Por Edith Nesbit
(Tradução de José Manuel Lopes)
Conhecem os campos de Bristol? Esses espaços amplos e ventosos com arredondadas colinas como ombros inclinados para o céu, com depressões de terreno onde as quintas e as casas se aninham protegidas por árvores a toda a volta, que se estreitam apertadas como um cravo numa botoeira? Nos longos dias de verão é bom estendermo-nos nesses campos, sobre as ervas rasteiras e o céu limpo e pálido, para cheirarmos o tomilho bravo, ouvir o tilintar dos chocalhos das ovelhas e o cantar da cotovia. Contudo, nos fins de tarde de outono, quando o vento começa a fazer das suas, cuspindo-nos chuva para os olhos e agredindo os pobres, e as árvores nuas fazem tremer a escuridão pelas colinas, como uma mortalha cinzenta, então será melhor estarmos junto a uma lareira numa das quintas mais solitárias onde nos possamos abrigar, e contrastar as suas janelas cintilantes, devido à luz do lume e das velas, com a profunda escuridão, à medida que a fé ergue a sua candeia de amor na noite de dor e pecado que é a vida.
Não estou habituada a esforços literários e sinto que talvez não consiga dizer tudo o que quero, nem que vos convencerei, a não ser que vo-lo relate de um modo muito direto. Pensei poder enfeitar o mistério com deleitosas palavras, deleitosamente escolhidas. Porém, sempre que paro para pensar no que de facto aconteceu, creio que as palavras mais simples serão as melhores. Não sei como tecer um enredo nem como o bordar, e talvez seja melhor não o fazer. Estas coisas aconteceram. Não sou capaz de juntar outras ao que se passou, nem qualquer tentativa da minha parte a esse respeito se me afigura necessária.
Sou uma enfermeira, e pediram-me para ir até Charlestown devido ao caso de um problema mental. Estávamos em novembro e o nevoeiro era denso, de modo que o meu fiacre seguia a passo e eu acabei por perder o comboio no qual deveria ter embarcado. Enviei um telegrama para Charlestown, e limitei-me a aguardar nas salas de espera junto à Ponte de Londres. Uma criança entreteve-me durante esse tempo. A mãe, uma viúva, pareceu-me demasiado desgostosa para responder às suas sucessivas perguntas. Respondia-lhe de um modo breve que em nada a parecia satisfazer. A criança pareceu então perceber que a mãe não se encontrava — como direi? — disponível. Recostava-se no assento largo e poeirento, e bocejava. O meu olhar cruzou-se com o dela e sorri, sem que ela me retribuísse esse gesto, se bem que continuasse a fixar-me. Retirei do meu baú uma carteira de seda, com contas brilhantes e borlas de aço, fazendo-a rodar. Então, a criança deslizou ao longo do banco corrido e disse: — Deixa-me… — Depois disso, tudo se tornou mais fácil. A mãe permaneceu sentada de olhos fechados. Quando me levantei, para me ir embora, abriu-os e agradeceu-me. A criança agarrou-se a mim e beijou-me. Mais tarde, vi-as entrar no comboio numa carruagem de primeira classe. O meu bilhete era de terceira.
Esperava, é claro, que houvesse qualquer espécie de transporte com que me fossem esperar à estação, mas tal acabou por não ser o caso. Nem via qualquer fiacre, nem sequer uma mosca. Estava quase a anoitecer, e a chuva tocada pelo vento batia quase horizontal ao longo da estrada, pouco frequentada em frente à porta da estação. Olhei lá para fora, sentindo-me desamparada e perplexa.
— Não reservou nenhuma carruagem? — perguntou-me essa senhora viúva.
Expliquei-lhe que não.
— O meu automóvel deve estar mesmo a chegar — disse-me ela. — Não se importa que eu a leve até ao seu destino? Para onde vai?
— Para Charlestown — respondi-lhe e, ao dizê-lo, reparei numa mudança muito estranha no seu rosto. Uma leve mudança, mas que não dava lugar a dúvidas.
— Por que motivo fez a senhora essa cara? — inquiri abruptamente. E, como seria de esperar, ela observou: — Qual cara?
— Se não se passa nada de estranho com essa casa… — acrescentei em seguida, pois acreditei que era o que essa leve mudança significara, e eu era muito nova e tinha ouvido muitas histórias, — não existe qualquer razão para que eu não deva lá ir, não é verdade?
— Não… oh, não… — Via olhar para chuva, e fiquei logo a saber, como se ela mo tivesse contado, que haveria um motivo pelo qual ela não desejaria lá ir.
