Revista Bang!
A tua revista de Fantasia, Ficção Científica e Horror, onde podes estar a par das novidades literárias, eventos e lançamentos dos teus autores de eleição.

A Dama do Espelho Negro

Publicado originalmente na Antologia “A Sombra sobre Lisboa” por Edições Saída de Emergência, Novembro 2006

Por António de Macedo

Publicado originalmente na Antologia “A Sombra sobre Lisboa” por Edições Saída de Emergência, Novembro 2006 As festas que a baronesa Camila d’Ayres dava no seu palacete, rodeado por uma quinta verdejante na estrada da Penha de França, eram sempre muito concorridas pela melhor sociedade de Lisboa. Qualquer pretexto lhe servia para reunir os convidados e entretê-los com mazurkas, licores e recitação de poesias e motetes, por vezes tão picantes que roçavam as fronteiras da jovial libertinagem. Mas a baronesa comportava-se com tanto garbo e encanto, e sabia iluminar o salão com luzes tão deslumbrantes e perfumadas (nos castiçais e nos lustres ardiam velas aromáticas provenientes da Turquia e da Pérsia), que os convivas sorriam, indulgentes, mesmo perante as redondilhas mais atrevidas, e até o severo cónego Calixto, que nunca faltava — atraído pelas salutíferas virtudes do Porto servido nessas ocasiões —, nos momentos críticos fechava os olhos e os ouvidos e esvaziava mais um cálice. Nessa noite de Dezembro de 1875, o pretexto do sarau fora a estreia da última peça de Gustavo de Sotto e Abreu, dramaturgo de sucesso, antigo major de cavalaria que se reformara bastante novo, ligado à baronesa por uma amizade de longa data. — …Pois achei de muito mau gosto — dizia o par do reino Magalhães de Castro — a mistura de números de circo, nos intervalos, com os actos duma peça tão séria como a sua, Sr. major de Sotto e Abreu! — O público manda, Sr. Magalhães de Castro — replicou Gustavo —, e a gerência do «Theatro do Gymnasio» não tem outro recurso senão fazer-lhe a vontade. O conselheiro Lourenço da Fonseca interveio: — O público é obtuso, e falho de gosto. Não admira, pois, que apesar das sublimes interpretações da nossa melhor actriz, Maria das Dores, e do nosso melhor actor, Francisco Taborda, na peça Sete Punhais do nosso querido amigo Sotto e Abreu, a preferência da plateia tenha ido para o número do «Espelho Negro» da Companhia Nigromântica, e que não obstante a evidente charlatanice, provocou não poucos arrepios e não menos convulsivos aplausos. — Não pude assistir, lamento, mas amanhã ou depois não faltarei — disse um outro cavalheiro, chamado Menezes, que os escutava com atenção. — Fico curioso pelos Sete Punhais do nosso amigo Sotto e Abreu, e sobretudo por esse entreacto mórbido de que toda a gente fala. — Se ainda não viu não falte, não pode perder! — disse uma das senhoras, esposa de um coronel, espremida num inovador espartilho de concepção francesa e vestida na última moda. — Os Sete Punhais é um drama arrebatador, muito bem escrito e muito bem representado, com situações e lances emocionantes que definitivamente cativam os corações femininos! — Em suma, o Sr. major de Sotto e Abreu, depois de brilhar em tantas campanhas da arma de cavalaria, brilha agora com mais fulgor, se possível, na difícil arte das campanhas cénicas. — Mas afinal em que consistiu esse número macabro do «Espelho Negro»? — Senhor de Menezes — disse a baronesa Camila d’Ayres que entretanto se acercara do grupo, sorvendo delicados goles da sua taça de champanhe —, é um espectáculo que se não pode contar, só assistindo se lhe faz inteira justiça! Imagine um ilusionista, que se intitula «Conde Patrizio di Castigliano», e que apresenta no palco um enorme espelho de vidro negro, diante do qual se coloca uma rapariga de túnica branca, uma medium! Ao ser hipnotizada pelo Conde Patrizio, entra em convulsões e faz aparecer no negrume do espelho as figuras fantasmagóricas dos defuntos que o público vai pedindo! — E há quem acredite nisso? — surpreendeu-se o Sr. de Menezes. — Uma charlatanice, volto a dizer! — riu-se o conselheiro. — Enfim, mais uma dessas coisas espíritas, agora tão em voga. — Como quer que seja, deu-me umas quantas ideias para o enredo da minha próxima peça! — disse Gustavo de Sotto e Abreu, entre jocoso e pensativo. — Sim? Já tem título? — interessou-se o par do Reino. — O título é o menos, pode ser por exemplo O Casamento de Satanás, e quanto à protagonista… estou a vê-la: uma figura igual à dama de vermelho-roxo que apareceu no espelho negro em último lugar, espontaneamente, e sem que ninguém do público a tivesse invocado! Nesse momento o bruháhá no salão mudou de tom, transformou-se num sussurro cheio de expectativas, o quarteto de câmara atacou uma barcarola suave e lenta, e o jovem mas já celebrado poeta Bastos subiu a um pódio junto ao piano e preparou-se para declamar uns sonetos de Bocage, com a dose de pimenta certa de que só ele possuía o histriónico segredo. Os convivas calaram-se, concentrando-se no espectáculo, e o major Gustavo de Sotto e Abreu encostou-se a uma das colunas, ao lado dum enorme jarrão com uma luxuriosa planta tropical, de folhas muito verdes. A baronesa Camila, que ficara junto dele, murmurou-lhe quase ao ouvido: — Gostava de saber, Sr. major, por que ficou tão apreensivo, e por tanto tempo, à saída da sua estreia. — Reconheço, Sr.ª baronesa, que houve realmente um pormenor que me fez pensar, e muito… e não teve nada a ver com a minha peça. — Interessante coincidência… Também fiquei a pensar, e muito, em… — calou-se, duvidosa; o artista começara a sua declamação. — Ficou a pensar em…? Se não é indiscrição, posso saber em quê? — As palavras da dama do espelho!… — Ah!, essas… — Gustavo olhou-a, inquiridor, e acrescentou: — Não consegue esquecê-las, Sr.ª baronesa d’Ayres! — Quanto mais penso nelas, mais me convenço… Contêm um enigma que precisa de ser decifrado. — Estou plenamente de acordo — disse Gustavo. — Ainda não tivemos oportunidade de nos encontrarmos a sós, e de reflectir sobre o assunto. Permite-me uma sugestão? — Deixe-me adivinhá-la: vamos visitar amanhã o nosso amigo marquês? Gustavo sorriu: — Continua a ser exímia em ler os pensamentos alheios, Sr.ª baronesa! — Oh, Sr. major!, como se eu não o conhecesse. Não é a primeira vez que recorremos à argúcia e aos conhecimentos do marquês de Toralva para deslindar mistérios. — Terei muito gosto em acompanhá-la, Sr.ª baronesa. Se estiver de acordo, virei buscá-la amanhã às três da tarde, no meu coupé. — Estarei pronta — disse ela, afastando-se com um sorriso misterioso e logo absorvida pelas solicitações doutros cavalheiros, que a rodearam como abelhões atraídos pelo mel, ao mesmo tempo que o poeta Bastos terminava o primeiro soneto da noite e agradecia os entusiásticos aplausos com que os presentes o ovacionaram. No dia seguinte, à hora combinada, a baronesa Camila d’Ayres e o major Gustavo de Sotto e Abreu apresentaram-se em casa do marquês de Toralva, que já tinha sido avisado da visita, nessa manhã, por um lacaio do major. O velho senhor Avellar d’Assis, marquês de Toralva, habitava um prédio na parte alta da rua da Abegoaria, a um quarteirão do largo da Abegoaria, à Trindade, onde ficava o «Casino Lisbonense» que há quatro anos fora palco das polémicas Conferências Democráticas, protagonizadas por nomes tão sonantes como Eça de Queiroz, Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Batalha Reis… e escandalosamente proibidas pelo Governador-Civil de Lisboa, Gama Barros, que não contente com a proibição deu ordem para que se encerrasse o Casino! A propósito, diga-se de passagem, o velho senhor Avellar d’Assis detestava que o tratassem por marquês; sempre fora um liberal, renunciara aos pergaminhos e herdades da sua fidalguia em benefício dos dois irmãos mais novos que ficaram a viver