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Com a manhã chega a neblina por George R. R. Martin – Art work Leo Laduch

Conto nomeado para os prémios Hugo e Nébula Título original: With Morning Comes Mistfall / Tradução: Rita Guerra

Levantei-me cedo para o pequeno almoço, nessa manhã, no primeiro dia depois de termos aterrado.
Mas Sanders já se encontrava na varanda da sala de jantar, quando lá cheguei. Estava de pé, sozinho, junto à sua extremidade, olhando para o exterior, sobre as montanhas e a neblina.

Aproximei-me por trás dele e balbuciei um cumprimento. Ele não se deu ao trabalho de responder.
— É lindo, não é? — disse, sem se voltar.

E era.

A poucos metros abaixo da varanda, a neblina rolava, enviando ondas fantasmagóricas contra as pedras do castelo de Sanders. Um espesso tapete branco estendia-se, de horizonte a horizonte, cobrindo tudo. Podíamos ver o cume do Fantasma Vermelho, a norte; um punhal dentado de rocha escarlate que se lança contra o céu. Mas era tudo. As restantes montanhas continuavam abaixo do nível da neblina.
Mas nós estávamos sobre ela. Sanders tinha construído o seu hotel no topo da mais alta montanha da cordilheira. Nós flutuávamos, sozinhos, num rodopiante oceano branco, num castelo voador por entre um mar de nuvens.

Castelo Nuvem - Leo Laduch
Castelo Nuvem -Leo Laduch

Castelo Nuvem, realmente. Fora esse o nome que Sanders dera ao local. Era fácil compreender porquê.
— É sempre assim? — perguntei a Sanders, depois de ter bebido a paisagem durante algum tempo.
— Sempre que cai a neblina — respondeu, voltando-se para mim com um sorriso melancólico. Ele era um homem gordo, de rosto encarnado e jovial. Não o tipo de pessoa que deveria sorrir melancolicamente.
Mas fazia-o.
Fez um gesto para leste, onde o sol do Planeta Espectro, que se erguia sobre a neblina, gerava um espectáculo carmesim e laranja no céu da madrugada.
— O Sol — disse. — À medida que se ergue, o calor impele a neblina para os vales, força-a a render-se às montanhas que conquistou durante a noite. A neblina afunda-se e, um a um, os picos vão-se tornando visíveis. À tarde, toda a cordilheira é visível por quilómetros e quilómetros. Não há nada igual na Terra, nem em qualquer outro lugar.
Ele voltou a sorrir, e guiou-me a uma das mesas espalhadas em redor da varanda.
— E depois, com o pôr-do-sol, acontece o inverso. Esta noite tem de ver o erguer da neblina — disse ele. Sentámo-nos e, assim que as cadeiras registaram a nossa presença, um esguio criado robô rolou para nos servir. Sanders ignorou-o.
— É uma guerra, sabe — continuou. — Uma guerra eterna entre o Sol e a neblina. E a neblina tem levado a melhor. Controla os vales, as planícies e as costas marítimas. O Sol controla apenas alguns topos montanhosos. E, mesmo assim, só durante o dia.
Voltou-se para o criado robô e pediu café para os dois, para nos manter ocupados até os outros chegarem. Seria café acabado de fazer, claro. Sanders não tolerava instantâneos e sintéticos naquele planeta.

Sanders - Leo Laduch
Sanders – Leo Laduch

— Gosta disto — disse eu, enquanto esperávamos pelo café.
Sanders riu.

— Porque é que não haveria de gostar? O Castelo Nuvem tem tudo. Boa comida, entretenimento, jogo e todos os outros confortos da nossa casa. Para além deste planeta. Tenho o melhor de dois mundos, não tenho?
— Suponho que sim. Mas a maior parte das pessoas não pensa nesses termos. Ninguém vem ao Planeta Espectro pelo jogo ou pela comida.
Sanders acenou.
— Mas recebemos alguns caçadores. Vindos em busca de gatos-de-pedra e demónios das planícies. E, uma vez por outra, vem alguém para ver as ruínas.
— Talvez — disse. — Mas esses são a excepção. Não a regra. A maior parte dos seus hóspedes está aqui apenas por uma razão.
— Claro — admitiu ele, sorrindo. — Os espectros.
— Os espectros — ecoei. — Aqui existe beleza, caça, pesca e montanhismo. Mas nada disso traz até aqui turistas.
Eles vêm pelos espectros.
O café chegou nessa altura, duas grandes canecas fumegantes acompanhadas por um recipiente com natas espessas. Era muito forte, muito quente e muito bom. Depois de semanas passadas a consumir produtos sintéticos na nave espacial, era um despertar.
Sanders bebericou o café com cuidado, os olhos a estudar-me por cima da caneca. Pousou-a, pensativo. — E também foi pelos espectros que veio — disse.
Encolhi os ombros.
— Claro. Os meus leitores não estão interessados na paisagem, por muito espetacular que seja. Dubowski e os seus
homens vieram em busca de espectros e eu vim para cobrir a sua demanda.
Sanders estava prestes a responder, mas não teve hipótese. Uma voz aguda e precisa interrompeu-nos, de forma
súbita.