— Não se incomode — disse eu. — É muito simpático da sua parte, mas, provavelmente, terá que se desviar do seu caminho e…
— Oh, mas eu posso levá-la… é claro… Eu levo-a até lá — ripostou ela. E a criança disse: — Mãe, aqui vem o carro.
E de facto vinha, embora nenhuma de nós o tivesse ouvido até a criança ter falado. Nada sei acerca de automóveis e nem sequer conheço o nome das várias partes dos mesmos. Este era como um Broughham, se bem que se entrasse nele pela parte de trás, como numa vagoneta. Os lugares eram aos cantos e, logo que a porta se fechou, vi um pequeno assento rebatível que se abria, onde a criança se sentou entre nós duas. E movia-se como se por magia… ou como um comboio num sonho.
Continuámos rapidamente através da escuridão. Podia ouvir o vento a uivar, e as chicotadas fortes da chuva contra a janela, apesar do ruído do motor. Nada se conseguia ver do campo, apenas a noite negra e os raios de luz dos faróis.
Após o que me pareceu ser muito tempo, o motorista apeou-se para abrir um portão. Atravessámo-lo, e depois a estrada tornou-se mais acidentada. Estávamos em silêncio dentro do automóvel e a criança adormecera.
Parámos, mas o carro continuou a arfar, como se vítima de asfixia, enquanto o motorista retirava dele o meu baú. Estava de tal modo escuro que não consegui ver a forma da casa, apenas as luzes, nas janelas do andar térreo, e o jardim da frente rodeado por um muro baixo, vagamente visível à luz do interior da casa e dos faróis do automóvel. Contudo, senti que se tratava de uma construção de um tamanho razoável, rodeada de grandes árvores, e que existia um riacho ou um lago não muito longe. À luz do dia, na manhã seguinte, reparei que assim era. Nunca consegui dizer como o soube, nessa primeira noite e nessa escuridão, mas soube-o. Talvez houvesse qualquer coisa no modo como a chuva batia nas árvores e na água. Não sei…
O motorista levou o meu baú por um caminho empedrado, logo após eu ter saído do automóvel e me ter despedido muito agradecida.
— Não espere, por favor, não espere — apressei-me a dizer. — Agora estou bem, muito abrigada!
O carro, no entanto, continuou a arfar até eu ter chegado à soleira da porta. Em seguida, era como se tivesse retomado o fôlego e, com um ruído mais alto, descreveu uma curva e desapareceu.
Mas a porta ainda não se tinha aberto. Procurei o batente e dei umas pancadas discretas. Por detrás da porta, tenho a certeza de ter ouvido pessoas a murmurarem qualquer coisa. As luzes dos faróis do automóvel diminuíam agora rapidamente, até se transformarem numa estrela distante, e o seu arfar já mal se ouvia. Quando tal aconteceu, esse lugar ficou mergulhado num silêncio de morte. As luzes brilhavam avermelhadas através das cortinas das janelas, mas não havia aí sequer o mínimo sinal de vida. Desejei não ter tido tanta pressa em me desembaraçar de quem até lá me levara, da companhia dessas pessoas e da presença sólida e apaziguante do automóvel.
Voltei a bater à porta, e dessa vez chamei também em voz alta.
— Está aí alguém? Deixem-me entrar. Sou a enfermeira… — gritei.
Houve um instante, um momento suficiente longo para permitir que as pessoas, que estivessem por detrás da porta e que falavam entre dentes, pudessem trocar olhares.
Depois ouviu-se uma chave a rodar no ferrolho, e essa entrada já não me parecia fria nem a madeira da porta húmida, mas acolhedora e iluminada. Também já se viam alguns rostos.
— Entre, tenha a bondade de entrar — disse-me uma voz feminina, e a voz de um homem acrescentou: — Não sabíamos que estava alguém à porta.
Mas eu fizera-a tremer, dado o modo como usara o batente!
Entrei, ainda a pestanejar devido ao facto dos meus olhos não estarem ainda habituados à luz. O homem chamou um criado e, entre eles, levaram o meu baú para cima.
A senhora tomou-me o braço e conduziu-me até uma sala quadrada de tetos baixos, agradável e rústica, com o sólido conforto dos meados da Época Vitoriana — o tipo de sala que se expressava em repes e mogno. À luz do candeeiro, voltei-me para a ver melhor. Era baixa e magra. O cabelo, o rosto e as mãos tinham a mesma tonalidade de um cinzento amarelado.
— Trata-se da Sr.ª Eldridge, não é verdade? — perguntei.
— Sim — respondeu ela em voz baixa. — Oh, estou tão feliz por ter vindo. Oxalá não se aborreça aqui. Espero que fique. Espero poder fazer com se sinta confortável.