no palacete de família em Toralva, no Minho. Avellar d’Assis, depois de se doutorar em Matemática pela Universidade de Coimbra, viera para Lisboa e leccionara na Escola do Exército e, mais tarde, durante anos, fora lente de Cosmografia e Geodesia na Escola Politécnica, até à sua reforma e jubiléu no ano anterior. Comprara por 4.500$000 réis uma excelente casa na rua da Abegoaria, e transformara o último andar, com uma desafogada vista para o Tejo, num estúdio-biblioteca onde passava os dias, imerso nas suas investigações. O major e a baronesa foram conduzidos por um velho mordomo, quase tão velho como o amo — um «escudeiro», como se dizia nesse tempo à boa maneira portuguesa — até ao último andar onde o professor jubilado Avellar d’Assis os esperava. Conheciam-se e visitavam-se desde há muito, era uma amizade antiga: o major Gustavo fora aluno do marquês quando este dera aulas de Geodesia na Escola do Exército, e a baronesa Camila — actualmente viúva, ninguém o diria, pela frescura e juventude com que sabia avivar os seus 33 anos! — afeiçoara-se ao velho marquês desde os tempos em que o marido era vivo, o barão Vieira d’Ayres, tão liberal e tão político como o professor, com quem jogava intermináveis partidas de xadrez. O professor convidou-os a sentarem-se e pediu à idosa governanta que mandasse servir um chá e trouxesse biscoitos e doces. Camila e Gustavo trocaram olhares cúmplices e sorriram, já lhe conheciam os hábitos, ao menos os biscoitos não deviam ser nada maus, eram confeccionados por uma criada hábil em doçarias e apetitosos pastéis, típicos das Beiras, e geralmente ao fim da visita, por pouco que durasse, não sobrava nenhum! O estúdio-biblioteca do professor parecia um laboratório de alquimista, com retortas, cadinhos e alambiques em cima de duas amplas mesas, aparelhos de medida para diversas experiências, e serpentinas de destilação, além de uma esfera armilar e uma representação estereópica da esfera celeste; numa parede em fundo sobressaía um extenso quadro negro recoberto de fórmulas químicas e matemáticas, a giz. Viam-se, igualmente, pilhas de manuscritos e livros antigos, alguns espalhados pelo chão, já para não falar nos que atulhavam renques de prateleiras a toda a volta do gabinete, excepto na zona das duas janelas de mansarda donde se podiam contemplar neste momento algumas indolentes fragatas no Tejo, ao longe, e um elegante veleiro. Para rematar, uma confortável lareira acesa amenizava a friagem daquele melancólico dia de Dezembro. Após alguns cumprimentos de circunstância o velho professor impacientou-se e disse: — Deixa-te de curvas, Gustavo! Conheço-te desde os tempos em que eras um aluno sofrivelmente cábula, Deus te valha, mas sempre arguto em encontrar e propor enigmas tão obscuros, por vezes, como engenhosos. Qual o mistério com que me vens atormentar o juízo, desta vez? Gustavo sorriu, hesitando, enquanto procurava as melhores palavras, mas a baronesa antecipou-se: — Já ouviu falar no espectáculo do «Theatro do Gymnasio», Sr. professor Avellar d’Assis? Não, não tinha ouvido, replicou o professor, carrancudo, ou melhor, tinha ouvido mas fingira que não, preocupava-se com altos saberes, não perdia tempo com futilidades, ainda que entre estas se contassem as amáveis peças do seu antigo e dilecto aluno Gustavo de Sotto e Abreu. — Pois fez mal, desta vez! — riu-se a baronesa. — Não tanto pela peça, aliás muito boa e bem encenada, como era de esperar, mas por um espectáculo paralelo, nos entreactos… Foi interrompida por uma criada que acabara de entrar no gabinete, trazendo um tabuleiro com o chá e os doces. A criada colocou o tabuleiro numa pequena mesa-jardineira redonda junto à secretária do professor, verteu o chá cuidadosamente em três chávenas, fez uma vénia e retirou-se. A baronesa Camila, o professor e o major serviram-se, e foram beberricando o chá e petiscando os biscoitos enquanto conversavam. A baronesa prosseguiu: — …Um espectáculo paralelo, dizia eu, apresentado por uma bizarra Companhia Nigromântica, de um tal Conde Patrizio di Castigliano… — virou-se para Gustavo: — …mas talvez aqui o Sr. major de Sotto e Abreu, com a sua arte de dramaturgo, saiba descrever melhor o que vimos, e que nos deixou a cismar. — Ora, Camila — disse Gustavo —, não precisas de me tratar por Sr. major, à frente do professor! Ele já nos conhece há muitos anos. — Está bem, só me queria meter contigo — replicou a baronesa, rindo. — Em todo o caso sugiro que sejas tu, Gustavo, a explicar ao professor o motivo da nossa preocupação. — Podemos contar a meias! — condescendeu Gustavo. — Agradeço-te que intervenhas sempre que me falhar algum pormenor. E contaram: Durante um dos entreactos, a meio da peça Sete Punhais, os bicos de gás que iluminavam a boca de cena foram reduzidos ao mínimo e atenuados com campânulas de vidro fosco protegidas por gazes e tules de cores funéreas; no centro do palco, e por entre vapores e neblinas violáceas, destacou-se um enorme espelho de cristal escuro; a um dos lados surgiu um homem de aparência mefistofélica envolto numa capa negra, e no outro, uma jovem muito pálida, de túnica branca, enquanto a orquestra executava os compassos mais tétricos da recente Danse Macabre, de Saint-Saëns. Por trás do espelho avultava uma vitrine onde se viam, confusamente, caveiras, morcegos de enormes asas pretas, espadas, cruzes e ossos a formar cadeias. O ilusionista de negro declarou chamar-se «Conde Patrizio di Castigliano» e comprometeu-se a invocar os defuntos que o público solicitasse, mediante a intervenção da sua ajudante, a medium Cassandra, que seria hipnotizada e entraria em transe para se pôr em contacto com o além! — Não há dúvida que o espectáculo estava bem montado — reconheceu Gustavo —, e com hábeis efeitos de fumos e de projecções de lanterna mágica, que conseguiam criar uma ilusão quase perfeita. Os «mortos» que apareciam no espelho negro a pedido do público, envoltos em nuvens fantasmagóricas, eram reconhecidos pelos parentes, e houve até senhoras, na plateia, que desmaiaram com a comoção! — Não sou céptica, por natureza — disse Camila —, mas deu-me vontade de rir a credulidade do público, as pessoas viam o que queriam ver… tal não é a força sugestiva dos desejos de cada um! O professor Avellar d’Assis atalhou, sentindo-se mistificado: — Não percebo por que me fazem perder tempo com esses embustes. Invocar os mortos não custa nada, se quiserem posso fazê-los aparecer aqui mesmo, com um elementar jogo de espelhos e de luzes! — Sem dúvida — disse Gustavo —, mas o que nos deixou perplexos foi o que aconteceu por fim, e que manifestamente escapou às intenções do ilusionista e da sua ajudante. Quando ele agradecia os aplausos do público formou-se no espelho negro uma figura de mulher, com um vestido avermelhado… A baronesa interveio para corrigi-lo, os homens não percebem nada de modas femininas, a dama inesperada envergava um vestido de cetim carmesim de cintura estreita e alta «Estilo Império», com mangas curtas de bretelles, um largo decote quadrado, mitaines de renda branca e canhão comprido, e um xaile de caxemira; era uma personagem dos princípios do século, a avaliar pelos pormenores do vestuário. Viu-se claramente que a medium de túnica branca e o ilusionista não esperavam aquilo, ficaram imobilizados e transidos como se fossem estátuas, enquanto a dama do espelho de vidro negro recitava em voz sepulcral: «Adonay Sabaoth — Yog-Sothoth Yog-Sothoth — Eloy Evam Zariathnamik — Yog-Sothoth Yog-Sothoth — Qadosh Qadosh Qadosh — Adonay Sabaoth — Melo’ khal-ha’arets kebôdô — Yog-Sothoth Yog-Sothoth — Selene Selene Selene — Pelo Portal de Scorpio — Dia de Mercurius-Iuppiter Hora de Saturnus — Yog-Sothoth Yog-Sothoth — Phoebus Phoebus Phoebus — Pelo Portal de Capricornus — Yog-Sothoth Yog-Sothoth…»O velho professor, que se levantara e passeava agitadamente no seu heterodoxo gabinete enquanto escutava o relato do major e da baronesa, parou de súbito ao ouvir estes sons desagradáveis; sentou-se num banco giratório em frente duma das prateleiras ajoujadas de livros, cravou um olhar intenso, alternadamente, em Gustavo e Camila, e perguntou em voz rouca: — Têm a certeza que as palavras foram mesmo essas? — Foram — disse a baronesa, que empalidecera durante o relato —, por qualquer razão inexplicável gravaram-se-me na memória, parecia que me eram dirigidas… O professor pediu à baronesa que as repetisse, e registou-as escrupulosamente numa folha de papel. — Aliás — acrescentou Camila —, devo referir que o que mais me perturbou, depois de me ter divertido com a primeira parte do espectáculo que para mim não passou dum mero logro burlesco, foi o símbolo ou desenho mágico que se fixou no espelho durante um longo momento, logo que a dama desapareceu. — Que símbolo mágico?! — estranhou o major. — Não vi símbolo nem desenho nenhum, a dama depois das palavras aberrantes que proferiu limitou-se a desvanecer-se, entre névoas e neblinas, e… mais nada. — Não — teimou a baronesa. — Vi claramente, um círculo cabalístico branco em fundo negro, formou-se quando ela se esfumou e manteve-se uns bons instantes, no espelho… — É muito estranho — insistiu o major —, não vi nada disso e estou certo que mais ninguém viu, também. O professor interveio: — Um símbolo mágico, um círculo?… Será capaz de reconhecê-lo, baronesa, se o vir de novo? — Sim — disse ela, sem vacilar. — Tenho-o diante dos olhos, é uma imagem que não me sai do espírito. O major de Sotto e Abreu olhou-a com atenção e acusou, em voz firme: — Camila!… Conheço-te há muito tempo. O que é que escondes? Se pretendes ter visto alguma coisa que só tu viste, que significado terá? Que mistério se relaciona com esse símbolo… e contigo?… — ficou a olhá-la, perscrutador. A baronesa debatia-se numa visível luta de sentimentos contraditórios, como se o que lhe faltasse dizer em voz alta não fosse coisa em que se pudesse facilmente crer; decidiu-se por fim e murmurou: — A dama do espelho negro… era a minha avó, que morreu em 1813 ao dar à luz a minha mãe. Conheci-a logo que a vi: a mesma imagem e o mesmo trajo duma pintura que tenho emoldurada na minha galeria, dum retrato que lhe foi feito em 1809. Durante algum tempo o silêncio que caiu no ambiente só foi preenchido pelo tique-taque do enorme relógio de pêndulo que se erguia na parede entre os vãos das duas janelas de mansarda. Gustavo observou em voz incrédula: — A tua avó?! Não me tinha ocorrido… Conheço essa pintura que tens em tua casa… nunca lhe prestei grande atenção, confesso, mas tanto quanto me recordo, admito a semelhança. O velho professor Avellar d’Assis levantou-se do banco giratório e tirou duma prateleira um volume encadernado em couro escuro, de grande formato e inequívoca antiguidade, com um aspecto tão sombrio como ameaçador. Levou-o para uma das mesas grandes e colocou-o pesadamente entre uma retorta e um pente de tubos de destilagem. Era um dos mais temíveis livros de magia do século XVI, perseguido, posto no Index librorum prohibitorum e queimado pela Inquisição: o demencial Magna daemonica scientia, do monge excomungado Arnoldus Weikkel. O professor abriu-o e folheou-o, enquanto o major e a baronesa o olhavam com curiosidade. Por fim deteve-se quando encontrou o que buscava, e disse: — Peço-lhe, baronesa, que examine estas gravuras. A baronesa Camila e o major aproximaram-se, debruçando-se sobre as amareladas páginas do livro, que exalavam um odor repulsivo. O desgaste daquele velho tomo era patente, não só em consequência do implacável decorrer dos séculos, mas por ter sido muitas e muitas vezes manuseado. Entre as enormes páginas, escritas em latim, acondicionava-se um pequeno maço de folhas de pergaminho, com figuras mágicas. O professor separou-as e dispô-las em sequência, sobre a mesa. A baronesa reconheceu imediatamente uma delas: — Esta! Foi esta, que apareceu no espelho negro!… Era um círculo mágico com algumas palavras cabalísticas, entre as quais os poderosos nomes bíblicos Adonay e Eloy que a Dama do Espelho enunciara na sua assustadora litania, além da referência ao impronunciável Tetragrammaton e à misteriosa Agla que os rabbis hebreus usavam nos seus exorcismos, composta pelas iniciais das palavras Athah Gobon Leolam Adonay, «Tu és potente e eterno, Senhor». O major Sotto e Abreu olhava atentamente para o professor e para Camila, até que proferiu: — Desculpem-me, mas tenho de o dizer, senão abafo. Há alguém nesta sala que sabe mais do que quer deixar transparecer. Pressinto um complot, não sei bem de quê ou de quem, e gostava de ser esclarecido. O velho marquês Avellar d’Assis riu-se — um riso forçado, mais um esgar de quem padece uma dor vexante do que riso de bom humor; guardou os pergaminhos com as figuras mágicas dentro do livro, que fechou, e apenas deixou de fora a gravura escolhida pela baronesa, que ficou bem à vista. Após um pensativo momento, acabou por se decidir: — Sim, Gustavo, há de facto um complot, embora não seja nada do que possas imaginar. Por outro lado, hesito… há certos segredos que… — suspendeu-se e olhou para Camila d’Ayres — …há certos segredos que não são só nossos, e não temos o direito de os revelar, sem comprometer terceiros inocentes… — suspendeu-se de novo. Camila aproveitou a breve interrupção para dizer em voz contida: — Não me considero terceira inocente, Sr. professor… presumo que se esteja a referir a mim. Pode revelar o que em sua consciência tem de revelar. Ainda que se trate dum segredo doloroso… escondê-lo por mais tempo pode ser um erro trágico. — Tem razão, baronesa Camila, o tempo urge, os sinais estão à vista e apontam para a catástrofe que se avizinha a curtíssimo prazo. Posso porém adiantar, desde já, que tenho uma ideia razoavelmente precisa sobre o significado das palavras que a Dama do Espelho recitou… mas… antes de vos dizer o que penso sobre isso, sinto-me na obrigação de vos revelar um desagradável segredo de família. Camila e Gustavo sustinham a respiração, suspensos do que o velho professor iria divulgar a seguir. Continuou: — A sua avó, baronesa, cujo espectro apareceu no Espelho Negro, era uma senhora chamada Cesarina Isabel… Como é que sei? Custa-me dizê-lo, ao cabo destes anos todos de nos conhecermos, mas chegou o momento… Era amante do meu pai, e morreu em 1813 ao dar à luz uma menina que não era filha do matrimónio, mas filha do adultério. A baronesa soltou uma breve exclamação, de espanto ou de susto — apesar de o romantismo da época se prestar sem esforço a histórias de amores traídos, descobrir de súbito que a sua mãe (presentemente com 62 anos e viúva, a viver numa quinta no Vale do Mondego) era filha de uma adúltera, não pôde deixar de chocá-la… olhou para o professor e balbuciou: — Isso quer dizer que o Sr. professor Avellar d’Assis… — a voz tremeu-lhe e apagou-se, como se lhe faltasse o ar. — Sim — disse o professor, muito sério. — Sou meio-irmão de sua mãe, baronesa Camila, eu e ela temos o mesmo pai. Meio-irmão mais velho… eu tinha 13 anos em 1813, quando a sua mãe nasceu. Sou portanto seu tio, baronesa… ou meio-tio, se assim o quiser entender. O major Gustavo, cuja veia de dramaturgo já lhe fazia visualizar escaldantes intrigas familiares com vários enredos possíveis, forçou-se a descer das nuvens onde a conversa o arrebatara e notou: — Por favor, concentremo-nos no essencial. Ouvi falar num perigo iminente. Em que é que tudo isto nos ajuda a perceber se esse perigo é sério, ou não, e em caso afirmativo, como esconjurar o que esteja