Revista Bang!
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Contos de Bruce Holland Rogers

Dois contos inesquecíveis,

O Menino Morto à tua Janela

(tradução de Luís Rodrigues)

Num país distante onde as cidades tinham nomes improváveis, uma mulher contemplou a figura inerte do seu bebé recém-nascido e recusou-se a ver o mesmo que a parteira. Era o seu filho. Trouxera-o ao mundo em agonia, e agora ele tinha de mamar. Encostou-lhe os lábios ao seio. – Mas ele está morto! – disse a parteira. – Não – mentiu a mãe. – Ainda agora o senti mamar. – A sua mentira era como leite para o bebé, que na realidade estava morto, mas abria agora os olhos e pontapeava com as pernas. – Está a ver? E obrigou a parteira a chamar o pai para conhecer o seu filho. O menino morto nunca chegou a mamar no seio da mãe. Nunca bebeu água, nem provou comida de nenhuma espécie, e por isso, claro, nunca cresceu. Mas o pai, que tinha jeito para coisas mecânicas, construiu uma armação para o esticar, para que, com o passar dos anos, pudesse ser da altura das outras crianças. Tendo visto seis Invernos, os pais mandaram-no para a escola. Embora fosse da altura dos restantes alunos, o menino morto era uma coisa estranha de se ver. A cabeça calva era quase do tamanho certo, mas o resto do corpo era delgado, como uma tira de couro, e seco como um pau. Tentava compensar a fealdade com diligência, e ficava acordado até tarde a ensaiar as letras e os números. A sua voz era como o restolhar de folhas secas. Por ser tão difícil escutá-lo, a professora obrigava os outros alunos a prender a respiração sempre que ele dava uma resposta. Ela chamava-o muitas vezes ao quadro, e ele estava sempre correcto. Como é natural, as outras crianças desprezavam-no. Por vezes, os rufias faziam-lhe esperas à saída da escola, mas bater-lhe, mesmo com paus, nunca lhe causava dano. Não chegava sequer a gritar. Certo dia de vento, os rufias roubaram um novelo de cordel da secretária da professora e, depois da escola, prenderam o menino morto ao chão com os braços esticados em forma de cruz. Enfiaram-lhe um pau pela manga esquerda da camisa até sair pela direita. Esticaram-lhe as abas da camisa até aos tornozelos, ataram tudo no sítio, prenderam o novelo de cordel à casa de um botão, e lançaram-no ao ar. Para grande alegria sua, o menino morto fazia um papagaio excelente. Só os alegrava mais ver que, devido ao peso da sua cabeça, voava de pernas para o ar. Quando se fartaram de ver o menino morto voar, largaram o cordel. O menino morto não voltou ao solo, como um vulgar papagaio de papel. Pairou. Era capaz de se guiar um pouco, embora estivesse sobretudo à mercê dos ventos. E não conseguia descer. Na verdade, o vento impelia-o cada vez mais para o alto. Pôs-se o Sol, e o menino morto continuou a ser levado pelo vento. Nasceu a Lua, e ao luar viu sucederem-se prados e florestas. Viu cordilheiras passar por baixo de si, oceanos e continentes. Por fim, os ventos acalmaram, e depois cessaram, e ele aterrou a pairar no chão de um estranho país. O chão estava despido. A Lua e as estrelas tinham desaparecido do céu. O ar parecia cinzento e encoberto. O menino morto inclinou-se para o lado e abanou-se até o pau lhe cair da camisa. Enrolou o cordel que tinha puxado atrás de si e esperou pelo nascer do Sol. Com o alongar das horas, viu apenas o mesmo ar pardacento. Começou por isso a vaguear. Encontrou um homem muito parecido consigo, uma cabeça calva a encimar membros como cabedal. – Onde estou? – perguntou o menino morto. O homem olhou o ar cinzento em redor. – Onde? – perguntou. A sua