Breve Curso de Escrita de Ficção Científica e Fantasia por Bruno Martins Soares
Curso em 4 partes. Primeira parte: DA FANTASIA À REALIDADE
Curso em 4 partes.
Primeira parte: DA FANTASIA À REALIDADE
Há um percurso mais longo e complexo do que se imagina entre o momento em que se tem a ideia de escrever um livro, um conto ou outro texto de ficção e o momento em que realmente se concretiza essa ideia que se começa a escrever verdadeiramente. É um percurso cheio de dúvidas e confusões. Uma simples ideia deverá evoluir para uma história. De que modo podemos pensar neste percurso e começar finalmente a escrever? O que nos pode ajudar? O que fazem os escritores profissionais?
DA IDEIA À HISTÓRIA
A primeira coisa que gostaria de vos dizer é que eu procuro sempre escrever aquilo que gosto de ler. Mas porque é que gostamos de ler ou de ver filmes, ou de escrever? Porque é que a ficção é algo de tão recompensador para nós? Desde a Antiguidade que se estuda este assunto, e gostaria de arriscar aqui algumas respostas.
Em primeiro lugar, aprendemos muito com a ficção. Todas as histórias se referem, de forma mais ou menos aproximada, de forma mais inteligente e sofi sticada ou de forma mais superfi cial, ao Drama Humano. Ou a esta questão curiosa e premente que é a existência: O que é isto de se ser pessoa e como resolver este problema? Na fi cção encontramos formulações e reformulações do Drama Humano. Identifi cando-nos com as personagens, experimentamos todo o tipo de situações e soluções. A ciência tende a categorizar os elementos. Tende a procurar padrões e teorias aplicáveis. A generalizar. A fi cção apanha o que está nas entrelinhas. A fi cção envolve-se no complicado, embrenha-se no complicado, estuda o complicado. Aquilo que é cinzento e colorido, não apenas o preto e o branco.
O nosso cérebro está preparado para aprender com histórias. Conseguimos empatizar de tal maneira com as personagens de fi cção que a nossa mente activa as mesmas partes do cérebro que activaria se estivéssemos nós próprios a experienciar as situações. E por isso rimos, choramos, sofremos, exultamos com as próprias personagens. Aquilo que o Aristóteles chamou de catarse.
Logo, podemos imaginar o que seria estar no Espaço, numa nave que avariou. Ou o que sentiríamos se nos encontrássemos com um extraterrestre. Ou se viajássemos no tempo até à Idade Média. Ou se nos apaixonássemos pela mulher do nosso melhor amigo. Ou se os nossos filhos morressem num acidente. Ou se fôssemos soldados nas trincheiras, ou índios nas planícies, ou náufragos no mar alto. A fi cção expande a nossa mente e leva-nos a aprender. Em particular, leva-nos a aprender o que é complicado no Drama Humano.
Como é, no entanto, a experiência de escrever? Será que aprendemos da mesma forma quando estamos nós próprios a escrever? Quando estamos à procura de uma história e desenvolvemos as nossas fantasias? Sem dúvida que sim. Na verdade, ainda mais do que se estivéssemos a ler. Pois escrever fi cção obriga-nos a um esforço ainda maior de empatia com as personagens. Obriga-nos a pesquisar e a explorar as situações de todos os modos e feitios. Obriga-nos a forçar o nosso saber até ao limite. As personagens ganham a sua própria personalidade e recusam-se muitas vezes a fazerem exactamente o que queríamos que fizessem. As personagens fazem o que querem fazer ou o que têm de fazer. Recusam o que não faz sentido. E nósaprendemos com elas.
Escrever, então, exige investimento. Mas é um investimento que, na minha opinião, pode trazer grande retorno. O que eu gostava de fazer nesta série de artigos é partilhar um pouco de como a escrita ocorre, falar de alguns conceitos que gostaria de ter conhecido quando estava a começar a escrever e encorajar ao máximo os leitores apaixonados a darem um passo em frente e aventurarem-se na escrita. Em particular esta coisa deliciosa que é a Escrita de Ficção Científica e Fantasia.
DO GIMMICK AO CONCEITO
Estou perfeitamente convicto de que na grande maioria das vezes a génese de um texto de ficção começa com a simples ideia de um gimmick. O que é um gimmick? É um truque, um artifício. Algo de especial e atraente que nos prende a atenção e que julgamos poder levar a uma história.Por exemplo: um homem que cai num buraco e vai parar a outra dimensão. Ou uma menina que cai num buraco e vai parar a uma terra de fantasia. Ou: E se houvesse uma terra onde um ser malévolo tivesse um anel que lhe dava o poder sobre outros seres e o tivesse perdido? Ou: E se houvesse um ser de outro mundo que se desenvolvesse dentro de nós como um parasita e saísse pela nossa barriga quando estivesse pronto a crescer? E se tivesse ácido nas veias? E se fosse um predador terrível?