para vir, e que seja realmente grave? O professor Avellar d’Assis ficou a olhá-lo, especulativamente; pediu licença e acendeu um charuto, cuja fumaça acre aspirou duas ou três vezes antes de fazer o seguinte relato, em voz pausada: O pai dele, o velho marquês Luiz António d’Assis, nascera na vila de Toralva, no Minho, em Abril de 1771, precisamente no mesmo dia em que falecera, na América do Norte, um estranho personagem chamado Joseph Curwen. Este Joseph Curwen viera de Salem em 1692, segundo se dizia, e instalou-se na cidade portuária de Providence, em Rhode Island. Teve uma vida excepcionalmente longa; na aparência, dedicava-se à indústria naval e chegou a comprar embarcadouros perto da enseada de Mile End, mas na verdade era tido como um nefasto bruxo e necromante, entregue a perigosíssimas magias, pactos demoníacos e perturbadoras manipulações químicas, ou alquímicas, à custa de cadáveres e outros horrores. Por fim, a situação tornou-se tão insustentável, em Providence, que um grupo de cidadãos resolutos e corajosos decidiu pôr termo às blasfemas actividades de Curwen, e numa noite de Abril de 1771 lançaram fogo à mansão do necromante, que explodiu, carbonizando tudo. Os tenebrosos poderes de Joseph Curwen, porém, eram de longo alcance, e não se extinguiram com a sua morte — ou aparente morte… — Existe uma misteriosa afinidade — prosseguiu o professor Avellar d’Assis, abrindo um atlas de grandes dimensões e desfolhando-o até encontrar os mapas que pretendia — entre certos locais que se situam à mesma latitude, ou seja, no mesmo paralelo terrestre. Inclinou-se sobre o atlas e convidou Camila e Gustavo a observarem: — Como podem ver neste mapa da América do Norte, Providence tem a latitude de 41º 50’-N, e fica à beira do rio Providence, em Rhode Island. Por sua vez, neste outro mapa, deste lado do Atlântico, podemos ver que a vila de Toralva, perto de Arcos de Valdevez, também tem a latitude de 41º 50’-N, e fica à beira do rio Alva, afluente do Lima. Similia similibus…! Eis um poderoso atractor mágico! Existe uma tradição muito antiga, aceite pelo Budismo Theravâda, segundo a qual uma pessoa que morra convulsamente arremessa as suas energias cármicas que, como um relâmpago, atingem o ventre da mãe que estiver a ponto de dar à luz, e o novo ser vem impregnado com as vibrações, as essências e as energias do recém-defunto. O professor fechou o atlas e sentou-se no seu cadeirão estofado, reacendendo o charuto que deixara apagar enquanto falava. A baronesa e o major, muito atentos, não perdiam uma sílaba do que ele dizia e, sobretudo, do que se implicava nas entrelinhas do seu estranho discurso. — Se bem compreendo — comentou o major —, o menino que nasceu em Toralva em Abril de 1771… — …O meu pai! — precisou o professor, com um sorriso enigmático. — …Sim, o seu pai, Sr. professor Avellar d’Assis… Quer dizer com isso que… o seu pai veio ao mundo com as essências e a personalidade desse tal… Joseph Curwen? — Não o afirmo taxativamente, mas tão-pouco o nego — respondeu o professor —, e de resto não me espantaria, atendendo às motivações e aos gostos equívocos de que o meu pai, o velho marquês de Toralva, deu abundantes mostras ao longo da sua vida. Na verdade — prosseguiu, indicando o gabinete num gesto abrangente —, o gosto pela química e pela astronomia, pelos estudos secretos e pelo aprofundamento das artes ocultas herdei-o dele; a maior parte destes aparelhos e alambiques, tal como os mais antigos destes antiquíssimos livros, pertenciam-lhe. Quando ele morreu… ou desapareceu, não se sabe… em 1813, tinha eu 13 anos… o seu gabinete e o seu laboratório, e respectiva biblioteca, ficaram selados, até que na minha maioridade os reclamei e nada mais quis como herança. Deixei o título e as propriedades aos meus dois irmãos mais novos, em Toralva, fui estudar para Coimbra e acabei por me instalar em Lisboa. A baronesa Camila d’Ayres surpreendeu-se: — Quer dizer, a morte da minha avó, o nascimento da minha mãe, e a morte… ou desaparecimento… do seu pai, Sr. professor Avellar d’Assis, ocorreram ao mesmo tempo… no mesmo dia? — Sim — confirmou o velho professor —, no mesmo dia. São eventos que compartilham entre si alguma forma de vínculo secreto. Foi durante uma temporada em que o meu pai veio a Lisboa, em 1810 e 1811, e depois em 1812 e 1813, que conheceu e se relacionou com D. Cesarina Isabel, uma senhora de alta linhagem casada com o seu avô, baronesa. Tornou-se amante dela, no maior sigilo, e acabou por engravidá-la. Por umas velhas cartas e um registo diário de memórias que resgatei do material selado do meu pai, soube que ele lhe terá passado um terrível segredo. Morreu em Lisboa, no mesmo dia em que a sua avó morreu ao dar à luz… Aparentemente ninguém desconfiou de nada, e o seu avô, baronesa Camila, sempre pensou que a menina que nascera era filha dele. Entretanto, o que quer que tenha acontecido rodeou-se de circunstâncias misteriosas, e o corpo desaparecido do meu pai nunca chegou a ser recuperado. O professor foi buscar uma esfera de cristal muito transparente, que tinha fechada à chave num armário. Media cerca de três polegadas de diâmetro, na verdade não era bem esférica, tinha uma forma vagamente lenticular, e acomodava-se sem esforço na concha da mão. Colocou-a sobre uma das mesas, em frente de Camila, e explicou: — Fazia parte do espólio do meu pai, e era o point d’appui magnético das espantosas encantações de John Dee, o grande mago isabelino, autor da indecifrável Monas hieroglyphica e dos Mysteriorum libri quinque. Por intermédio desta bola de cristal John Dee comunicava com o Anjo Uriel na «Língua de Enoch», que o Anjo lhe ensinara. Penso que está intimamente relacionada com um livro demoníaco que John Dee traduziu em 1586, o Necronomicon… Continuando o seu raciocínio, o professor Avellar d’Assis referiu que de alguma forma antinatural Joseph Curwen previra o atentado que se preparava contra ele; previu, igualmente, qual o ponto além-Atlântico onde iria renascer, e dispôs as coisas de modo que a sua posse mais preciosa, o exemplar do Necronomicon, fosse parar às mãos certas na altura certa, e assim, um dia, um brigue-escuna misterioso partiu de Newport, Rhode Island, atravessou o Atlântico Norte e por força de uma inexplicável tempestade teve de aportar ao ancoradouro de Viana do Castelo, na foz do Lima, onde desembarcou um caixote destinado ao palacete dos marqueses de Toralva, e especialmente endereçado ao marquês Luiz António d’Assis, o pai do professor. Neste ponto, o major de Sotto e Abreu pediu tréguas para reordenar as ideias, e observou: — Nem sequer discuto a estranheza dessa catadupa de factos, que eu reputaria inverosímeis se não os considerasse soberbamente proveitosos para o enredo duma peça que já se me começa a germinar. Peço-lhe, Sr. professor, antes de seguir adiante, que nos esclareça, a mim e à baronesa, sobre o significado do discurso da Dama do Espelho Negro… pareceu-me ouvi-lo dizer que tinha uma ideia razoavelmente precisa sobre o que essas palavras significariam. — Era aí que eu pretendia chegar — anuiu o professor. — Da aparição da Dama do Espelho e do que ela disse ressaltam quatro informações concretas: uma blasfema invocação a Yog-Sothoth, uma data, um local… e um círculo mágico. A invocação completa, com monstruosas ameaças contra a saúde física e espiritual do mundo, encontra-se na página 751 da edição integral latina do Necronomicon ; por sua vez, a data e o local… — Um momento, por favor — pediu a baronesa. — Esse nome assustador, Yog-Sothoth… o que é? — Um terrificante deus das Trevas Exteriores, também chamado Guardião do Umbral, que partilha poderes com outro deus das Trevas Exteriores, Azathoth, cujo nome secreto é Caos Primevo