Dr. Charles Dubowski - Leo Laduch
Dr. Charles Dubowski – Leo Laduch

— Se existirem espectros para encontrar — disse a voz. Voltámo-nos para a entrada da varanda. O Dr. Charles Dubowski, director da Equipa de Investigação do Planeta Espectro, encontrava-se junto à porta, semicerrando os olhos devido à luminosidade. Tinha conseguido escapar ao bando ruidoso de assistentes de investigação que, normalmente, o seguiam para todo o lado.
Dubowski parou por um segundo, depois avançou até à nossa mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O criado robô rolou até nós mais uma vez.
Sanders fitou o cientista magro com um desagrado que não escondia.
— O que o faz pensar que não existam espectros, Doutor? — perguntou ele.
Dubowski encolheu os ombros e sorriu, levemente.
— Sinto apenas que não existem provas suficientes — disse. — Mas não se preocupe. Nunca deixo que os meus sentimentos interfiram com o meu trabalho. Se os seus espectros estiverem por aí, encontrá-los-ei.
— Ou eles encontrá-lo-ão a si, Doutor — disse Sanders. Assumira uma expressão séria. — E isso poderá não ser assim tão agradável.
Dubowski riu.

— Oh, vamos, Sanders! Só porque vive num castelo, isso não quer dizer que tenha de ser tão melodramático.
— Não se ria, Doutor. Os espectros já mataram pessoas antes, sabe.
— Não há provas disso — disse Dubowski. — Provas nenhumas. Tal como não existem provas da existência dos próprios espectros. Mas é por isso que aqui estamos. Para encontrar provas da sua existência. Ou não existência. Mas vamos, estou faminto. — Voltou-se para o nosso criado robô, que se tinha mantido à espera e trauteava impacientemente.
Eu e Dubowski pedimos bifes de gato-de-pedra com um cesto de pãezinhos quentes, acabados de fazer. Sanders aproveitara-se dos mantimentos terrestres que a nossa nave trouxera na noite anterior, e ficara com uma enorme fatia de fiambre e meia dúzia de ovos.
Gato-de-pedra tem um sabor que a carne da Terra já não tem há séculos. Adorei-o, embora Dubowski tivesse deixado grande parte do seu bife. Estava demasiado ocupado a falar para poder comer.
— Não devia afastar os espectros com tanta leviandade — disse Sanders, depois de o criado robô se ter afastado com os nossos pedidos. — Existem provas. Bastantes. Vinte e duas mortes desde que este planeta foi descoberto. E dezenas de relatos de espectros apresentados por testemunhas.
— É verdade — disse Dubowski. — Mas eu não lhes chamaria verdadeiras provas. Mortes? Sim. No entanto, a maioria não passa de desaparecimentos. Talvez pessoas que tenham caído de uma montanha, sido comidas por um gato-de-pedra ou assim. É impossível descobrir os corpos no meio da neblina.
» Desaparecem mais pessoas na Terra, todos os dias, e não se fala disso. Mas aqui, sempre que alguém desaparece, as pessoas dizem que foi apanhado pelos espectros. Não, lamento. Não chega.
— Já foram encontrados corpos, Doutor — disse Sanders, calmamente. — Horrivelmente mutilados. E não devido a quedas ou gatos-de-pedra.
Foi a minha vez de interromper.
— Só foram recuperados quatro corpos, que eu saiba — disse. — E informei-me bastante em relação aos espectros.
Sanders franziu o sobrolho.
— Está bem — admitiu. — Mas e quanto a esses quatro casos? São provas bastante convincentes, se querem a minha opinião.
A comida apareceu, mais ou menos nessa altura, mas Sanders prosseguiu enquanto comíamos.
— O primeiro avistamento, por exemplo. Nunca foi explicado de forma satisfatória. A Expedição Gregor. Acenei. Dave Gregor tinha capitaneado a nave que descobrira o Planeta Espectro, quase setenta e cinco anos antes. Tinha analisado as neblinas com os seus sensores e pousado a nave nas planícies da orla costeira. Depois enviou equipas em missão exploratória.
Cada equipa incluía dois homens, ambos bem armados. Mas num dos casos, só um dos homens regressou e estava histérico. Ele e o companheiro tinham-se separado na neblina e, de súbito, ouviu um grito de gelar o sangue. Quando encontrou o amigo, este estava morto. E algo se erguia sobre o corpo.
O sobrevivente descreveu o assassino como semelhante a um homem, com dois metros e quarenta, e uma aparência algum insubstancial. Alegou que, quando disparou contra ele, o raio o atravessou. Depois, a criatura tremeluziu e desapareceu na neblina.
Gregor enviou outras equipas em busca da criatura. Conseguiram recuperar o corpo, mas foi tudo. Sem instrumentos especiais, era difícil encontrar o mesmo local duas vezes, no meio da neblina. Quanto mais algo como a criatura que tinha sido descrita.
Portanto, a história nunca foi confirmada. Mas, ainda assim, provocou sensação quando Gregor regressou à Terra. Uma outra nave foi enviada para realizar uma busca mais detalhada. Não descobriu nada. Mas uma das suas equipas desapareceu sem deixar rasto.
E, assim, a lenda dos espectros da neblina nasceu e começou a crescer. Vieram outras naves ao Planeta Espectro, alguns colonos chegaram e partiram, Paul Sanders aterrou, um dia, e erigiu o Castelo Nuvem para que o público pudesse visitar com segurança o misterioso Planeta Espectro.
E ocorreram outras mortes, outros desaparecimentos e muitas pessoas alegaram terem conseguido breves vislumbres de espectros que se deslocavam por entre a neblina. E, depois, alguém descobriu as ruínas. Agora nada mais do que blocos de pedra caídos. Mas, outrora, estruturas de um qualquer tipo. As casas dos espectros, diziam as pessoas.
Havia provas, pensei. E algumas eram difíceis de negar. Mas Dubowski abanava vigorosamente a cabeça.
— O caso Gregor nada prova — disse ele. — Sabe tão bem como eu que este planeta nunca foi explorado de forma sistemática. Em especial a zona das planícies, onde a nave de Gregor aterrou. O mais certo é que um qualquer animal tenha morto esse homem. Um qualquer animal raro, nativo da zona.
— E quanto ao testemunho do companheiro? — perguntou Sanders.
— Histeria, pura e simples.
— Os outros avistamentos? Têm ocorrido muitos. E as testemunhas nem sempre estavam histéricas.
— Não prova nada — disse Dubowski, abanando a cabeça. — Na Terra muitas pessoas continuam a dizer que vêem fantasmas e discos voadores. E aqui, com toda esta neblina maldita, os enganos e as alucinações são, naturalmente, ainda mais fáceis.
Apontou para Sanders com a faca que estava a usar para barrar de manteiga o pãozinho.
— É esta neblina que empesta tudo. O mito dos espectros teria morrido há muito não fora pela neblina. Até agora, ninguém teve o equipamento nem o dinheiro necessários para conduzir uma investigação verdadeiramente exaustiva. Mas nós temos. E nós vamos. Chegaremos à verdade, de uma vez por todas.
Sanders sorriu.
— Se não se matarem primeiro. Os espectros podem não gostar de serem investigados.
— Não o compreendo, Sanders — disse Dubowski. — Se tem tanto medo dos espectros e está tão convencido que eles vagueiam lá em baixo, porque é que vive aqui há tanto tempo?
— O Castelo Nuvem foi construído com algumas salvaguardas — disse Sanders. — A brochura que enviamos aos nossos possíveis hóspedes descreve-as. Aqui, ninguém corre perigo. Por um lado, os espectros não saem da neblina. E nós passamos a maior parte do dia ao sol. Mas, nos vales, a história é outra.
— Isso são disparates supersticiosos. Se tivesse de adivinhar, diria que estes vossos espectros não passam de fantasmas terrestres transplantados. Criações fabulosas da imaginação de alguém. Mas eu não sou adivinho, vou esperar até que cheguem os resultados. Nessa altura, veremos. Se eles forem reais, não serão capazes de se esconder de nós.
Sanders olhou para mim.
— E quanto a si? Concorda com ele?
— Sou jornalista — disse, com cuidado. — Só vim para cobrir os acontecimentos. Os espectros são famosos e os meus leitores estão interessados. Por isso não tenho opinião. Ou, pelo menos, uma que queira transmitir.
Sanders caiu num silêncio despeitado e atacou o fiambre e os ovos com um vigor renovado. Dubowski tomou-lhe o lugar e levou a conversa para os detalhes da investigação que estava a planear. O resto da refeição foi uma colagem de afirmações entusiasmadas sobre armadilhas para espectros, planos de pesquisa, sondas robóticas e sensores. Eu ouvi com atenção e tomei notas mentais para redigir uma coluna sobre o tema.
Sanders também ouviu com atenção. Mas era possível perceber-se, pelo seu rosto, que estava longe de estar agradado com o que ouvia.