Ela tinha um modo suave e rápido de falar que a tornava muito simpática.
— Tenho a certeza de que me irei sentir muito confortável — observei. — Mas sou eu quem deverá tratar da senhora. Já está doente há muito tempo?
— Na verdade, não sou eu quem está doente — apressou-se ela a observar. — É ele…
Ora, fora o Sr. Robert Eldridge quem me escrevera, requisitando os meus serviços, para tomar conta da sua mulher, que estava, segundo ele me informara, um pouco demente.
— Estou a ver… — limitei-me a retorquir. Nós nunca os devemos contradizer, visto podermos agravar a sua demência.
— A razão… — começara ela a explicar-me, logo que se ouviram os passos do idoso nos degraus e ela se afastou para ir buscar velas e água quente.
Ele entrou e fechou a porta. Era um homem entrado na idade, de barba alourada, com um aspeto vulgar.
— Espero que possa tomar conta dela — disse-me ele. — Não quero que ela comece a falar com outras pessoas, pois inventa muitas coisas.
— Qual a forma mais comum desses seus devaneios? — perguntei-lhe, de um modo direto.
— Pensa que sou louco — observou ele, com uma gargalhada curta.
— Isso é muito fora do vulgar… e é tudo?
— Creio que já será o suficiente… E ela não consegue ouvir as coisas que eu ouço, nem ver o que vejo, e nem sequer as consegue cheirar. A propósito, por acaso não ouviu algo assim como um automóvel, quanto veio para aqui, pois não?
— Mas eu vim para aqui num automóvel — ripostei. — O senhor não enviou ninguém para me ir buscar à estação… — Começava já a explicar-lhe o facto de ter perdido o comboio anterior, quando reparei que ele não escutava o que lhe dizia. Estava a olhar muito para a porta. Quando a mulher dele entrou, com um jarro fumegante numa mão e um castiçal de pé baixo na outra, ele dirigiu-se a ela, para lhe dizer algo entre dentes, com muita urgência. A única coisa que consegui ouvir foi: — Ela veio para aqui num automóvel verdadeiro.
Aparentemente, para aquelas pessoas simples, um automóvel era uma novidade tão grande como o era para mim. O meu telegrama, também foi entregue apenas na manhã seguinte.
Foram ambos muito simpáticos comigo e trataram-me como uma convidada importante. Logo que a chuva parou, o que aconteceu já tarde no dia seguinte, pude sair e dar-me conta de que Charlestown era uma quinta, uma grande quinta, porém, mesmo aos meus olhos pouco experientes, a mesma pareceu-me abandonada e decadente. Não havia nada que eu pudesse fazer senão seguir a Sr.ª Eldridge, ajudando-a como podia na sua lida caseira, e sentar-me a seu lado enquanto ela costurava na sala de estar rústica. Quando já estava há alguns dias nessa casa, comecei a juntar todas as pequenas coisas em que eu até aí reparara isoladamente e, a vida dessa quinta pareceu que se me revelava de súbito, tal como acontece após algum tempo com os ambientes estranhos.
Reparei que me dera conta de que o Sr. e a Sr.ª Eldridge eram muito afeiçoados um ao outro, e que se tratava de uma afeição cuja expressão me dava a entender que ambos tinham tido um grande desgosto. Reparei também que ela não revelava quaisquer traços de demência, exceto na sua crença permanente de que era ele quem sofria da mesma; que de manhã estavam sempre bem-dispostos, mas que depois do almoço pareciam ficar cada vez mais deprimidos; que após a primeira chávena de chá, ou seja, logo que a escuridão se começava a instalar, iam sempre dar um passeio juntos. Reparei também que eles nunca me pediam que os acompanhasse e que esse mesmo passeio era sempre igual, através dos campos em direção ao mar; que voltavam sempre muito pálidos e tristes; que ela, por vezes, chorava sozinha no quarto, enquanto ele se fechava numa pequena divisão a que chamavam o escritório, onde ele fazia as contas da casa, pagava o ordenado dos empregados e guardava as suas espingardas e outros apetrechos de caça. Depois do jantar, que era sempre cedo, faziam um esforço por se mostrarem bem-dispostos. Sabia que tal esforço era apenas por causa de mim, e que, quer um quer outro pensavam que mereceria a pena, para que todos se sentissem melhor.