e tem a sua corte demoníaca no centro do cosmos. Segundo o Necronomicon, Yog-Sothoth existe em toda a parte, fora do tempo e do espaço, e paradoxalmente encontra-se aprisionado fora da nossa própria dimensão. Só está à espera de ser convocado para romper a dimensão paralela que o retém e manifestar-se plenamente, com todos os seus horrores, no nosso universo. O professor foi buscar um grosso volume de Efemérides Planetárias, usadas em Astrologia, e prosseguiu: — Suspeito que essa convocação já tenha sido feita, em parte por Joseph Curwen, e em parte pelas manipulações do meu pai. É uma convocação de longo alcance, de modo que o seu efeito estará agora, pelo que presumo, prestes a concretizar-se. Depôs na mesa o volume das Efemérides, abriu-o, mas não o consultou imediatamente; começou por reler a folha de papel onde copiara as misteriosas palavras da Dama do Espelho que Camila memorizara e repetira, e disse em voz concentrada, como se falasse consigo mesmo: — A recitação da Dama constitui um código mágico, que não é dos mais difíceis de decifrar. Selene é a personificação da Lua; Selene pelo Portal de Scorpio é o momento da entrada da Lua no signo zodiacal de Escorpião; por sua vez, Phoebus é a personificação do Sol, e Phoebus pelo Portal de Capricornus é o momento da entrada do Sol no signo de Capricórnio. — Folheou as Efemérides até se deter no ano de 1875 e no mês de Dezembro: — Segundo estas Efemérides, ambos esses eventos coincidem na mesma ocasião, na noite de quarta para quinta-feira, 22 e 23 de Dezembro, dias de Mercúrio e Júpiter, à hora de Saturno conforme profetizou a Dama do Espelho Negro. O momento, portanto, é o místico Festival do Solstício de Inverno dos antigos Saturnalia. Fechou o volume e acrescentou: — Ela transmitiu uma cifra a uma pessoa específica: a baronesa Camila d’Ayres, pois só assim se justifica que a imagem do círculo mágico não tenha sido vista por mais ninguém. É uma cifra de acesso, e indica-nos o local… — Quarta-feira, 22, é já depois de amanhã — observou o major. — Pois é — disse Camila —, mas o local, onde fica? Se a mensagem me era destinada a mim, e só a mim, será esse local um sítio aonde terei de ir, eventualmente sozinha, depois de amanhã? O professor Avellar d’Assis tirou de cima da mesa o tomo das Efemérides e recolocou-o na estante; dirigiu-se a uma outra prateleira e extraiu de lá uma volumosa Bíblia hebraica. Nas suas idas e vindas, pondo e tirando livros, tão depressa se sentava no banco giratório como logo se erguia e deixava cair em seguida no seu cómodo cadeirão estofado. Abriu a Bíblia e esclareceu: — A fórmula objurgatória «Yog-Sothoth Yog-Sothoth» encontra-se a balizar tempos e espaços. Já conseguimos descodificar a data, resta-nos descobrir o local. Não é difícil. Pela cópia que fiz das palavras que a baronesa repetiu, vemos que há uns versos hebraicos balizados do mesmo modo: Qadosh Qadosh Qadosh Adonay Sabaoth Melo’ khal-ha’arets kebôdô. Consultou a Bíblia e folheou-a até se deter numa passagem: — Pertencem ao livro de Isaías, capítulo VI, versículo 3, e a tradução é: «Santo Santo Santo, Senhor dos Exércitos, A sua presença enche toda a terra». Certas Bíblias hebraicas, em vez de Adonay, que significa Senhor, utilizam o poderosíssimo e impronunciável Tetragrammaton, YHWH. Esta passagem bíblica estava inscrita numa lápide sobre a entrada duma sinagoga que existia no século XV na Judiaria Pequena do bairro de Alfama, na então chamada rua da Sinagoga. Hoje é uma estreita viela por trás da actual rua da Alcaçaria, no mesmo bairro de Alfama, onde os judeus antigamente compravam e vendiam géneros. Fez uma pausa, concentrou-se um pouco e prosseguiu: — Reunindo todos estes fios, atrevo-me a chegar a uma conclusão… espero que não errada de todo, embora nunca se possa ter a certeza!… Joseph Curwen e, mais tarde, o marquês Luiz António d’Assis, meu pai, deram início ao tenebroso ritual invocatório de Yog-Sothoth que permitiria desencadear e obter algum efeito necromântico de espantosas proporções… Receio que este versículo: Melo’ khal-ha’arets kebôdô, ou seja, «A sua presença enche toda a terra», tenha o significado blasfemo duma devastadora intenção satânica… Virou-se para Camila: — O marquês Luiz António, meu pai, deve ter partilhado esse medonho segredo com a sua avó, a senhora D. Cesarina Isabel; ela porém era uma crente fervorosa, católica por tradição familiar, e sem dúvida se debateu em grandes angústias e tormentos espirituais devido ao mau passo do adultério e às fatídicas consequências das necromâncias do amante. Tudo me leva a crer que tenha tentado dissuadir o meu pai dos seus pecaminosos intentos, mas… — fez uma pausa e rematou: — …obviamente não conseguiu, e por isso a sua sombra espectral, que paira sem repouso entre o céu e o inferno, ou, pior, num limbo sem nome, aproveitou o momento astral apropriado para entrar em contacto com uma descendente do seu próprio sangue… e transmitir-lhe a chave para esconjurar e aniquilar o horror que se prenuncia. O professor guardou a Bíblia e outros livros que tinha entretanto compulsado; dirigiu-se às janelas de mansarda e ficou abstractamente a olhar, através das vidraças, a chuva que começara a cair e a matizar a tarde triste daquele lúgubre dia de Dezembro. A baronesa Camila d’Ayres murmurou: — Se a sua dedução está correcta, Sr. professor, e se eu sou a pessoa que a minha avó escolheu para prevenir esse hipotético perigo… o que é que se espera que eu faça? Avellar d’Assis voltou para o centro do aposento, deteve-se entre as duas mesas e ficou a olhar para Camila e para Gustavo, durante um bom minuto, antes de responder. Depois encarou a baronesa e disse: — Há uma ou duas coisas que lhe posso dizer, baronesa, mas não mais do que isso. — Com uma das mãos, apanhou o pergaminho com a figura mágica que tirara de dentro do livro maldito de Arnoldus Weikkel, e com a outra segurou na esfera cristalina de John Dee. Entregou ambos os objectos a Camila que lhes pegou, surpreendida, e concluiu: — Baronesa, os objectos rituais são estes. O local, é uma viela por trás da rua da Alcaçaria, em Alfama. O tempo, é depois de amanhã, quarta-feira, 22, à hora de Saturno, ou seja, às dez da noite. — E que farei com estes objectos?… Deverei ir sozinha? — Nem penses! — interveio Gustavo, impulsivamente. — Seja o que for que se prepara, irei contigo e estarei contigo, em todo o momento e em quaisquer circunstâncias. Durante dois dias o major Gustavo de Sotto e Abreu praticamente não saiu de casa, encerrado na sua biblioteca. Consultou uma razoável quantidade de livros até os olhos lhe ficarem a doer, tinha-os de todos os géneros, desde novelas de cordel até substanciosos tratados sobre as mais desencontradas ciências e artes, onde ia beber inspiração para os enredos das suas peças teatrais. Desde que a irmã se casara e fora viver com o marido e com os pais para a província, habitava sozinho numa vivenda solarenga à praça do Príncipe Real, apenas servido por duas criadas, um lacaio que também era cocheiro e cavalariço, e um mordomo — ou melhor, «escudeiro» — já de certa idade chamado Eusébio, que havia sido ajudante de livraria num convento. Na vasta colecção bibliográfica de que dispunha, procurou informações que complementassem de algum modo tudo quanto soubera durante a visita ao professor Avellar d’Assis. Na quarta-feira, 22 de Dezembro, ao fim da manhã, recebeu um bilhete da baronesa Camila d’Ayres lembrando-lhe a missão dessa noite e dando-lhe conta dum apontamento manuscrito da avó, Cesarina Isabel, que entretanto descobrira num velho cofre e onde se revelava algo que talvez ajudasse a prevenir os incógnitos perigos que os aguardavam. Convidava-o para jantar às sete horas, a fim de poderem acertar