admitiu a um dos seus leitores no Goodreads que o poço da Quinta da Regaleira, em Sintra, foi a fonte de inspiração. Num ambiente tenso e sufocante, os membros da expedição exploram o buraco e encontram a escrita na parede, formada por fungos e criaturas microscópicas:

A escrita, de uma inspiração quase bíblica, mal faz sentido. E o mistério adensa-se. Quem plantou essas palavras e qual o seu significado? Em que consiste essa torre? E que predador letal por lá vagueia nas trevas, a lançar o terror e a morte?

PÁSSARO FANTASMA

A perspetiva da bióloga permite-nos vislumbres subtis de como os ecossistemas sempre em mutação da Área X começam a afetar os humanos. Nem ela tem a noção do quão insidiosa está a ser essa infiltração no seu organismo. A infeção por fungos pode tê-la tornado vulnerável ao fenómeno que contaminou a zona. A sua perspetiva na primeira pessoa – ela vai anotando no diário o progresso da expedição – permite-nos aceder às memórias de infância e adolescência de uma rapariga solitária, infinitamente fascinada pela exploração de ecossistemas marinhos. Aos poucos, descobrimos a razão que a levou a juntar-se à Área X. O seu marido pertencera à 11.ª expedição e regressara amnésico e uma sombra de si próprio. Gradualmente, o estilo de escrita progride num tom mais intimista e os flashbacks da sua vida com o marido lançam alguma luz sobre a razão por que se decidiu juntar à 12.ª expedição. Longe de termos acesso a uma vida calorosa de casal, descobrimos que a sua natureza solitária (pássaro fantasma era a alcunha que o marido criara para ela, apontando para a sua invisibilidade) ditou o fim do casamento.

Na verdade, ela nem está convencida de que amava o seu marido, e é nesse estado psicológico devastado de remorsos que a encontramos: vazia, isolada, incapaz de estabelecer uma ligação emocional, mas, ao mesmo tempo, a emergir numa comunhão profunda com a ecologia da Área X, muito mais do que a psicóloga, topógrafa ou antropóloga.

É só quando nos deparamos com o farol abandonado, outro elemento importante presente na zona, que a bióloga irá finalmente encontrar parte da verdade. O farol é apontado pela psicóloga como um ponto de extração da expedição, no caso de a missão falhar, e é ao longo do enredo visto como um refúgio de segurança, até ao momento em que a bióloga descobre como nele ocorreram estranhos atos de violência. O farol representa a Humanidade que existia antes de a Área X ter erguido fronteiras à sua volta, cortando-se da civilização, e a sua exploração pela bióloga constitui o clímax do livro.

A BELEZA NA DESOLAÇÃO

A tentação de rotular a obra Aniquilação como um aviso sobre a ameaça das catástrofes ambientais movidas por alterações climáticas é grande. Afinal, o próprio autor admitiu, em entrevistas, que o desastre ambiental do derrame de petróleo no Golfo do México foi um dos eventos a inspirar o seu subconsciente. A Natureza inspira respeito e aterroriza o nosso eu primitivo, que ainda se lembra do medo entranhado nos nossos antepassados quando começavam a dar os primeiros passos evolutivos. E é essa mesma Natureza que encontra sempre uma forma de se proteger e reagir à ação humana.

A linguagem do livro torna-se progressivamente mais sofisticada e adquire uma beleza invulgar. Há um parágrafo, no início, que resume de forma sublime o âmago da obra. Na melhor tradição da ficção weird, lentamente, a bióloga sente-se a atravessar um processo de mutação, em que é infestada e contaminada pela desolação. A pouca Humanidade que se regista na zona, também ela está sujeita a um processo de iniciação, integração, imolação, imersão e dissolução, os cinco passos que dão o nome aos cinco capítulos da obra. Mas o mistério permanece e será preciso continuar a ler as sequelas Autoridade e Aceitação para se começar a compreender o que está na base da zona misteriosa, e que estranhos e inomináveis seres estão escondidos no seu coração das trevas.


Artigo retirado da revista BANG! N.º 20, publicada em julho de 2016.

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