 

Nesse dia não aconteceu muito mais. Dubowski passou o tempo no aeroporto espacial construído num pequeno planalto, logo abaixo do castelo, e supervisionou a descarga do seu equipamento. Eu escrevi uma coluna sobre os seus planos para a expedição e enviei-a para a Terra. Sanders cuidou dos outros hóspedes, e fez todas as outras coisas que o gerente de um hotel faz, suponho.
Voltei à varanda, ao pôr-do-sol, para assistir ao erguer da neblina. Tratava-se de uma guerra, tal como dissera Sanders. Ao
cair da neblina, vira o Sol vitorioso, na primeira das batalhas do dia. Mas agora o conflito era renovado. A neblina começava a subir às alturas, à medida que a temperatura descia. Os seus cremosos tendões de um cinzento esbranquiçado erguiam-se silenciosamente dos vales e enrolavam-se em redor dos picos irregulares das montanhas como dedos fantasmagóricos. Depois, os dedos começaram a ficar mais grossos e mais fortes e, passado algum tempo, puxaram a neblina atrás de si.
Um a um, os cumes rígidos, gravados pelo vento, foram engolidos para mais uma noite. O Fantasma Vermelho, o gigante a norte, foi a última montanha a desaparecer no revolto oceano branco. E, depois, a neblina começou a jorrar sobre a varanda e a fechar-se em redor do próprio Castelo Nuvem.
Voltei para dentro. Sanders estava ali, logo do outro lado das portas. Tinha estado a observar-me.
— Tinha razão — disse eu. — Foi lindo.
Ele acenou.
— Sabe, não acho que o Dubowski já se tenha dado ao
trabalho de olhar — disse ele.
— Está ocupado, suponho.
Sanders suspirou.
— Demasiado ocupado. Vamos. Pago-lhe um copo.
O bar do hotel era calmo e escuro, com o tipo de ambiente que promove a boa conversa e o grande consumo. Quanto mais via do castelo de Sanders, mais gostava do homem. Os nossos gostos eram espantosamente parecidos.
Procurámos uma mesa na parte mais escura e resguardada da sala e escolhemos as nossas bebidas de uma carta que incluía licores vindos de uma dúzia de planetas. E conversámos.
— Não parece muito feliz por Dubowski aqui estar — disse eu, depois de nos terem sido trazidas as bebidas. —
Porquê? Está a encher-lhe o hotel.
Sanders levantou os olhos da bebida e sorriu.
— É verdade. Estamos na época morta. Mas não gosto do que ele está a tentar fazer.
— Então tenta assustá-lo para que se vá embora?
O sorriso de Sanders desapareceu.
— Fui assim tão transparente?
Acenei.
Ele suspirou.
— Não pensei que funcionasse — disse ele. Deu um gole na sua bebida, pensativo. — Mas tinha de tentar qualquer coisa.