pormenores sem pressas antes de saírem juntos para a temerária e quem sabe se mortífera expedição. O major rabiscou rapidamente uma resposta e enviou-a pelo mesmo portador, agradecendo o convite e confirmando que iria ter com a baronesa à sua residência, à Penha de França, à hora indicada. Durante a tarde, Gustavo pôs em ordem alguns assuntos que tinha pendentes e ao fim do dia preparou-se para sair. Naquela altura do ano era já noite, e o mordomo Eusébio, depois de o ajudar a envergar um capote próprio para chuva — o tempo estava de aguaceiros, com desagradáveis rabanadas de vento gélido —, advertiu: — Peço-lhe, meu senhor, que evite passar nas ruas do Limoeiro. Houve uma explosão de gás numa taberna, junto à casa da guarda, e aquelas paragens estão cheias de perigos. — Obrigado, Eusébio, pelo teu cuidado, mas o meu giro não passa por esse desvio… Os perigos que me aguardam são doutro molde! — Ah! — retorquiu o escudeiro, mantendo o ar cerimonioso mas sem poder retrair um sorriso. — Se bem conheço vossa excelência, e se me autoriza a ousadia, só há duas sortes de coisas que o mortificam fatalmente: ou vai ver o bocejante drama sacro O Natal do Redemptor, que sobe hoje à cena no «Theatro da Rua dos Condes», ou, pior, prepara-se para assistir, no «Atheneu da Rua da Magdalena», à conferência do Sr. dr. Vicente da Maia sobre a teoria do progresso! — Não páras de me surpreender, Eusébio — riu-se o major —, com a tua sabedoria e as subtilezas de que és dotado, certamente adquiridas e treinadas durante os anos em que foste ajudante de livreiro no convento dos Agostinhos. Mas não te preocupes. Eu cá me desenvencilharei. Trata antes de dar ordem ao Marcelino que atrele a parelha de cavalos ingleses ao landau, e se ponha à boleia. Ele que se apronte para uma noitada. Pode levar escondida no gabão uma garrafinha de aguardente, fingirei que não vejo, o frio aperta, e, aonde tenho de ir, ele vai ter de ficar muito tempo cá fora, à espera. O major desceu à sala de armas, na cave, desferrolhou o cofre das armas de fogo e tirou para fora um estojo de ébano, que abriu. Continha duas magníficas pistolas francesas de duelo, marchetadas com embutidos de prata lavrada. Sopesou-as, verificou se estavam carregadas, esteve quase para levá-las mas desistiu e pô-las de lado. Optou por dois eficientes revólveres Schofield de sete polegadas, calibre 45 e tambor de seis tiros, do modelo desse mesmo ano, 1875. Guardou-os nas amplas algibeiras do capote e em seguida desprendeu duma das panóplias na parede um sabre militar de gume afiadíssimo, que embainhou e cingiu por baixo do capote. Quando chegou ao palacete da baronesa Camila d’Ayres foi conduzido por um lacaio a uma sala que ele conhecia bem, forrada de rosa-velho e lilás, com veludos e sedas moirées e móveis sóbrios mas muito acolhedores, onde Camila por vezes almoçava e jantava com os amigos e familiares mais íntimos, em vez de utilizar o salão. Ela já o esperava nessa sala, pequena mas confortável, alumiada por globos de vidro fosco de tons suaves que matizavam a chama dos bicos de gás, e uma mesa posta só para dois. Em fundo, uma generosa lareira acesa consumava o aconchego do ambiente. Enquanto uma criada e um criado irrepreensivelmente fardados e de luvas brancas lhes iam servindo os pratos e os vinhos, a baronesa disse, em dado momento: — O apontamento de que lhe falei, Sr. major, da minha avó Cesarina Isabel… encontrei-o esta manhã, num cofre antigo, enquanto arrumava velharias na arrecadação do andar ático. Mostrar-lho-ei mal acabemos de jantar. — Fico ansioso de curiosidade mas ao mesmo tempo inquieto, Sr.ª baronesa: pelo seu tom, julgo detectar uma certa apreensão. — Digamos antes: uma certa perplexidade perante o mistério. Ao fim do jantar a baronesa foi buscar a velha folha manuscrita que entregou ao major; pediu licença e retirou-se com uma criada aos seus aposentos a fim de vestir uma toilette de sair à rua, apropriada para enfrentar os rigores do mau tempo. O major aproximou a folha da luz dum dos globos de gás: a velhice do papel esfarelara-o e rasgara-o em algumas zonas, de modo que continha apenas frases semi-truncadas, numa tinta já um tanto esvaída pela passagem dos anos, e podia-se presumir que fizesse parte dum rascunho, talvez duma carta dirigida ao marquês Luiz António d’Assis — o pai do professor: …se não queres o que olhos não vejam e ouvidos não escutem… …se não queres que os mortos não saiam da terra… …se não queres que o Pesadelo-Sem-Nome não te acorde… …pelas Leis dos Antigos, não ponhas o cristal adiante quatro estrelas sete cruzes… …que Deus não permita… (ou: …que Deus não permite, a última palavra distinguia-se mal). «Não prima pela clareza», cogitou Gustavo, «as partes rasgadas fazem mesmo falta, mas não é difícil perceber que se trata dalguma forma de ansiosa advertência». Pouco depois Camila desceu dos seus aposentos, pronta para sair com o major. Envergava uma capa feltrada e impermeável de tecido loden, cor de antracite, com um capuz que lhe emoldurava o belo rosto; na mão trazia uma bolsa onde guardava, além dos seus atavios pessoais, a esfera lenticular de cristal de John Dee e o pergaminho com o círculo mágico. Entraram na carruagem do major e partiram imediatamente. Era um landau de capota dupla em forma de fole e portinholas envidraçadas, próprio para Inverno. Marcelino, o cocheiro do major, dirigiu os cavalos com perícia levando o veículo à desfilada pelas ruas de Lisboa, desertas àquela hora da noite, ainda por cima chovia com força, o vento vergastava e a temperatura descera a um grau nada convidativo para se andar a pé. Como já estava industriado sobre o destino da viagem, o cocheiro entrou em Alfama e estacionou o landau no terreirinho de acesso à estreita rua da Alcaçaria. Entretanto deixara de chover, ficou apenas a cair uma poalha de humidade pulverizada, muito fina, batida por um vento polar que enregelava os ossos até à alma. Gustavo e Camila desceram do landau e correram, defendendo-se como podiam da chuvinha miúda, quase poeira, e, à luz nevoenta dos lampiões de gás, dirigiram-se para a viela atrás da rua da Alcaçaria que o professor lhes indicara. Era uma viela apertada, de piso empedrado irregular onde se acumulava o lixo, com casas muito velhas e portas de madeira semi-apodrecidas. A luz difusa dos lampiões transformava aquele espaço num cenário depressivo e aterrador; Camila e Gustavo detiveram-se, hesitantes, estavam no sítio certo mas não atinaram de imediato com o passo que deveriam dar a seguir. De súbito, por entre a cacimba, irromperam da neblina três vultos sombrios que se dirigiram com uma disposição pouco tranquilizadora para o major e para a baronesa. Eram três rufiões, de bonés de cabedal e coletes de oleado roto e sujo, que farejaram duas vítimas fáceis para o seu primeiro assalto da noite. Camila soltou um pequeno grito, que logo abafou, e Gustavo sem hesitar desembainhou o sabre de sob o capote e preparou-se para a arremetida dos três desordeiros, que já avançavam empunhando facas compridas, de sangrar porcos. Nesse momento soaram na torre da igreja da Senhora da Saúde as badaladas das dez da noite — a hora de Saturno! —, e ocorreu uma mudança repentina que deixou Camila e Gustavo quase sem respiração, como se tivessem sido engolfados por uma avassaladora onda de éter: Em vez da viela, estavam numa calçada de prédios medievais de granito e ardósia semelhantes às casas beirãs ou transmontanas, os três assaltantes eclipsaram-se numa nuvem de vapor como num truque de ilusionismo teatral, e à frente deles avantajava-se uma antiga sinagoga com uma lápide de pedra escura por cima da porta, estalada nos cantos e corroída pelos séculos: Reconheceram na inscrição o texto que o