Como eu já tinha reparado, mostraram-me que Charlestown estava rodeada por grandes árvores e que, de um lado, havia um grande lago, do mesmo modo como eu sabia que o medo vivia paredes meias com esse casal de idosos. Ainda não me encontrava há dois dias nesse lugar, quando me dei conta de que me estava a afeiçoar a ambos. Eles eram pessoas tão amáveis, tão delicadas, tão comuns, tão simples… o género de pessoas que nunca deveriam ter conhecido o medo, que deveriam ser também pessoas com direito a todas as alegrias mais sinceras e simples, sem terem que sofrer mais nenhuns desgostos para além dos que todos temos, devido à morte de velhos amigos e às lentas mudanças do avanço dos anos.
Ambos me pareciam pertencer a esse lugar, a esses campos de Bristol, aos bosques e às velhas pastagens, aos pequenos milheirais. Também reparei que começava a desejar pertencer a esses lugares, como se tivesse nascido filha de um agricultor. Todas as minhas ansiedades ao preparar-me para os exames, nas escolas e no ensino superior, nos hospitais, me pareciam óbvias e fúteis comparadas com os revelados segredos da vida nesses campos. E sentia-o cada vez mais, ao aperceber-me de que também eu deveria abandonar tudo isso, pois, na verdade, não havia aí trabalho para mim, do género que, para melhor ou pior, eu fora instruída a desempenhar.
— Creio que não deveria aqui ficar mais tempo — disse eu, numa tarde, enquanto nos encontrávamos de pé junto à porta aberta. Estávamos então em fevereiro e a neve acumulava-se nos arbustos junto aos caminhos lajeados. — A senhora não tem quaisquer problemas de saúde.
— Pois não… — confirmou ela.
— Vocês estão muito bem, quer um quer outro — observei. — Não é justo que eu continue aqui a receber o vosso dinheiro, sem fazer o que quer se seja para o merecer.
— Mas a menina tem estado a fazer tudo! Nem sequer sabe o que aqui tem estado a fazer… — confessou ela.
— Em tempos tivemos uma filha — disse a idosa, vagamente e, em seguida, após um longo período de silêncio, acrescentou em voz baixa mas de um modo muito claro: — Ele nunca mais foi a mesma pessoa.
— Mas porquê? — perguntei, voltando o rosto para o sol fraco de fevereiro.
Ela bateu levemente na sua testa enrugada de um cinzento amarelado, no modo como as pessoas do campo costumam fazer. — Aqui não… — disse ela.
— Como? — perguntei-lhe. — Cara Sr.ª Eldridge, conte-me, talvez eu possa ajudar de algum modo.
A sua voz era tão saudável, tão doce… Acontecera que eu própria já não sabia qual dessas duas pessoas precisava realmente da minha ajuda.
— Ele vê coisas que mais ninguém vê, ouve coisas que só ele ouve, e cheira coisas que ninguém consegue cheirar, mesmo quem estiver ao lado dele.
Lembrei-me, com um súbito sorriso, do que ele me contara ao serão após a minha chegada. — Ela não consegue ver, nem ouvir, nem cheirar…
E mais uma vez me perguntei qual dos dois precisaria dos meus serviços.
— E sabe porquê? — perguntei. Ela agarrou-me levemente no braço.
— Foi depois de a nossa Bessie ter morrido — esclareceu ela —, no primeiro dia em que ela foi a enterrar. O automóvel que a matou, disseram-me que se tratou de um acidente, ia pela Estrada de Brighton. Era um automóvel violeta. As pessoas põem luto pelas rainhas vestindo-se de violeta, não é verdade? — acrescentou ela —, e a minha Bessie era uma rainha. De modo que o automóvel era violeta. Faz sentido, não acha?
Acreditava agora que essa senhora não era normal, e apercebi-me do que a alterara. A dor tinha-lhe perturbado o cérebro. Deveria ter-se notado uma certa mudança no meu rosto, embora eu devesse ter controlado tal facto, pois ela apressou-se logo a acrescentar: — Não, não lhe irei contar mais nada.
Depois ele apareceu. Ele nunca me deixava sozinha com ela durante muito tempo, e ela acabava por fazer o mesmo.
Não era minha intenção pôr-me a espiá-los, embora não tivesse a certeza se as funções de enfermeira de uma pessoa com problemas mentais que aí desempenhava não o justificariam. Mas não o fiz. Tratou-se de puro acaso. Fora até à aldeia comprar fio de seda azul para uma blusa que estava a fazer, e reparei num belíssimo pôr-do-sol que me tentou a prolongar a caminhada. Foi então que me encontrei nesses altos campos de Bristol que desenham as margens de Inglaterra, junto às escarpas abruptas e brancas contra as quais o Canal da Mancha não para de bater. Os tojos estavam em flor, as cotovias cantavam e eu pensava na minha vida, nas minhas esperanças, nos meus sonhos. De modo que me dei conta de que chegara a uma estrada sem saber bem como aí chegara. Segui-a em direção ao mar e não demorou muito até esse caminho deixar de ser uma estrada para desaparecer num tufo de arbustos, do mesmo que modo que um regato desaparece, por vezes, na areia. Não havia aí mais nada senão arbustos e tojos, o cantar das cotovias e, para lá do declive que terminava na margem da escarpa, o rebentar das ondas. Voltei para seguir a estrada que se começava a definir alguns metros mais atrás e embrenhei-me então por uma vereda funda e ladeada por arbustos acastanhados. Foi aí que eu dei com eles, já quase ao entardecer. Ouvi-lhes as vozes, antes de os ver, e antes mesmo que eles me vissem. Foi a voz dela que ouvi primeiro.
— Não, não, não, não, não… — dizia.
— Estou a dizer-te que sim — era a voz dele. — Ali… Será que não consegues ouvir esse arfar… mesmo ali? Deve ser mesmo à beira da falésia.
— Não há nada, querido — dizia ela —, não há aí nada.
— Deves estar surda… e cega… recua um pouco como te digo, está mesmo ao pé de nós…
Aproximei-me da curva da vereda e vi que ele lhe pegava no braço e a empurrava violentamente contra os arbustos, como se o perigo que ele temia estivesse, de facto, a aproximar-se deles. Parei antes da curva, por detrás dos arbustos, e recuei um pouco. Ainda não me tinham visto. Ela olhava-lhe intensamente para o rosto, revelando piedade, amor, desgosto. O rosto desse homem assemelhava-se a uma máscara de terror e os olhos moviam-se-lhe com rapidez como se seguissem, por essa mesma vereda, a passagem de qualquer coisa, de algo que nem eu nem ela conseguíamos ver. Depois, vi-o a recuar e a encostar-se muito aos arbustos, com as mãos sobre o rosto e com o corpo todo a tremer, a ponto de eu me ter apercebido disso desde o local em que me encontrava, a cerca de uns dez metros, através da ramagem dos arbustos que ladeavam a estrada.
— E o cheiro! — observou ele. — Será que não te dás conta do cheiro?
Ela tinha os braços em volta dos ombros dele.
— Vem para casa! Vem para casa! — exclamou ela. — Tudo se passa apenas na tua imaginação! Vem para casa com a mulher que te ama…
Dirigiram-se então para casa.
No dia seguinte, pedi a essa senhora para vir até ao meu quarto para ver a nova blusa azul. Após lha ter mostrado, contei-lhe tudo o que vira e escutara, no dia anterior, durante o meu passeio pelo campo.
— E agora já sei — disse-lhe eu —, qual de vocês necessita dos meus cuidados…
Para meu grande espanto, ela perguntou-me bruscamente: — Qual?
— Ele, é claro — esclareci eu. — De facto, não se via aí nada.
Ela sentou-se, na cadeira de braços forrada de chita, junto à janela, e pôs-se a chorar. Eu fiquei junto dela, tentando reconfortá-la o melhor que podia.
— É um alívio ouvi-la, pois já não sei bem no que acreditar — confessou-me ela. — Muitas vezes, ultimamente, tenho perguntado a mim mesma se seria talvez eu quem tivesse enlouquecido, como ele costuma dizer. E não havia lá nada… Nunca houve lá o que quer que fosse… o problema, afinal é dele, não é meu… Ora, graças a Deus, é algo que me faz sentir muito aliviada…
Desse modo, as lágrimas dela, percebi então, eram mais de alívio do que outra coisa. Olhei-a com um certo desdém, esquecendo-me de que gostava dela. Mas as palavras que a idosa me disse em seguida agrediram-me como facas.
— As coisas já são difíceis para ele —, mas tudo seria ainda bem pior se fosse eu quem tivesse enlouquecido e ele pensasse que era o responsável. Não sei se está a ver, agora posso cuidar dele como sempre fiz. Estas coisas só lhe acontecem uma vez por dia. Creio que ele próprio não iria aguentar se lhe acontecessem sempre, como me irá acontecer a mim… Ainda bem que foi ele, pois eu posso suportar melhor estas coisas…
Beijei-a e pus-lhe o braço em volta do ombro, antes de lhe perguntar: — Diga-me, que é que o assusta tanto? E disse-me que era todos os dias?…
— Sim, desde então… Vou-lhe contar. Conforta-me bastante poder desabafar consigo. Foi um automóvel violeta que matou a nossa Bessie, a nossa filha de quem já lhe falei… E é um automóvel violeta que ele acredita ver, todos os dias, nessa vereda. E diz-me que o ouve, que consegue sentir o cheiro do motor, aquela coisa que põem lá dentro, não sei se está a ver…
— A gasolina?