— Porquê?
— Porque… Porque ele vai destruir este mundo, se eu o deixar. Quando ele e os da sua laia terminarem, não restará
um único mistério no universo.
— Ele só está a tentar descobrir as respostas. Os espectros existem? E quanto às ruínas? Quem as construiu? Nunca quis saberessas coisas, Sanders?

Ruínas

Ele acabou a bebida, olhou à sua volta e fez sinal à empregada para que lhe levasse outra. Ali não havia robôs. Só
empregados humanos. Sanders era exigente em relação ao
ambiente.
— Claro — disse, quando recebeu a sua bebida. — Todos se fazem essas perguntas. É por isso que as pessoas vêm
ao Planeta Espectro, ao Castelo Nuvem. Cada tipo que aqui aterra espera, em segredo, ter uma aventura com os espectros e descobrir por si essas respostas.
» Mas não descobre. Agarra numa arma e vagueia pelas florestas imersas na neblina durante alguns dias, ou algumas semanas, e não descobre nada. E depois? Pode voltar e procurar mais um pouco. O sonho ainda lá está, bem como o romance e o mistério.
» E, quem sabe? Talvez numa das suas viagens, consiga um vislumbre de um espectro a deslizar por entre a neblina. Ou algo que julga ser um espectro. E então regressará a casa feliz, porque fez parte da lenda. Tocou num pedaço da criação a que ainda não foi arrancado todo o espanto e maravilha por tipos como Dubowski.
Caiu no silêncio e fitou melancolicamente a bebida. Por fim, depois de uma longa pausa, continuou.
— Dubowski! Bah! Faz-me ferver. Vem para aqui com a sua nave cheia de lacaios, um fundo de milhões de crédito e todos os seus aparelhómetros, para caçar espectros. Oh, ele vai apanhá-los, vai! Isso é que me assusta. Ou prova que não existem ou descobre-os e eles vão revelar tratar-se de um qualquer tipo de sub-homens, animais ou algo assim.
Voltou a esvaziar o copo, selvaticamente.
— E isso vai arruinar tudo. Arruinar, está a ouvir! Vai responder a todas as perguntas com os seus aparelhómetros e não vai sobrar mais nada para ninguém. Não é justo.
Permaneci imóvel, fui bebendo, com calma, a minha bebida e nada disse. Sanders pediu mais uma. Um mau pensamento corria na minha mente. Por fim, tive de o dizer em voz alta.
— Se Dubowski responder a todas as questões — disse eu —, então não haverá qualquer razão para as pessoas continuarem a vir aqui. E será levado à falência. Tem a certeza de que não é esse o motivo de tanta preocupação?
Sanders fitou-me de olhos bem abertos e, por um segundo, pensei que ele me ia bater. Não o fez.
— Pensei que era diferente. Viu o cair da neblina e compreendeu. Pelo menos, pensei que tinha compreendido. Mas parece que estava enganado.
Fez um sinal com a cabeça em direcção à porta.
— Saia daqui — disse ele.
Levantei-me.
— Está bem — disse eu. — Lamento, Sanders. Mas faz parte do meu trabalho colocar questões difíceis como esta.
Ele ignorou-me e eu saí da mesa. Quando cheguei à porta, voltei-me e olhei para o outro lado da sala. Sanders fitava mais uma vez o copo e falava consigo mesmo em voz alta.
— Respostas — dizia ele. Fazia com que a palavra soasse obscena. — Respostas. Têm sempre que ter respostas. Mas as questões são muito melhores. Porque é que não as deixam em paz?
Nessa altura, deixei-o sozinho. Sozinho com as suas bebidas.

As semanas seguintes foram agitadas, para a expedição e para mim. Dubowski fazia tudo com grande cuidado, havia que o dizer. Tinha planeado aquele assalto ao Planeta Espectro com uma precisão meticulosa.
Primeiro foi o mapeamento. Graças à neblina, os poucos mapas do Planeta Espectro que existiam eram muito rudimentares, tendo em conta os padrões modernos. Por isso Dubowski enviou toda uma frota de sondas robotizadas, para deslizarem sobre a neblina e roubarem os seus segredos com a ajuda de sofisticados aparelhos sensórios. A partir da informação que começou a jorrar, foi gerada uma topografia detalhada da região.
Tendo terminado, Dubowski e os seus assistentes utilizaram os mapas para situar todos os avistamentos de espectros desde a Expedição Gregor. Claro que o considerável volume de dados sobre os avistamentos já tinha sido compilado e analisado muito antes da partida da Terra. O recurso à colecção incomparável sobre espectros existente na biblioteca do Castelo Nuvem preencheu as lacunas que restavam. Como seria de esperar, os avistamentos eram mais frequentes nos vales em redor do hotel, a única habitação humana permanente do planeta.
Quando o levantamento ficou concluído, Dubowski colocou as suas armadilhas para espectros, espalhando-as pelas áreas onde os espectros tinham sido avistados com maior frequência. Contudo, colocou também algumas em regiões mais distantes e remotas, incluindo a planície junto à costa onde a nave de Gregor estabelecera o contacto inicial.
As armadilhas não eram armadilhas a sério, claro. Tratavam-se de pilares baixos e grossos, em duralloy, equipados
com quase todo o tipo de equipamento sensitivo e de gravação conhecido pela ciência terrestre. Para as armadilhas era
como se a neblina não existisse. Se um qualquer espectro incauto vagueasse através do seu raio de alcance, não haveria forma de evitar ser detectado.
Entretanto as sondas robóticas de mapeamento foram chamadas para serem inspeccionadas, reprogramadas e reenviadas. Com a topografia conhecida com todo o detalhe, as sondas podiam ser enviadas através da neblina, ou em patrulhas de baixo nível, sem medo de embaterem contra uma montanha escondida. O equipamento sensitivo transportado pelas sondas não era, claro, igual ao existente nas armadilhas de espectros. Mas as sondas tinham um raio de alcance muito maior e podiam cobrir várias centenas de quilómetros quadrados por dia.
Por fim, quando as armadilhas de espectros foram colocadas e as sondas robóticas se encontravam no ar, Dubowski e os seus homens enveredaram, eles mesmos, pelas florestas imersas na neblina. Cada um deles transportava uma mochila carregada de sensores e aparelhos de deteção. As equipas de busca humanas tinham maior mobilidade dos que as armadilhas para espectros e equipamento mais sofisticado do que as sondas. Cobriam uma área diferente a cada dia, com meticuloso detalhe.
Acompanhei-os em algumas dessas viagens, com uma mochila minha. Gerou alguns textos interessantes, embora nunca tenhamos encontrado nada. E, enquanto me encontrava naquelas buscas, apaixonei-me pelas florestas imersas na neblina.

