Na Comic-Con 2016, a 10 de dezembro, às 17h, na Exponor, Matosinhos, vai ser apresentada em exclusivo a nova edição do maior clássico da ficção científica portuguesa, Terrarium. Publicado pela primeira vez há 20 anos pela editora Caminho, o livro rapidamente tornou-se uma obra de culto e uma referência para os apreciadores do género. A Saída de Emergência recupera o clássico numa nova edição ampliada e revista pelos autores e aproveitou para entrevistar João Barreiros e Luís Filipe Silva sobre a nova edição. O livro estará à venda em todas as livrarias a partir de 27 de janeiro.
ENTREVISTA A JOÃO BARREIROS E LUÍS FILIPE SILVA
Há 20 anos, Terrarium foi publicado pela Caminho e desde então a edição desapareceu de circulação e tornou-se uma obra de culto e digna de colecionadores. Quais eram as vossas expetativas para a publicação nessa altura?
Luís Filipe Silva: As expectativas não passavam por se tornar obra de culto. Passaria desapercebida pela massa leitora, isso sim, incompreendida pelos críticos dos jornais, ignorada até certo ponto — embora não totalmente, porque a edição original tornou-se estandarte dos primeiros Encontros de FC de Cascais, em 1996, em jeito de anúncio do surgimento de uma nova época de afirmação da FC portuguesa (o que não veio necessariamente a acontecer, mas essa é outra história). Viajar está no sangue da literatura, e a Ficção Científica assumidamente cavalgou nas ondas da globalização do pós-2.ª Guerra Mundial. Contudo, Portugal tinha-se esquecido do fascínio que, poucas décadas antes, sentira pelo sonho de ir à Lua, de transcender o espaço. E assim, Terrarium, cujo parentesco foi difícil de ser assumido pela editora na época, mergulhou nas águas turvas do mercado nacional, um livro volumoso e caro e escrito por portugueses (!). Que se tenha mantido perto da superfície, não desaparecendo por completo, creio que é a sua maior vitória.
JB: Inocentes que nós éramos. O Terrarium pretendia ser o primeiro passo para o advento de uma nova era da ficção científica escrita por portugueses. Algo que estivesse ao nível do que se estava a fazer lá fora, sem décalages, sem reinvenções da roda, qualquer coisa de diferente que fosse capaz de provar a quem o lesse que não estávamos a viver no fundo de um poço, que também éramos capazes de criar algo de novo, algo dotado da viçosa frescura de um futuro realista e original, sem contudo perder o toque luso que tão bem nos caracteriza. Pensávamos ser os primeiros e acabámos por descobrir, com grande pena nossa, que afinal fomos os últimos. O Terrarium floresceu na indiferença, no meio do mato, a milhões de quilómetros da estrela mais próxima. E ali ficou, enquistado, à espera de uma nova renascença.
Como foi gerido o processo colaborativo de escrita a dois?
LFS: Com muitos telefonemas e trocas de ficheiros entregues em mão (parece incrível pensar que existiu uma era anterior aos emails). Telefonemas para trocar ideias e combinar peças do enredo — umas que funcionaram melhor do que outras. Houve pouco planeamento prévio, foi um desbravar de mato, orgânico, à deriva, com o seu quê de descoberta e orientação.
JB: Foi difícil. Pela minha parte já tinha escrito 80% da obra, sempre à espera que me fossem entregues as partes que faltavam vindas de um colaborador que entretanto se especializou em roer cordas. Por fim pedi ajuda ao LFS, o único talento que julguei capaz de preencher todos esses vazios. É preciso lembrar que há 20 anos não havia net e portanto as transferências de ficheiros eram ainda coisas que só existiam no mundo da fc. O trabalho fazia-se através de trocas de disquetes, várias, passadas de mão em em mão no universo real, e conversas telefónicas. Horas a fio. E tudo isto com a Editora a clamar na distância que se estava a fazer demasiado tarde, que havia deadlines a cumprir, que o texto era demasiado vasto, difícil, cataclísmico, politicamente incorrecto, que era preciso cortar, cortar, cortar…
Cortar uma história. Não cortámos nada. Valentemente fizemos finca-pé. A escrita do Terrarium foi um daqueles epifenómenos que provavelmente nunca mais será repetido.