Nenhuma destas ideias é uma história. Nem sequer é um conceito de uma história. É apenas um truque, um anzol, uma isca, uma ideia curiosa. Enfi m, um gimmick. Um gimmick típico é haver algo de especial que toda a gente anda à procura: um anel, uma espada mágica, uma informação vital, uma arma de destruição maciça, uma substância poderosa. Na gíria de Hollywood, este “algo” de que toda a gente (ou o herói) anda à procura chama-se um macguffin. Um bom macguffi n pode levar a um bom gimmick.
O anel de O Senhor dos Anéis é um exemplo. Outro exemplo é a Arca da Aliança em Os Salteadores da Arca Perdida. Ou o Santo Graal. Mas, como se pode ver nos exemplos do parágrafo anterior, nem todos os gimmicks são macguffins.
Algo como: «Americanos e nazis andam à procura da Arca da Aliança antes da Segunda Guerra Mundial» não é uma história. Nem sequer é um conceito para uma história. Falta um passo para que o seja. O conceito precisa de um protagonista e de um conflito.
Aconselho a que se comece normalmente com o que os especialistas chamam um high concept. Um high concept, ou alto conceito, é um conceito simples que podemos resumir numa ou duas frases. Nem todas as histórias têm por base um alto conceito. Rumo ao Farol de Woolf não tem um alto conceito. Nem tão-pouco O Adeus às Armas, de Hemingway. Ambos têm protagonistas e conflitos, e
portanto conceitos consistentes para serem histórias, mas não serão altos conceitos (nem sempre os textos de ficção são histórias – dou como exemplo o excelente conto «Kew Gardens», de Virginia Woolf). Porém, a maioria dos filmes que são produzidos hoje em dia, e a maioria dos livros de ficção que são escritos, têm por base altos conceitos. Isto porque estes são mais apelativos, mais fáceis de vender, mais fáceis de seguir, e normalmente mais fortes e mais interessantes (apesar das excepções – os textos de
Hemingway e Woolf que acabei de mencionar são dos melhores livros que já li).
Estes conceitos surgem nas descrições de livros e filmes. As blurbs nas costas dos livros ou as loglines nas listas de filmes em cartaz mostram-nos. Por exemplo:
a) Quando um grande tubarão branco começa a ameaçar a pequena comunidade de Amity, o chefe da polícia, um biólogo marinho e um pescador duro terão de o parar.
b) Um patriarca envelhecido de uma dinastia do crime organizado transfere o controlo do seu império clandestino ao seu relutante fi lho.
c) O arqueólogo aventureiro Indiana Jones é contratado pelo governo americano para encontrar a Arca da Aliança antes dos Nazis. Estes conceitos representam histórias que todos conhecemos bem. E são identifi cáveis e originais, como é apanágio dos bons altos conceitos.
DO CONCEITO À HISTÓRIA
É importante que os nossos gimmicks e os nossos altos conceitos sejam muito originais. Acredito piamente que um bom processo de escrita permite evitar bloqueios criativos. E investir em conceitos consistentes e gimmicks apelativos permite evitar bloqueios mais tarde. No entanto, mesmo tendo estes dois elementos, não temos ainda uma história. Aliás, este é um equívoco frequente e perigoso. Por vezes deparo-me com alguém que diz ter uma ideia para um livro ou um conto. Algo como: é a história de um homem que cai num buraco para outra dimensão onde tudo é cor-de-rosa e toda a gente é daltónica.
Esta ideia é absurda, mas até pode levar a uma boa história. Mas não é ainda uma boa história. Alguém que comece a escrever imediatamente a partir desta ideia terá grandes dificuldades em avançar. A única coisa que descrevi é um gimmick. Quem é o
protagonista? Um astronauta? Um arquitecto? Qual é o confl ito, ou o problema, de ter caído noutra dimensão? Que perigo corre? Etc. Responder a estas questões poderá levar a um bom conceito. Mas ainda não teremos uma história.
Para termos uma história, temos de ter uma estrutura, conhece as personagens principais, perceber o cenário, enfi m, todos os elementos fundamentais da história.
Segundo Brandon Sanderson, existem três tipos de escritores. Por um lado há os Outliners, que têm de ter toda a estrutura da narrativa determinada antes de começar a escrever. Por outro lado existem os Descobridores, que começam a escrever e vão montando os vários elementos à medida que avançam. Sanderson acredita, no entanto, e eu também, que a maioria dos bons escritores são um terceiro tipo, um misto dos dois: estão abertos a partir à descoberta, mas reconhecem a utilidade das estruturas pré-desenvolvidas.
Cada escritor terá o seu modo de trabalhar. No entanto, o essencial, para já, é perceber-se o seguinte: o processo tem de levar a uma história consistente, ou iremos parar a cada curva, deparando-nos com becos sem saída onde o desânimo é inevitável.
E uma história consistente exige um gimmick original, diferente, criativo, e um conceito sólido, de preferência umalto conceito. O meu melhor conselho, para quem está a começar, é o de não descansarem antes de conseguirem resumir toda a vossa história em duas
frases. Se investirem nisto à partida, já está meio caminho andado.