A literatura para turistas gosta de lhes chamar “as tenebrosas florestas imersas na neblina do assombrado Planeta
Espectro”. Mas não são tenebrosas. Não de verdade. Existe nelas uma estranha beleza, para aqueles que são capazes de a apreciar.


As árvores são finas e muito altas, de casca branca e folhas de um verde-pálido. Mas as florestas não são incolores. Existe um parasita, um qualquer tipo de musgo, que é muito comum, e que pinga dos ramos mais altos em cascatas de verde-escuro e escarlate. E há rochas e videiras, e arbustos baixos abafados por deformados frutos purpúreos.
Mas não há sol, claro. A neblina esconde tudo. Revolteia e desliza em nosso redor, enquanto andamos, acariciando-nos com mãos invisíveis, agarrando-se aos nossos pés.
De vez em quando, a neblina brinca connosco. A maior parte do tempo avançamos através de um nevoeiro espesso, incapazes de ver mais do que algumas dezenas de centímetros em qualquer direcção, os nossos próprios sapatos perdidos no tapete de neblina. Contudo, ocasionalmente, o nevoeiro cerra-se. E, então, não conseguimos ver absolutamente nada. Choquei com mais do que uma árvore quando isso aconteceu.
No entanto, noutras ocasiões, a neblina — sem razão aparente — afasta-se, deixando-nos sós, numa bolsa límpida
no meio de uma nuvem. É nessa altura que podemos ver a floresta em toda a sua beleza grotesca. Trata-se de um vislumbre breve e fascinante de uma terra do nunca. Momentos como este são raros e curtos. Mas permanecem connosco.
Permanecem connosco.
Nessas primeiras semanas, não tive muito tempo para passear na floresta, a não ser quando me juntava a uma das equipas de investigação, para melhor as compreender. Acima de tudo, ocupava-me a escrever. Fiz uma série sobre a história do planeta, cujos pontos altos eram as narrativas dos avistamentos mais famosos. Apresentei também perfis de alguns dos membros mais interessantes da expedição. Fiz uma peça sobre Sanders e os problemas que enfrentou e superou durante a construção do Castelo Nuvem. Fiz peças científicas sobre o pouco que se sabe da ecologia do planeta. Fiz peças de ambiente sobre as florestas e as montanhas. Fiz peças de pensamento especulativo sobre as ruínas. Escrevi sobre a caça ao gatos-de-pedra e sobre a escalada das montanhas, e sobre os enormes e perigosos lagartos dos pântanos nativos de algumas ilhas próximas da costa.
E claro, escrevi sobre Dubowski e a sua demanda. Sobre isso escrevi resmas.
No entanto, por fim, a investigação começou a cair numa rotina monótona e eu comecei a esgotar a miríade de outros tópicos que o Planeta Espectro tinha para oferecer. A minha produção começou a decair. Comecei a ter tempo livre.