professor lhes mostrara na Bíblia hebraica, do livro de Isaías, e que a Dama do Espelho Negro recitara: Qadosh Qadosh Qadosh Adonay Sabaoth Melo’ khal-ha’arets kebôdô. Olharam à volta e a noite sofrera uma subtil transformação: a chuvinha pulverizada desaparecera, substituída por um nevoeiro espesso, amarelado e com remoinhos lentos que pareciam vivos, transportando um forte cheiro a maresia como se o Tejo na maré vazante estivesse ali mesmo, escondido pelo nevoeiro. Ao mesmo tempo, e por entre misteriosas lufadas intermitentes, alastravam-se rajadas de cheiro fétido a coisas cadavéricas em extremo estado de podridão. Ouviu-se um estalo como de uma tranca ferrugenta a soltar-se, logo seguido por um ranger lamentoso de causar arrepios: era a velha porta da sinagoga a descerrar-se. A luz dos lampiões mal conseguia penetrar na espessura daquela névoa fuliginosa, mas o clarão proveniente da abertura cuja porta se escancarava diante deles era um resplendor tão irreal como deslumbrante, e alumiava a viela com uma luminosidade intensa, simultaneamente fria e dourada. — Que achas que devemos fazer? — hesitou o major. — É um convite e não podemos ignorá-lo — disse a baronesa, decidida. — Lembras-te da nossa aventura no Castelo dos Mouros Mortos-Dementes, há dois anos? Se tivéssemos ficado cá fora, teríamos sido serrados ao meio pela enorme rasoira que nos ia atingindo. — Pois entremos, Camila, e seja o que Deus quiser. Entraram na sinagoga e mal tinham dado três passos ouviram a porta fechar-se com fragor. Não perderam tempo a considerar as consequências de poderem estar encurralados, e olharam em volta. A neblina da rua parecia ter-se infiltrado ali dentro, mas a misteriosa luminosidade ambiente permitia-lhes ver com clareza a vastidão do local onde se encontravam. Não se parecia nada com o interior duma sinagoga, era antes uma câmara abobadada gigantesca, uma cripta colossal com dezenas de colunas rudes esculpidas com figuras assustadoras, e arcos de pedra duma antiguidade sem memória, e escadarias retorcidas, e várias pontes de granito escuro, brilhantes de humidade, cruzando-se a diferentes e vertiginosas alturas… Avançaram até ao centro e descobriram, na parede frontal, um quadro de vastas proporções que os deixou perplexos. Era uma pintura grandiosa, representando uma dama sentada diante dum espelho, num toucador, a arranjar o cabelo: a dama era a Dama do Espelho Negro, Cesarina Isabel, a avó da baronesa!, exactamente com o mesmo trajo com que aparecera no teatro, no entreacto da Companhia Nigromântica, e ataviava-se agora diante dum enorme espelho negro… negro como a bocarra dalgum abismo infernal — no entanto ela ataviava-se tranquilamente como se pudesse ver a sua imagem reflectida… Um foco de luz intensa, cuja fonte se perdia nas alturas nevoentas, concentrava-se a formar um halo branco e incandescente na base do quadro. Camila abriu a bolsa de mão e retirou o pergaminho com o círculo mágico e a esfera de cristal. — Que te parece, Gustavo? Deverei utilizar agora estes objectos?… E como?… — Estou a pensar nas frases que a tua avó escreveu no rascunho que me mostraste… Fiquei com a sensação de que ela instava alguém, talvez o amante, ou seja, o pai do professor, para que não fizesse algo que Deus não permitisse, e para que os mortos não saíssem da terra… e outras coisas proibidas… e falava em quatro estrelas e sete cruzes… Um súbito ruído alertou-os, Camila meteu novamente na bolsa o pergaminho e a esfera de cristal, voltaram-se para ver donde provinha e ficaram gelados de terror: as enormes figuras esculpidas nas colunas de pedra velha estavam a soltar-se, fragmentando grandes pedaços de granito que se esboroavam no chão com a força do impacto, e começaram a caminhar desajeitadamente na direcção deles: à frente vinha um ser de pesadelo com pelo menos três metros de altura, um horror amorfo, preto lustroso, com muitos membros protuberantes, boca babejante e olhos sangrentos, enquanto as outras figuras o reverenciavam, bramando e urrando: — Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Gustavo agarrou Camila por um braço e puxou-a a fugir dos monstros que avançavam, e gritou: — Está ali uma passagem!… Depressa!… Correram para o que parecia ser uma passagem estreita entre dois pilares, os monstros porém foram mais rápidos e um deles, semelhante a um íncubo, ou um demónio-dragão, agarrou Camila, que gritou, prendeu-a fortemente nas garras e ergueu-a no ar, abriu a boca desmesurada exalando um bafo pestilencial e preparou-se para triturá-la entre as mortíferas fieiras de dentes afiadíssimos. Gustavo puxou do sabre e vibrou dois ou três golpes na criatura de pedra que fizeram espirrar faíscas mas não lhe causaram mais mossa do que um ligeiro arranhão; reembainhou o sabre, empunhou um dos revólveres Schofield e disparou os seis tiros do tambor contra o horrendo ser, o seu apurado treino militar permitiu-lhe acertar nele sem ferir Camila. Os tiros tiveram um efeito fulminante: racharam o íncubo e fenderam-no em diversos pontos do corpo e por fim estilhaçaram-no, fazendo com que se despenhasse no chão em mil pedaços. Camila soltou-se e caiu mas logo se levantou num pulo, Gustavo segurou-lhe na mão e saíram velozmente pela abertura entre pilares, seguidos de perto pelo tropel de monstruosidades que tentaram igualmente passar pela mesma abertura. Desembocaram numa rua larga, clareada por uma luminosidade leitosa de um nevoeiro que tudo atabafava, um nevoeiro de um tom descolorido entre o magenta e o violeta pálido, e reconheceram, surpreendidos, os muros, os gradeamentos e os lampiões de ferro fundido do Passeio Público (mais tarde Avenida da Liberdade…), e umas figuras percorrendo a alameda principal, pareciam damas e cavalheiros, eles de chapéu alto, elas de vestido comprido, e crianças brincando com arcos, e um lago com um repuxo ao centro, e uma guarita com um soldado… Gustavo e Camila não tiveram tempo de ficar a apreciar o insólito panorama, os monstros de pedra, com Yog-Sothoth à frente, tinham conseguido esgueirar-se através da estreita abertura entre pilares e invadiam agora as ruas, o Passeio Público, as alamedas, as praças, os atalhos, e até uma espécie de cais semelhante ao antigo Arsenal que se prolongava ao longo do pavimento, entre névoas… Os tranquilos transeuntes, as damas, os cavalheiros, as crianças, afinal não eram tranquilos transeuntes, transformaram-se lentamente como se fossem de geleia em seres abomináveis da Grande Raça de Yith, veneradores dos Rituais Malditos de Rhan-Tegoth, e começaram a entoar uma litania crescente, atroadora, com ecos de enlouquecer: — Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth!… Yog-Sothoth ergueu os múltiplos e monstruosos braços como se estivesse a vitoriar aquela satânica multidão de adoradores. — Repara, Camila — disse Gustavo de súbito —, todos estes monstros se agitam mas parecem hesitar… Falta-lhes qualquer coisa para lhes fixar a forma. — Sim, já reparei — murmurou Camila agarrando-se com força a Gustavo. — A fazer fé no que nos contou o professor, o ritual iniciado por Joseph Curwen e pelo marquês Luiz António devia ter o seu hediondo desfecho nesta data… Mas o ritual deve ter ficado incompleto e por isso a minha avó, a Dama do Espelho Negro, nos deu uma chave para o anularmos! — Se assim for, e como os monstros estão todos cá fora, voltemos para o interior da sinagoga, ou da cripta, talvez o quadro que lá se encontra, com a imagem da tua avó, contenha alguma pista! O nevoeiro estava cada vez mais espesso e dissimulava-os facilmente, e ambos puderam escapulir-se para o interior da cripta sem que os monstros os interceptassem. Lá dentro voltaram a fixar a atenção na pintura, com a Dama sentada negligentamente diante do enorme espelho preto, envergando um longo vestido «Estilo Império» e toucando os cabelos, e o misterioso foco de luz intensa concentrado na base do quadro… Repentinamente ocorreu um imprevisto: a Dama voltou-se para eles, no quadro, e sorriu!! Camila, levando a mão ao peito, semi-sufocada de comoção, sussurrou: — Cesarina Isabel, minha avó!