— Sim, e é possível ver que ele o ouve, é possível ver que ele o vê. Persegue-o, como se de um fantasma se tratasse. Está a ver, foi ele quem a levantou do chão depois de o automóvel violeta a ter atropelado. Foi isso que o alterou por completo. Eu apenas a vi quando ele a trouxe nos braços para casa, depois de lhe coberto o rosto. Mas ele viu-a tal como a tinham deixado, estendida na poeira da estrada… Durante dias e dias ainda era possível ver onde o acidente tinha acontecido.
— E o condutor não parou?
— Sim parou, mas a Bessie não voltou à vida. No entanto, houve um castigo. No dia em que ela foi a enterrar, o automóvel violeta caiu pelas escarpas e ficou desfeito em pedaços com toda a gente lá dentro. Foi a viúva desse homem quem a trouxe de carro até nossa casa na noite em que chegou.
— Até me admira como ela consegue guiar um automóvel depois disso — observei eu, procurando qualquer coisa para dizer.
— Ah — disse a Sr.ª Eldridge —, tudo tem que ver com o que estamos habituados. Não parámos de dar passeios a pé só porque a nossa filha foi morta numa estrada. Guiar deve ser tão normal para essas pessoas, tal como caminhar para nós. Mas já ouço o meu marido a chamar-me… pobre homem… Ele quer que eu vá passear com ele.
Essa idosa foi então ter com o marido, muito apressada e, devido a isso, tropeçou num degrau e torceu um pé. Tudo aconteceu no espaço de um minuto e tratou-se de uma má entorse.
Depois de lhe ter ligado o tornozelo e de ela já estar sentada no sofá, via-a olhar para ele que estava de pé, sem se decidir, a olhar pela janela com o boné na mão. Ela olhou então para mim.
— O Sr. Eldridge não deverá perder o seu passeio — disse ela. — Vá com ele, minha cara menina. Um pouco de ar fresco irá fazer-lhe bem.
De modo que fui, percebendo tão bem como se ele mo tivesse dito, que esse homem não queria que eu o acompanhasse, que receava ir sozinho, mas que, no entanto, tinha que dar esse passeio.
Seguimos pela vereda em silêncio. Junto à curva, ele parou de súbito, pegou-me no braço e fez-me recuar. Os seus olhos pareciam seguir algo que eu não conseguia ver. Em seguida, respirou de alívio e disse: — Pensei ouvir um automóvel a aproximar-se. — Fora-lhe difícil controlar o seu intenso medo, e reparei que ele tinha gotas de suor na testa e nas fontes. Depois, voltámos para casa.
A entorse não se iria curar rapidamente e, no dia seguinte, a Sr.ª Eldridge ainda teve que descansar e, mais uma vez, fui eu quem o acompanhou até à curva da vereda.
Nessa ocasião, ele não pôde, ou não tentou esconder o que sentia. — Ali… Ouça! Decerto consegue ouvir, não é verdade?
Mas eu nada conseguia ouvir.
— Chegue-se mais para trás — gritou ele, de súbito, com uma voz estridente. Ficámos então encostados contra os arbustos que ladeavam esse caminho.
Uma vez mais, os seus olhos seguiram algo totalmente invisível para mim, e voltei a ouvi-lo suspirar de alívio.
— Irá matar-me um destes dias… — observou —, e até nem me importaria que fosse em breve, se não me preocupasse com ela…
— Mas conte-me — pedi-lhe eu, cheia da importância, dessa competência consciente que geralmente sentimos na presença dos problemas de outras pessoas. Ele olhou muito para mim.
— Vou-lhe contar, sem dúvida — aquiesceu. — A ela não lho poderia dizer. Minha senhora, olhe que quase desejei ser católico para o poder confessar a um padre. Mas posso-lho contar a si, sem perder a minha alma mais do que já a perdi. Já alguma vez ouviu falar de um automóvel violeta que teve um acidente e caiu pela falésia?
— Sim, sim, já ouvi — disse eu.
— O homem que matou a minha filha era novo nesta região, e não tinha olhos nem ouvidos, dado que estivemos diante um do outro durante o inquérito de averiguações. E todos iriam pensar que talvez ele ficasse em casa nesse dia, com as cortinas bem corridas. Mas não foi esse o caso. Ele andava a girar por todo o lado no seu maldito automóvel violeta enquanto nós estávamos no funeral da nossa filha. Ao entardecer, logo que o nevoeiro apareceu, ele aproxima-se por detrás de mim, neste mesmo caminho, eu recuo, e ele para, com a luz dos faróis a dar-me na cara. «Será que me pode dizer qual o caminho para Hexham?» — pergunta-me.