voz, tal como a do menino morto, parecia o sussurro de folhas mortas. Da névoa, surgiu uma mulher. Também a sua cabeça era calva, e o corpo ressequido. – Isto! – disse em voz rouca, tocando a camisa do menino morto. – Eu lembro-me disto! – Puxou pela manga. – Tinha uma coisa destas! – Roupa? – perguntou o menino morto. – Roupa! – gritou a mulher. – É isso! Outras pessoas encarquilhadas surgiram do ar cinzento. Juntaram-se para ver o estranho menino morto que envergava roupa. O menino morto sabia agora onde estava. – É a terra dos mortos. – Porque tens tu roupa? – perguntou a morta. – Chegamos aqui sem nada! Porque tens tu roupa? – Sempre estive morto – disse o menino – mas passei seis anos com os vivos. – Seis anos! – disse um dos mortos. – E só agora te juntaste a nós? – Conheces a minha mulher? – perguntou um morto. – Ela ainda está entre os vivos? – Dá-me novidades do meu filho! – E que é feito da minha irmã? Os mortos aproximaram-se mais. Disse o menino morto: – Como se chama a tua irmã? Mas os mortos não se conseguiram lembrar dos nomes dos seus entes queridos. Não se lembravam sequer dos próprios nomes. De igual maneira, os nomes dos lugares onde tinham vivido, os números dos seus anos, as modas e costumes das suas épocas, tudo isso tinham esquecido. – Bom – disse o menino morto – na cidade em que nasci havia uma viúva. Se calhar era a tua mulher. E sabia de um rapaz cuja mãe tinha morrido, e uma velha que podia ter sido a tua irmã. – Vais voltar? – Claro que não – disse outra pessoa morta. – Nunca ninguém volta. – Acho que sou capaz – disse o menino morto. Explicou-lhes o seu voo. – Mal sopre o vento… – O vento nunca sopra aqui – disse um homem falecido há tão pouco que ainda recordava o vento. – Então corram com o meu cordel. – Isso resulta? – Dá um recado ao meu marido! – disse uma morta. – Diz à minha mulher que tenho saudades dela! – disse um morto. – Diz à minha irmã que não a esqueci! – Diz ao meu namorado que ainda o adoro! Deram-lhe os seus recados, sem saber se os seus entes queridos continuavam vivos. Na verdade, dois amantes falecidos bem podiam estar lado a lado na terra dos mortos, passando mensagens um ao outro através do menino. Ainda assim, memorizou-as a todas. Os mortos recolocaram-lhe então o pau nas mangas da camisa, ataram tudo no sítio e desenrolaram o cordel. Correndo tanto quanto as pernas encarquilhadas lhes permitiram correr, lançaram o menino de volta ao céu, soltaram o cordel e ficaram a vê-lo afastar-se com o seu olhar morto. O menino pairou muito tempo sobre o cinzento da morte até que, por fim, uma aragem o levantou, e um sopro de vento o levantou ainda mais, e uma rajada o levou até onde podia ver a Lua e as estrelas. Lá em baixo, viu o luar espelhado no oceano. Ao longe, erguiam-se os picos das montanhas. O menino morto aterrou numa aldeola. Não conhecia ninguém ali, mas foi à primeira casa que encontrou e bateu na persiana do quarto. Disse à mulher que lhe abriu a janela: – Um recado da terra dos mortos – e transmitiu-lhe uma das mensagens. A mulher chorou e, em troca, deu-lhe outro recado. Casa a casa, entregou as mensagens. Casa a casa, reuniu mensagens para dar aos mortos. Pela manhã, encontrou uns rapazes para o pôr a voar, para o devolver à mercê do vento, para assim levar estas novas mensagens de regresso à terra dos mortos. E assim tem sido desde então. A qualquer noite, com a cabeça cheia de recados, o menino morto pode bater a qualquer janela para lembrar alguém – para te lembrar a ti, quem sabe – de um amor que sobrevive à memória, de um amor que não carece de nomes.