Foi então que comecei a apreciar, de facto, o Planeta Espectro. Comecei a passear pelas florestas todos os dias, afastando-me cada vez mais. Visitei as ruínas e voei através de meio continente para ver os lagartos do pântano em primeira mão, em vez de o fazer através de reproduções holográficas.
Travei conhecimento com um grupo de caçadores de passagem e cacei um gato-de-pedra. Acompanhei um outro grupo de caçadores à costa ocidental e quase entreguei a vida a um demónio das planícies.
E comecei de novo a falar com Sanders. Durante todo este tempo Sanders tinha-nos, basicamente, ignorado, a mim, a Dubowski e a todos os envolvidos na investigação dos espectros. Falava connosco de má vontade, quando o fazia; saudava-nos rudemente e passava todo o seu tempo livre com outros hóspedes.
A princípio, depois da forma como falara naquela noite, no bar, temi o que pudesse fazer. Via-o a assassinar alguém no meio da neblina e a tentar apresentá-lo como uma morte por um espectro. Ou talvez se limitasse a sabotar as armadilhas dos espectros. Mas tinha a certeza de que ia fazer alguma coisa para assustar Dubowski ou para minar a expedição. Suponho que seja uma consequência da holovisão em excesso. Sanders não fez nada que se parecesse. Limitou-se a amuar, a fi tar-nos nos corredores do castelo e a dar-nos menos do que a total colaboração, em algumas situações.
Contudo, passado algum tempo, começou a tornar-se mais caloroso. Não em relação a Dubowski e aos seus homens.
Apenas em relação a mim.
Creio que se devesse aos meus passeios pela floresta. Dubowski nunca saía para a neblina, a menos que a isso fosse obrigado. E, mesmo nessas ocasiões, saía com relutância e regressava rapidamente. Os seus homens seguiam o exemplo do chefe. Eu era o jóquer do baralho. Se bem que não fizesse realmente parte do mesmo baralho.
Sanders reparou, claro. Ele não deixava escapar grande coisa do que se passava no castelo. E recomeçou a falar comigo. De
forma cordial. Certo dia, por fim, voltou a convidar-me para tomar uma bebida.
A expedição durava já há dois meses. O Inverno chegava ao Planeta Espectro e ao Castelo Nuvem e o ar estava a ficar frio
e seco. Eu e Dubowski estávamos na varanda da sala de jantar, demorando-nos com o café, depois de mais uma soberba refeição. Sanders estava sentado numa mesa próxima, a conversar com alguns turistas.
Não me recordo o que conversava com Dubowski. O que quer que fosse, Dubowski interrompeu-me com um arrepio, a
certa altura.
— Está a ficar frio aqui fora — queixou-se. — Porque não vamos para dentro? — Dubowski nunca gostara muito da varanda.
Franzi o sobrolho.
— Não está assim tão mau — disse. — Além disso, é quase pôr-do-sol. Uma das melhores partes do dia.
Dubowski voltou a tremer e levantou-se.
— Como queira — disse. — Mas eu vou para dentro. Não me apetece apanhar uma constipação, só para que possa ver mais um cair da neblina.
Começou a afastar-se. Mas não tinha dado nem três passos, quando Sanders saltou do lugar, uivando como um gato-de-pedra ferido.
— Cair da neblina — gritou. — Cair da neblina! — Lançou-se numa corrente longa e incoerente de obscenidades. Nunca vira
Sanders tão furioso, nem mesmo quando me expulsou do bar, naquela primeira noite. Estava de pé, literalmente a tremer de
raiva, o rosto vermelho, os punhos gordos fechando-se e abrindo-se ao lado do corpo.
Levantei-me à pressa e coloquei-me entre eles. Dubowski
voltou-se para mim, parecendo confuso e assustado.
— O que… — começou.
— Vá para dentro — interrompi. — Vá para o seu quarto.
Vá para o lounge. Vá para qualquer lado. Não interessa. Mas saia daqui antes que ele o mate.
— Mas… mas… o que se passa? O que aconteceu? Eu não…
— O cair da neblina ocorre de manhã — disse-lhe. — De noite, ao pôr-do-sol, é o erguer da neblina. Agora vá.
— É só isso? Porque é que isso o deixou tão… tão…
— Vá!
Dubowski abanou a cabeça como que para dizer que continuava sem perceber o que se estava a passar. Mas partiu.
Voltei-me para Sanders.
— Acalme-se — disse. — Acalme-se.
Ele parou de tremer, mas os olhos lançavam raios às costas de Dubowski.
— Cair da neblina — murmurou. — Aquele cretino já cá está há dois meses e continua sem saber a diferença entre o cair e o erguer da neblina.
— Nunca se deu ao trabalho de assistir a qualquer um deles — disse eu. — Esse tipo de coisas não lhe interessa. Mas quem perde é ele. Não há razão para que se deixe perturbar por isso.
Ele olhou para mim, franzindo o sobrolho. Por fim, acenou.
— Sim — disse. — Talvez tenha razão. — Suspirou. — Mas cair da neblina! Raios. — Houve um breve silêncio, depois — Preciso de uma bebida. Quer fazer-me companhia?
Acenei.
Acabámos no mesmo canto escuro da primeira noite, na que devia ser a mesa preferida de Sanders. Virou três bebidas antes que eu terminasse a minha primeira. Bebidas grandes. Tudo no Castelo Nuvem era grande.
Desta vez não houve discussões. Falámos sobre o cair da neblina, sobre as florestas e sobre as ruínas. Falámos sobre os espectros e Sanders contou-me, enamorado, as histórias dos grandes avistamentos. Já as conhecia a todas, claro. Mas não da
forma como Sanders as contava.
A certa altura, referi que tinha nascido em Bradbury, quando os meus pais estavam a passar umas férias curtas em Marte. Os olhos de Sanders iluminaram-se e ele passou quase uma hora a regalar-me com piadas sobre terráqueos. Também já as tinha
ouvido. Mas a bebida começava a fazer efeito e todas me pareceram hilariantes.
Depois dessa noite, passei mais tempo com Sanders do que com qualquer outra pessoa no hotel. Por essa altura, achava que já conhecia o Planeta Espectro bastante bem. Mas essa era uma presunção vazia e Sanders provou-mo. Mostrou-me recantos escondidos nas florestas que desde então me têm assombrado. Levou-me a pântanos nas ilhas, onde as árvores são muito diferentes e oscilam assustadoramente, mesmo sem vento. Voámos para norte, até outra cordilheira montanhosa, cujos picos são mais altos e cobertos de gelo, e para os planaltos a sul, sobre cujos limites a neblina escorre eternamente, numa fantasmagórica imitação de uma queda-d’água.


Continuei a escrever sobre Dubowski e a sua caça aos espectros, claro. Mas havia pouco de novo para escrever, por isso a maior parte do meu tempo era passada com Sanders. Não me preocupava muito com o resultado final. A minha série sobre o Planeta Espectro foi muito bem paga na Terra e na maior parte dos planetas colonizados, por isso pensei que podia descansar.

Não era bem assim.