— Eu gostaria de lhe ter mostrado o caminho para o inferno, pois isso ainda era pouco para ele… Nem sei como acabei por fazê-lo. Não era essa a minha intenção. Eu ia… Olhe, antes que me pudesse dar conta, já lho tinha dito — disse ele. «É sempre em frente, mantenha-se sempre em frente…» Então esse automóvel pôs-se a arfar e como que tossiu, antes de desaparecer. Ainda tentei correr atrás dele para ver se o fazia parar, mas de que nos serve correr atrás de um desses malditos automóveis? E ele continuou sempre em frente… Todos os dias, desde então, esse carro aparece, o automóvel violeta que mais ninguém consegue ver senão eu, e continua a seguir em frente.
— O senhor deveria passar uns tempos retirado deste local — sugeri eu, falando tal como fora instruída para falar. Não me parece que alguma vez tenha dito ao motorista desse automóvel violeta para ir em frente. Penso que talvez tenha sido a sua imaginação e o choque provocado pela morte da sua pobre filha. Deveria afastar-se durante uns tempos destes lugares.
— Não posso — ripostou ele, muito sério. — Se o fizesse, haveria quem acabasse por ver o carro. Não sei se está a perceber, alguém o terá que ver todos os dias enquanto eu for vivo. Se não me aparecesse a mim, acabaria por aparecer a outra pessoa, e eu sou o único indivíduo que merece vê-lo. Não gostaria que outros o viessem… é demasiado horrível. É bem mais horrível do que a senhora possa pensar… — acrescentou ele, arrastando a voz.
Perguntei-lhe então, enquanto seguíamos por essa vereda silenciosa, o que seria tão horrível nesse automóvel violeta. Penso que deveria estar à espera que ele me dissesse que estava manchado com o sangue da filha… Mas o que ele mencionou foi: — É demasiado horrível para lho dizer —, e vi-o encolher os ombros.
Eu era ainda muito nova, e a juventude pensa sempre que tem o poder de mover montanhas. Persuadi-me de que o poderia curar desse problema, atacando não o castelo principal, que é sempre de início inexpugnável, mas algum dos fortes mais pequenos, para usar uma linguagem figurada. Comecei então a tentar persuadi-lo a não ir para essa curva da vereda a essa hora do dia.
— Mas se eu não o fizer, outra pessoa irá ver o automóvel…
— Não haverá ninguém que o consiga ver — disse eu, bruscamente.
— Alguém irá aí estar, acredite-me, alguém irá aí estar… e depois irão saber…
— Nesse caso, serei eu essa pessoa — sugeri-lhe. — Olhe, o senhor fica em casa com a sua mulher e eu vou… e, caso veja o automóvel, prometo contar-lhe. Se não o vir…bem, então poderei afastar-me com a consciência tranquila.
— Com a consciência tranquila… — repetiu ele.
Tentava convencê-lo a cada momento em que o encontrava sozinho. Punha toda a minha vontade e energia nas minhas persuasões. De repente, tal como uma porta que estivéssemos a tentar abrir, e que tivesse resistido a todas as chaves, menos à última, ele acabou por ceder. Sim, seria eu quem iria até à vereda. Ele não me acompanharia.
E assim foi.
Sendo, tal como já antes mencionei, uma novata a contar histórias, talvez não consiga dar-vos a perceber que me era bastante difícil ir até lá, que me sentia ao mesmo tempo uma cobarde e uma heroína. Essa questão de um carro imaginário que apenas um pobre agricultor idoso poderia ver, talvez vos pareça comum e vulgar, mas não o era para mim. Não sei se estarão a perceber, a ideia desse automóvel tomara conta da minha vida durante semanas e meses, dominara-a, mesmo antes de me ter apercebido desse poder. Era isso o temor que eu conhecera ao passear com esse casal, o medo que fazia parte dessa casa, que acordava e se deitava com eles. O temor que o idoso tinha desse automóvel e o temor que sentia desse seu mesmo medo. Para além disso, esse homem era tremendamente convincente. Quando falávamos com ele, era-nos difícil perceber que se tratava de um louco, e que não havia, que não poderia haver, um horrível automóvel misterioso que fosse visível para ele, mas invisível para as outras pessoas. E quando ele dizia que, se não estivesse nessa vereda, outros o iriam ver, teria sido mais fácil dizer que se tratava tão-só de um «Absurdo», mas não era assim tão fácil pensar que se tratava de um mero «Absurdo», e muito menos sentir que o era.