O Génio que Vive entre a Noite e o Dia

O génio Al-faq vivia na fresta entre a noite e o dia. Raramente se aventurava nos mundos dos seus semelhantes, e muito menos no mundo dos mortais. Só Deus e o próprio Al-faq sabiam se este era ou não um génio de confiança, pelo que tanto os espíritos obedientes como os desobedientes o consideravam um dos seus. Génios de ambos os géneros visitavam Al-faq para lhe contar as suas histórias. Tayab, o génio das cinzas, dirigiu-se uma vez à fresta entre a noite e o dia. Rindo, chamou: – Primo! A história que eu tenho para te contar! – Que fizeste agora, Tayab? O génio das cinzas apenas se riu mais, pelo que Al-faq disse: – Ora, entra, primo, e serve-te de chá. Vais ter de me contar essa história do princípio. Fervido o chá, Tayab disse: – Conheces a gente do deserto vermelho? A que vive junto ao rio? Al-faq não respondeu, mas fez sinal com a cabeça para que Tayab prosseguisse. – Apareceu-lhes a peste – disse o génio das cinzas. – Todas as casas tiveram os seus mortos. Nunca ouviste prantos iguais! Foi o que me chamou a atenção, primo. A angústia dos vivos. Toda aquela lamúria trazida no vento… eu sei reconhecer uma oportunidade quando a ouço! Disse Al-faq: – Continua. – De certa casa, ouvi gritos mais terríveis do que das restantes. Aí, uma mulher rasgava as roupas e arrancava o cabelo. O marido tentava-lhe segurar as mãos. Também ele chorava, mas não da mesma maneira. Tinha a cara lavada em lágrimas, mas permanecia em silêncio. Os braços de ambos estavam ensanguentados de ela os arranhar. E o carpir! Oh, raras vezes ouvi sofrimento como o dela. Era uma delícia – disse Tayab – porque estava certo de me poder aproveitar disso. – Mas que grande diabrura – disse Al-faq. Sorveu o chá. – É melhor do que isso – respondeu Tayab. – Agora ouve. Farejei a casa, e em sete lugares encontrei a sombra do anjo negro. Sete vezes tinha a peste entrado e colhido uma alma. Crianças, imaginei eu. Aquela mulher tinha parido sete filhos, e agora estavam todos mortos. Quando já se encontrava demasiado exausta para gritar, sussurrei-lhe os seus nomes. – Contou a Al-faq o nomes das crianças. – O marido tentou consolá-la. Em vão. Chamou-a, mas ela recusou-se a responder. Quando tentou olhá-la nos olhos, ela afastou-se. – O seu sofrimento deve ter sido igual. – Talvez, talvez. Quem sabe, quando não fazem tanto barulho, quando não rasgam a roupa? Por isso esperei até ele estar a dormir. Os olhos dela continuavam bem abertos, embora estivesse muito escuro para ver. Ajoelhei-me à beira dela e sussurrei: “Ó mortal, sou o anjo da porta e ouvi as tuas preces”. – O anjo da porta? – perguntou Al-faq. – Não é nada. É inventado. Mas eu disse-lhe: “Devolverei os teus filhos à vida se tiveres fé em mim”. – E se um anjo ouve? – Não invoquei o nome de nenhum anjo, primo. Não acabei de dizer que foi inventado? Disse à mulher: “Levanta-te. Sai. Parte para oeste. Caminha até não mais poderes. Dar-te-ei um sinal de que os teus filhos regressaram, mas terás de permanecer aí, sozinha junto ao mar, sem nada. Não voltarás a falar. Nem procurarás os teus filhos, porque se encontrares um, então morrem os sete.” – E ela concordou com isso? – Concordou! Levantou-se sem acordar o marido. Levou apenas a roupa que tinha no corpo, e partiu! Caminhou noite e dia! Pelo deserto e sobre as montanhas, até ao mar! – E tu? Devolveste-lhe os filhos à vida? Tayab riu-se. – Devolvê-los à vida? – Agarrou-se à barriga e continuou a rir. – Bom, fiz os possíveis, primo. Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Apareci-lhe durante a noite e disse-lhe para olhar para o céu a oriente. Caíram estrelas do céu, e a cada uma que caiu, dei-lhe o nome de um dos seus filhos. – E ela acreditou em ti. – Melhor do que isso, primo. Esse é que é o açúcar no chá! Deixei-a. E quando voltei na noite seguinte, ali estava ela à vista das ondas, abrigada numa caverna na falésia! Disse-lhe: “Agora escuta, mortal. Não sou nenhum anjo. Sou um génio. Quanto a ti, nunca encontrei mulher mais tola, porque tanto posso devolver os teus filhos à vida como obrigar o Sol a nascer no poente. Não precisas de ficar aqui a passar fome junto ao mar. Vai para casa, já. Vai para casa!” – E ela, foi? – A maravilha é essa! – O génio das cinzas riu-se mais uma vez. – Recusou-se a responder, uma vez que lhe dissera que não podia falar. E recusou-se a acreditar em mim, uma vez que lhe dissera para ter fé no anjo da porta. Por isso ali ficou, muda, desamparada, com uma caverna apenas para se abrigar, inabalável na fé num servo divino que não existe! – Mas tu existes, primo. – Eu existo, com certeza – respondeu Tayab, sorridente. – E ela, passou fome? – Uns aldeões deram com ela. Trazem-lhe comida. Pensam que é uma santa. – Voltou a rir. – E o marido? – Não faz parte da minha história. Calculo que ainda viva, se é que não morreu já. – Fiquei curioso acerca dele. Tayab afastou a ideia com um gesto. – Mas que te parece? Tirei tudo à mulher, mais até do que era minha intenção! E agora, mesmo que tente restituir tudo o que roubei, ela não aceita! Alguma vez ouviste falar de um roubo como o meu? Al-faq passou os dedos compridos pela cara e não deu resposta. Era possível que Tayab não a esperasse. Quando o génio das cinzas se tinha ido embora, Al-faq abandonou o seu lar na fresta entre a noite e o dia. Dirigiu-se ao mundo dos mortais. Esteve muito tempo para dar com o deserto vermelho, e ainda mais para dar com a casa das sete sombras já esbatidas. Os campos junto à casa estavam cobertos de ervas daninhas. O homem que aí vivia era magro e de olhos cavos. Al-faq esperou que anoitecesse. Quando o homem caiu finalmente na cama, murmurou o nome da mulher. Al-faq debruçou-se sobre ele no escuro e disse: – Ó mortal, sou o anjo da porta e ouvi as tuas preces. Como receavas, a tua mulher, tal como os teus filhos, está morta. Devolvê-los-ei todos à vida se tiveres fé em mim. – Sim? – disse o homem. – És capaz? – Levanta-te – disse Al-faq. – Sai. Parte para sul. Caminha até não mais poderes. Dar-te-ei um sinal de que a tua mulher e filhos regressaram, mas terás de permanecer aí, sozinho junto ao mar, sem nada. Não voltarás a falar. Nem procurarás os teus queridos, porque se encontrares um, então morrerão os oito. O homem levantou-se. Vestiu-se. Pegou na bengala e partiu sem demora. Caminhou toda a noite. Caminhou todo o dia. Mais tarde, atravessou o deserto. Mais tarde, atravessou as planícies. Al-faq seguiu-o, invisível. Quando o homem percorreu o caminho todo até ao mar, o génio esperou pelo cair da noite e mostrou-lhe oito estrelas cadentes no céu para norte. A cada uma, Al-faq deu um nome. – Lembra-te – disse o génio. – Nunca mais fales. Nunca os procures. O rosto do homem estava lavado em lágrimas. Acenou afirmativamente. – Nunca percas a tua fé em mim, aconteça o que acontecer. O homem voltou a acenar com a cabeça e sorriu, cansado. Fez um gesto de gratidão e de bênção. – Não, não me abençoes – disse Al-faq. – Não o mereço. Na aldeia mais próxima, o génio foi de casa em casa e sussurrou ao ouvido dos muitos que dormiam: – Há um homem santo a viver junto ao mar. Procurem-no. Cuidem dele. O génio Al-faq, que talvez seja de confiança ou talvez não, regressou depois à fresta entre a noite e o dia. E se o mundo não acabou ainda, é aí que continua a viver.

Contos originalmente publicados na colectânea Pequenos Mistérios pela editora Livros de Areia em 2007. Para mais informações sobre o livro, podem consultar o site da editora.

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