Encontrava-me no Planeta Espectro há pouco mais de três meses quando recebi um contacto do meu sindicato. A alguns sistemas de distância, num planeta chamado Novo Refúgio, tinha rebentado uma guerra civil. Queriam que fosse cobrir a história. De qualquer forma não havia novidades no Planeta Espectro, diziam, já que a expedição de Dubowski só terminaria dali a um ano.
Por muito que gostasse do Planeta Espectro agarrei de imediato a oportunidade. As minhas histórias estavam a ficar mornas e eu estava a ficar sem ideias. Além disso, a história em Novo Refúgio tinha tudo para ser grande.
Assim, despedi-me de Sanders, de Dubowski e do Castelo Nuvem, dei um último passeio através das florestas imersas em
neblina e reservei a minha passagem na nave seguinte.

A guerra civil em Novo Refúgio não foi mais do que um estalinho. Passei menos de um mês naquele planeta, mas foi um mês terrível. O local tinha sido colonizado por fanáticos religiosos, mas o culto original tinha entrado em cisma e ambos os lados se acusavam de heresia. Era tudo muito lúgubre. O planeta, em si, tinha o encanto de um subúrbio marciano.
Avancei tão depressa quanto pude, saltando de planeta em planeta, de história em história. Passados seis meses, tinha trabalhado até regressar à Terra. As eleições estavam próximas, por isso deixei-me arrastar para o ritmo político. Por mim, tudo
bem. Foi uma campanha animada e havia uma tonelada de boas histórias para aproveitar.
Mas durante todo esse tempo, aguardava por notícias, por mais pequenas que fossem, vindas do Planeta Espectro. E, por fim, como esperara, Dubowski anunciou uma conferência de imprensa. Como especialista em espectros do sindicato, consegui que me escolhessem para cobrir a notícia e parti, na nave espacial mais rápida que consegui encontrar.
Cheguei uma semana antes da conferência, antes de todos os outros. Tinha contactado Sanders antes de entrar a bordo da
nave e ele foi buscar-me ao aeroporto espacial. Passámos para a varanda da sala de jantar e ali nos foram servidas as bebidas.
— Então? — perguntei-lhe, depois de termos trocado alguns cumprimentos. — Sabe o que Dubowski vai anunciar?
Sanders parecia muito soturno.
— Posso adivinhar — disse ele. — Recolheu todos os seus malditos aparelhómetros há um mês e tem estado a verificar os dados com um computador desde então. Tivemos alguns avistamentos de espectros desde a sua partida. Dubowski avançou horas depois de cada avistamento e passou as áreas a pente fino.
Nada. É isso que ele vai anunciar, acho eu. Nada.
Acenei.
— Mas será isso assim tão mau? Gregor não encontrou nada.
— Não é o mesmo — disse Sanders. — Gregor não procurou da mesma forma que Dubowski. As pessoas vão acreditar nele, diga o que disser.
Eu não tinha a mesma certeza e estava prestes a dizer-lho quando Dubowski chegou. Alguém lhe dissera que eu ali estava. Saiu para a varanda, a sorrir, viu-me e veio sentar-se.
Sanders olhou-o, depois começou a estudar a própria bebida. Dubowski dedicou-me toda a sua atenção. Parecia muito
feliz consigo mesmo. Perguntou-me o que tinha feito desde a minha partida, eu respondi-lhe e ele disse que era bom.
Por fim, perguntei-lhe sobre os seus resultados.
— Sem comentários — disse ele. — Foi por isso que convoquei a conferência de imprensa.
— Vá lá — disse. — Cobri-vos durante meses, quando todos os outros ignoravam a expedição. Não me pode dar nada?
O que é que tem para mim?
Ele hesitou.
— Bom, está bem — disse, sem grandes certezas. — Mas não o divulgue ainda. Pode transmiti-lo algumas horas antes da conferência. Deve ser o suficiente para um furo.
Acenei o meu acordo.
— O que é que tem para mim?
— Os espectros — disse. — Tenho os espectros, muito bem embrulhadinhos. Eles não existem. Tenho elementos suficientes para o provar para lá de qualquer dúvida. — Sorriu abertamente.
— Só porque não encontrou nada? — comecei. — Talvez o tenham evitado. Se forem sensíveis podem ser suficientemente
espertos. Ou talvez os seus sensores não tenham a capacidade para os detectar.
— Vamos — disse Dubowski. — Não acredita nisso. As nossas armadilhas para espectros tinham todo o tipo de sensores que conseguimos descobrir. Se os espectros existissem, elas teriam registado qualquer coisa. Mas não registaram. Tínhamos as armadilhas em locais onde ocorreram três dos supostos avistamentos de Sanders. Nada. Absolutamente nada. Provas conclusivas de que as pessoas estavam a ver coisas. Avistamentos, sem dúvida.
— E quanto às mortes, aos desaparecimentos? — perguntei. — E quanto à Expedição Gregor e outros casos clássicos? O sorriso dele alargou-se.
— Não pude provar que as mortes não ocorreram, claro. Mas as nossas sondas e os nossos investigadores descobriram quatro esqueletos. — Contou-os com os dedos. — Dois foram mortos por um deslizamento de terras, um tinha marcas de garras de gato-de-pedra nos ossos.
— O quarto?
— Homicídio — disse ele. — O corpo tinha sido enterrado numa cova pouco funda, sem dúvida por mãos humanas. Uma qualquer inundação expô-lo. Estou certo de que todos os outros corpos poderiam ser descobertos, se procurássemos durante
mais tempo. E descobriríamos que todos tinham tido mortes perfeitamente normais.
Os olhos de Sanders ergueram-se do copo. Eram olhos amargos.
— Gregor — disse, teimosamente. — Gregor e os outros clássicos.
O sorriso de Dubowski transformou-se num esgar.
— Ah, sim! Analisámos essa área com bastante cuidado.
A minha teoria estava correcta. Descobrimos nas proximidades uma tribo de macacos. Seres grandes e brutos. Como babuínos gigantes, de pelo branco sujo. Não era uma espécie de grande sucesso. Encontrámos apenas uma tribo e estão a morrer. Mas, sem dúvida, foi isso que o homem de Gregor viu. E exagerou consideravelmente as suas dimensões.
Houve um período de silêncio. Depois Sanders falou, a sua voz estava abatida.
— Só uma pergunta — disse, suavemente. — Porquê? Dubowski foi apanhado de surpresa e o seu sorriso desapareceu.
— Nunca compreendeu, pois, não, Sanders? — disse ele. — Pela verdade. Para libertar este planeta da ignorância e da superstição.
— Libertar o Planeta Espectro? — disse Sanders. — Ele estava escravizado?
— Sim — respondeu Dubowski. — Escravizado por um mito tolo. Pelo medo. Agora este planeta será livre, e aberto. Podemos descobrir a verdade por detrás das ruínas, sem lendas escusas sobre espectros semi-humanos a obscurecer os factos. Podemos abrir o planeta à colonização. As pessoas não terão medo de vir para cá, de aqui viver e montar as suas quintas. Conquistámos o medo.
— Uma colónia? Aqui? — Sanders parecia divertido. — Vão trazer grandes ventoinhas para afastar a neblina ou quê? Já antes os colonos vieram. E partiram. O solo não é adequado. Não se pode praticar aqui a agricultura, com todas estas montanhas. Pelo menos não a uma escala comercial. Não há como ter lucro cultivando coisas no Planeta Espectro.
» Além disso, há centenas de colónias a implorar por mais pessoas. Precisavam assim tanto de outra? Terá o Planeta Espectro que se tornar mais uma Terra?
Ele abanou a cabeça, com tristeza, terminou a bebida e continuou.
— É você quem não compreende, Doutor. Não se engane. Não libertou o Planeta Espectro. Destruiu-o. Roubou-lhe os espectros e deixou para trás um planeta vazio. Dubowski abanou a cabeça.
— Acho que está errado. Serão encontradas muitas formas boas e lucrativas de explorar este planeta. Mas, mesmo
que tenha razão, bem, paciência. O homem é conhecimento. As pessoas como o senhor têm tentado atrasar o progresso desde o início dos tempos. Mas falharam, tal como você falhou. O homem precisa de saber.
— Talvez — disse Sanders. — Mas será essa a única coisa de que o homem precisa? Não acho. Acho que também precisa de mistério, de poesia e de romance. Acho que precisa de algumas perguntas por responder para o fazer sonhar e imaginar.
Dubowski ergueu-se abruptamente e franziu o sobrolho.
— Esta conversa é tão inútil como a sua filosofi a, Sanders. No meu universo não há espaço para perguntas sem
resposta.
— Então vive num universo estéril, Doutor.
— E você, Sanders, vive imerso na sua própria ignorância. Descubra novas superstições, se precisa delas. Mas não tente impingir-mas com as suas historietas ou lendas.
Não tenho tempo para espectros. — Olhou para mim. — Vemo-nos na conferência de imprensa — disse. Depois, voltou-se e saiu rapidamente da varanda.
Sanders viu-o partir em silêncio, depois girou na sua cadeira e olhou para as montanhas.
— A neblina está a erguer-se — disse.