Percorri essa vereda ao entardecer, desejando não me pôr a pensar no que poderia ser o horror que se escondia nesse automóvel violeta. Porém, tentava evitar pensar em sangue. Não iria também embarcar em transferências de pensamento, em algum desses disparates transcendentes. Não me deixaria hipnotizar de modo a ver coisas.
Ao caminhar por essa vereda, lembrei-me de lhe ter prometido permanecer cinco minutos junto dessa curva, e aí fiquei, nesse lusco-fusco, a olhar para os campos e para o mar. Viam-se as estrelas pálidas e nada aí se mexia. Tinha o relógio na mão e os cinco minutos pareciam-me não mais chegar ao fim. Quatro… quatro e meio… quatro e três quartos… cinco. Voltei-me de súbito, e vi que ele me tinha seguido… Encontrava-me a cerca de dez metros e reparei que o Sr. Eldridge não estava a olhar para mim. Estava voltado para o automóvel que irrompeu nessa vereda. Este surgiu muito depressa e, antes de chegar ao local onde ele se encontrava, pude ver que era bastante horrível. Dei um salto para trás contra os arbustos, partindo alguns ramos secos, tal como teria feito para me proteger de um automóvel de verdade… embora soubesse que esse não era um carro verdadeiro. Parecia sê-lo, mas não era.
Ao aproximar-se desse homem, vi-o recuar com um salto, depois ouvi-o gritar: — Não, não, não, não… não aguento mais… — foi isso que ele disse e, em seguida, atirou-se para o meio da estrada, para a frente do carro que continuou por cima dele com os seus enormes pneus… Depois, o automóvel passou por mim e eu percebi qual era esse horror. Não havia sangue… não era isso que era horrível. A cor desse automóvel era, tal como ela dissera, violeta.
Corri para o idoso e tentei levantar-lhe a cabeça. Estava morto. Encontrava-me agora mais calma e mais em controlo, e pensei que isso seria para mim algo digno de ser louvado. Fui até uma casa onde um lavrador estava a tomar chá… este juntou uns quantos homens e trouxe uma padiola improvisada.
Quando contei o que se passou à mulher, a primeira coisa inteligível que ela proferiu foi: — É melhor para ele… Não importa o que ele fez, já pagou por isso… — Assim, ela parecia saber… ou adivinhar… mais do que ele pensara.
Fiquei com essa senhora, que não viveu muito mais tempo, até ela ter falecido.
Talvez pensem que esse homem tivesse sido atropelado e morto por um automóvel verdadeiro, que, por acaso, tivesse passado por aí a essa hora específica e que, de entre todas as cores possíveis, até fosse violeta. Ora, um verdadeiro automóvel deixa marcas na vítima quando a mata, não é verdade? Todavia, quando levantei da estrada a cabeça do Sr. Eldridge, não vi nele quaisquer marcas, não vi sangue nem ossos partidos. O seu cabelo também não estava despenteado nem a sua roupa rasgada ou amarrotada. Digo-vos que não havia nele o mais leve traço de lama, exceto no local onde tocara na estrada, ao cair. Do mesmo modo, também não vi na lama quaisquer marcas de rodas.
O automóvel que o matou surgiu e desapareceu como uma sombra. Quando o homem se atirou para o chão, o carro desviou-se propositadamente, para que os pneus passassem por cima dele.
Morreu, segundo disse o médico, de um ataque cardíaco. Eu sou a única pessoa que sabe que ele foi morto por um automóvel violeta, que, depois de o ter feito, continuou silenciosamente em direção ao mar. E o carro estava completamente vazio, sem uma única pessoa no seu interior. Tratava-se apenas de um automóvel violeta que deslizava pelas veredas, rápido e silencioso, e que se encontrava completamente vazio.
Edith Nesbit (1858-1924) foi uma escritora inglesa cujo renome se deveu sobretudo aos seus livros para crianças. No entanto, para além desta faceta, E. Nesbit também escreveu poesia, um número considerável de romances e uma série de contos que poderemos incluir na literatura fantástica da Época Vitoriana e dos começos do século XX e que contrastam manifestamente com a sua produção infantil. Estes, ao contrário de outros do mesmo género que lhe são contemporâneos, caracterizam-se sobretudo pelo seu apelo constante à participação do leitor e pela sua enérgica sequência narrativa. O conto que aqui incluímos, cujo título original é «The Violet Car», foi publicado pela primeira vez em 1910, num livro de contos da autora intitulado Fear.