O que os leitores podem esperar desta nova edição de Terrarium? Mantém a estrutura de romance em mosaicos?
LFS: Mantém e intensifica-a, pois acrescenta uma nova variante de escrever a dois. Se no livro original, cada qual tinha escrito a sua parte, excepto no derradeiro mosaico em que houve contribuição de ambos para diversos capítulos, o novo texto da versão Redux conta uma história em duas partes, escritas por cada um de nós. Um mosaico feito por dois semi-mosaicos, por assim dizer.
JB: O romance em mosaicos mantém-se, claro. Haja respeito. Mas cresceu. Olá se cresceu. O prólogo original desapareceu e transformou-se numa novela original dividida ao meio, parte minha, parte do LFS. São cerca de 100 páginas a mais, que não existiam na edição original. E nela demos a voz que faltava ao Mr. Lux. Trouxemos à vida os pais da Clara de Sousa. Justificámos a presença da revista pulp que assombra toda a obra.
Entretanto, pela calada, o LFS reviu, reescreveu, reconstruiu, subverteu toda a parte chamada a “Madrugada dos Deuses”. A Primeira Alternativa original, que nós considerámos pouco adequada e frágil, desapareceu e foi substituída por um microconto bem melhor ( na nossa humilde opinião).
Cortámos parte do texto que nos pareceu estar desactualizado, ou pouco aplicável aomundo actual. Actualizámos diálogos em discretas buchas. Este Terrarium é outro Terrarium. Até tem ilustrações. E uma BD onde figura a Triste Judite.
O que mudou nos últimos 20 anos na ficção científica portuguesa, tanto a nível de editoras como novos autores e leitores?
LFS: Talvez uma consciência de si mesma. Já não choca que alguém se assuma como escritor de FC. Nem choca nem espanta – é daqueles fenómenos que se tornaram normais. Depois da Caminho, foi normal (talvez inevitável!) que a nova colecção de FC da Presença aceitasse — quisesse, inclusive — romances escritos por portugueses, ainda que a boa experiência tida com a vertente da Fantasia também facilitasse as decisões de gestão. E que esta vontade se repetisse na Gailivro-Leya, e que até surgisse a Saída de Emergência como projecto editorial dedicado ao género Fantástico. Todas estas vitórias dos tempos modernos teriam dado muito jeito se existissem quando era adolescente…
JB: Na fc portuguesa não sei se mudou alguma coisa. A meu ver, desapareceu, tornou-se invisível, encontra-se ausente em parte incerta. A Editoras parecem ter desistido de a publicar. Alegam que não vende. Afirmam a pés juntos que a pequenada só se interessa por mundos onde os heróis tenham a idade dela. Tudo bem, mas atentem no seguinte: No nosso Terrarium, o Joel e o seu companheiro vulpis bem poderiam pertencer ao mundo dos jovens adultos. Embora haja neste Terrarium outros personagens bem mais velhos.
É por isso que o esforço da SdE é meritório. Veio trazer de volta a fc lusa. Provar que ela existiu e que pode voltar a existir. Esperemos que o Terrarium abra as portas a uma nova geração de leitores e escritores, que só ouviu falar dele como algo mítico que se perdeu nos abismos do tempo.
Terrarium vai ser apresentado na Comic-Con 2016 para uma nova geração de leitores. Que mensagem gostariam de lhes transmitir?
LFS: Que a literatura de género escrita em português já tem uma tradição – um passado que merece ser descoberto, mesmo se hesitante e trôpego. E tal como tem um passado, terá um futuro, mesmo se parecer negro a quem o antevir da presente perspectiva. Um futuro que pode, e deve, ser sonhado.
JB: Pequenada, comprem o livro. É um tomo enorme, capaz de competir com as obras do George R R Martin. Uma obra de peso. Boa para ter na estante. Boa para ser lida e relida. Foi escrita há 20 anos, mas conta um futuro que é agora o nosso presente.
Ajudem estes dois autores lusos e venham todos à Comic-Con para conversar connosco. Vão ver que somos os dois muito fofinhos e prazenteiros.