Sanders também estava errado em relação à colónia, como se veio a descobrir. Foi estabelecida uma, embora não fosse grande coisa. Algumas vinhas, algumas fábricas e algumas centenas de pessoas; tudo pertencente a um par de grandes empresas.
A agricultura comercial provou não ser lucrativa, sabem. Com uma excepção: uma uva nativa, uma coisa cinzenta e gorda, do tamanho de um limão. Por isso o Planeta Espectro tem apenas uma exportação: um vinho branco turvo, com um sabor doce e duradouro.
Chamam-lhe vinho-neblina, claro. Tornei-me fã ao longo dos anos. O sabor faz-me recordar o cair da neblina. A maior parte das pessoas não gosta muito.
Ainda assim, é lucrativo, embora em pequena escala. Por isso o Planeta Espectro ainda é uma paragem regular nas viagens espaciais. Pelo menos para os cargueiros.
Mas os turistas partiram há muito. Sanders tinha razão em relação a isso. Paisagens podem encontrar mais perto de casa e por menor preço. Vinham pelos espectros.
Sanders também partiu. Foi demasiado teimoso e pouco prático para comprar uma parte da operação vitivinícola quando pôde. Por isso ficou para trás, nas muralhas do Castelo Nuvem até à última. Não sei o que lhe aconteceu depois, quando o hotel foi, por fim, encerrado.
O castelo em si ainda lá se encontra. Viu-o há alguns anos quando lá parei a caminho de uma história em Novo Refúgio. Mas já começa a ruir. A sua manutenção é demasiado dispendiosa. Dentro de poucos anos, será impossível distingui-lo das outras ruínas, as mais velhas.
Em tudo o resto o planeta pouco mudou. A neblina continua a erguer-se ao pôr-do-sol e a cair de madrugada. O Fantasma Vermelho continua a lançar-se para o alto, belo, na luz do início da manhã. As florestas ainda lá estão e os gatos-de-pedra continuam a vaguear.
Só os espectros desapareceram.
Só os espectros.

 

 

BANG!

 

 

 

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