… E a Dama proferiu com um sorriso cativante e uma voz etérea, de além-túmulo: — Sim, Camila, sangue do meu sangue! Camila refez-se da surpresa, encheu-se de coragem e disse: — Que devemos fazer? — extraiu da bolsa o pergaminho com o círculo mágico e a esfera de cristal de John Dee. — Recordo-me das palavras que a avó rascunhou ao marquês Luiz António: que os mortos não saiam da terra… que o Pesadelo-Sem-Nome não o acorde… e que Deus não o permita!… A Dama soltou uma gargalhada cristalina: — Camila, sangue do meu sangue! Não leste as partes que faltam!… O ritual está incompleto. Aproxima-te da luz! Vejo que trouxeste o pergaminho com o círculo mágico, o que te mostrei, a ti e só a ti: expõe-no à luz! Camila ergueu o pergaminho com o círculo cabalístico e aproximou-o do foco de luz ofuscante, mas Gustavo teve uma súbita intuição e exclamou: — Não, Camila! Espera! Não sabemos que efeito pode ter este foco de luz concentrada! Deixa-me experimentar primeiro. Colocou-se diante do foco daquela luz fortíssima, a recebê-lo em cheio no rosto e no peito, e no mesmo instante ficou como que paralisado. O riso da Dama tornou-se mais intensivo, e triunfante: — Para que o ritual se complete, e Yog-Sothoth se manifeste plenamente nesta nossa dimensão, e o meu querido e condenado amor Luiz António, ou Joseph Curwen, ressurja dos mortos e volte aos meus braços para sempre, é necessário que seja sacrificado um animal inteligente, com efusão de sangue! E que melhor sangue que o meu sangue e teu, Camila, sangue do meu sangue? Camila compreendeu, horrorizada, que era a ela que a Dama se referia, correu para se refugiar nos braços de Gustavo, mas o major, como que hipnotizado pelo foco de luz, voltou-se para ela, devagar, fitando-a com olhos vidrados e inexpressivos, desembainhou o sabre de lâmina coruscante e apontou-a na direcção de Camila. Camila estacou de súbito com um grito, o choque da surpresa fê-la cair de joelhos diante do major, sem forças, e estendeu as mãos com o pergaminho e a esfera de cristal a implorar clemência. Gustavo ergueu o sabre como se fosse um cutelo, pronto a degolá-la. A Dama continuou a rir-se: — O círculo mágico, Camila! Ordeno-te que o ponhas à luz!… Não leste as frases completas, que têm duas negativas, aquilo é para ser feito e não para ser desfeito, por isso te trouxe aqui, preciso do teu sangue, para que eu e Luiz António voltemos dos mortos! E quanto ao que Deus não permita… o que estava lá escrito, e ficou em parte rasgado, era: Para que possamos realizar o rito blasfemo que Deus não permite! Camila, arquejante, com as lágrimas a escorrerem-lhe pela face, apanhada entre as terríveis vibrações do riso da Dama e a ameaça de Gustavo percebeu que o espelho negro era o Umbral de entrada para o Inominável Reino das Sombras, donde sairiam Joseph Curwen, ou Luiz António, e quem sabe que coisas mais — quando o ritual se completasse com sangue… o seu próprio sangue! Camila tentou recuar, rastejando de joelhos, as lágrimas a desfocarem-lhe a vista, e Gustavo a avançar para ela com uma determinação fria, luciferina, de sabre erguido e dentes cerrados, os olhos febris como brasas, preparando-se para vibrar o golpe fatal. Camila raciocinava a todo o vapor: «Duas negativas… o que deve ser feito e o que não deve ser feito… como era a frase? …pelas Leis dos Antigos, não ponhas o cristal adiante quatro estrelas sete cruzes… O pergaminho… Tem quatro estrelas nos cantos, e sete cruzes no círculo mágico… Ah! Para inverter o processo, é preciso fazer o que ela não quer que se faça, pôr o cristal adiante das quatro estrelas sete cruzes!» Reunindo as débeis forças que lhe restavam, e quando já ouvia o silvo da lâmina fendendo os ares prestes a atingir-lhe a garganta, pôs a esfera de cristal lenticular diante do foco de luz, e o pergaminho com o círculo à frente; a lente funcionou como um dispositivo óptico e a imagem do círculo mágico projectou-se, invertida, sobre o quadro da Dama. A Dama soltou um grito e no mesmo instante começou a desfazer-se, como os demais componentes do quadro, numa pulverização luminosa, azul-prateada e purpúrea, excepto o tremendo rectângulo do espelho negro que ficou isolado no centro da parede, qual porta para um imensurável mundo de trevas. O major largou o sabre que caiu no chão retinindo com estridência; ajoelhou-se junto de Camila e fechou a cara nas mãos, a tremer e a respirar numa ânsia como se quisesse absorver todo o ar do mundo. Uma ventania furiosa levantou-se, varrendo tudo: o nevoeiro, as neblinas, as colunas, as pontes, as imagens de pedra, Yog-Sothoth e os monstros que já percorriam de lés-a-lés a medonha cidade adimensional que se centrava no retorcido Passeio Público, foram puxados e sorvidos por um ciclone irresistível que os precipitou através do negro Portal do espelho, sumiram-se completamente engolidos, o espelho negro fechou-se e todo aquele espaço-tempo desapareceu… ou antes, sofreu uma nova transformação. Quando conseguiram refocar os olhos, distender os nervos tensos e recobrar o alento, Gustavo e Camila circularam a vista a toda a volta e estavam na mesma viela onde tinham ido às dez horas da noite; a chuva miudinha caía de novo, em vez do nevoeiro, e num terreirinho ao fundo da rua da Alcaçaria estacionava o landau com o cocheiro Marcelino semi-adormecido à boleia, esperando-os pachorrentamente. Os três rufiões, empunhando facas de sangrar porcos, olhavam-nos esgazeados, o que quer que acontecera entretanto devia tê-los enlouquecido de pavor: deixaram cair as facas ao chão e fugiram pela viela acima, desaparecendo nas nebulosidades da cacimba. Ainda um pouco trémulos, mas com as pulsações enfim já um tanto normalizadas, Gustavo e Camila respiraram fundo, olharam um para o outro e absurdamente começaram a rir-se. — Obrigado, Camila! — disse Gustavo. — Obrigado pela inspiração, e pela rapidez do teu raciocínio! Camila aconchegou o capuz, a proteger-se da poalha irritante da chuva, deu-lhe o braço e observou, enquanto caminhavam em direcção ao landau: — Daqui a três dias é Natal… seria uma desgraça se eles tivessem conseguido levar avante o seu intento maldito… — Temos de contar esta aventura ao professor… Achas que nos acreditará? — Não sei… apesar das alquimias dele, é mais céptico do que parece. E agora, que estamos mais descansados… bom, tenho uma proposta a fazer-te! — Fico ansioso por ouvi-la! — disse Gustavo, sorrindo. — Convido-te para um jantar de Natal… só a dois!, na minha quinta de Bucelas! — Óptimo, nessa tua quinta poderemos jantar sem formalidades!… Aliás a tua criada de Bucelas… a Anastácia… — Engrácia! Nunca te lembras. — A Engrácia… além de nos conhecer há muito tempo, é uma cozinheira sem rival. — Vou cancelar os meus enfadonhos compromissos natalícios, para podermos estar sozinhos. Que pratos preferes? — Na tua companhia, Camila, quaisquer pratos me servem, desde que sejam confeccionados pela Engrácia! — Então, para começar, talvez ostras à prussiana, e depois petits vol-au-vents aux crevettes, ou galantine de chapon truffée… A não ser que prefiras croquetes de veau au parmésan? — Sim, querida, tudo isso, mais um daqueles doces que são a especialidade da Engrácia… — Ah! Pudim de laranja e fatias da China… ou talvez pudim <i

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More

Discover more from Revista Bang!

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading