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Capitão Falcão e a Beleza de Matar Fascistas

por João Monteiro


O fascismo voltou a estar na moda, e não apenas nos parlamentos europeus, também nos palcos, com o sucesso (e as reacções dos espectadores) à peça Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. O seu autor e encenador, Tiago Rodrigues, figura no elenco do único filme que satiriza directamente o fascismo português, Capitão Falcão, de 2015. Hoje em dia, encontra-se em avançado estado de esquecimento, mas talvez esteja na altura de o recordar e perceber que, na verdade, nada mudou.


Foi há oito anos que estreou o piloto de uma série sui generis, durante a abertura da 5.ª edição do MOTELX. Tratava-se de uma produção da Individeos, produtora de O Mundo Catita, com Manuel João Vieira, denominada Capitão Falcão, que relata as aventuras do primeiro super-herói português… ao serviço do Estado Novo. A Salazar respondia directamente e consigo trazia o Puto-Perdiz, um ajudante vestido com o uniforme da Mocidade Portuguesa. Capitão Falcão é a primeira e única sátira ao Estado Novo, criada para qualquer meio audiovisual. Ou melhor, é antes uma sátira à Propaganda do Estado Novo que moldou uma ideia de patriotismo cujas características ainda estão presentes no nosso quotidiano. Os argumentistas João Leitão e Nuria Leon Bernardo são de uma geração posterior à revolução, por isso nunca poderiam almejar a produzir uma ficção que retratasse a realidade vivida pelos pais e avós. É antes através do imaginário artístico, criado pela «Política do Espírito» de António Ferro, que ainda hoje sobrevive através de alguns chavões que saem pela boca do Capitão, sempre que acerta num comunista – «Angola é Nossa!», por exemplo – que o seu humor triunfa. No entanto, Capitão Falcão tornou-se um herói cinematográfico, ideia que parece ter saído do extinto Secretariado de Propaganda Nacional. Estreado provocativamente num 25 de Abril, em muitas salas pelo país fora, ficou muito aquém das expectativas em termos de bilheteira, e a piada parece ter passado ao lado do público.

Um dos membros do elenco, Tiago Rodrigues, que escreveu e encenou uma das peças mais polémicas dos últimos tempos, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, afirmou, em entrevista, que a obra havia adquirido propriedades proféticas, tendo em conta a subida da extrema-direita na Europa. Ora, em 2015, os ventos populistas ainda não sopravam com a mesma força pela velha Europa, e o filme de João Leitão acabou por não fazer a catarse do fascismo luso na tela. Para compreender a unicidade deste filme no panorama cinematográfico lusitano, é preciso recuar bastante e olhar para as tentativas de se fazer um cinema propaganda à séria em Portugal, e, em particular, para o filme de António Lopes Ribeiro, A Revolução de Maio, realizado setenta e oito anos antes. Este é um dos dois únicos filmes financiados directamente pelo SPN – o outro é O Feitiço do Império, de 1940 – que podem ser considerados de propaganda – ou de «exaltação patriótica» durante o Estado Novo. Desde a sua exibição pública, nunca foi produzido um filme de contra-propaganda. Capitão Falcão preenche essa lacuna quarenta e um anos depois da Revolução dos Cravos, e isso provavelmente diz muito da história recente. Mas vamos olhar mais de perto para ambos filmes.

 

ÉS PORTUGUÊS OU ÉS ESPANHOL?!

A obra de Lopes Ribeiro, vista sob um olhar contemporâneo, parece bastante empenhada em ser aquilo a que se poderia chamar um «falso mau filme», igualmente meta do filme de João Leitão. A diferença reside que Lopes Ribeiro não apontou ao registo humorístico (apesar da presença desconcertante do seu irmão Ribeirinho), mas antes para «informar primeiro e depois formar a população», tal era a visão da função do cinema para o próprio Salazar. E que população era esta a quem o filme se dirige de forma primária e paternalista? À grande franja de população analfabeta (dentro e fora das cidades) e às grandes massas operárias onde residia a ameaça de insurreição comunista, num país isolado da Europa e do mundo. O filme, no entanto, exalta mais o Estado, através da polícia política, do que propriamente a pátria. Logo no início, percebe-se através do diálogo de dois agentes que a polícia tem olhos em todas as fronteiras, e durante o filme mostra, cabalmente, que não há como enganar o aparelho estatal, tecnologicamente avançadíssimo (equipado até com postos «radiogonométricos»), mas, ao mesmo tempo, profundamente humano e justo. Esta ideia é reforçada durante todo o filme, que dá a entender que cada conversa tem sempre um ouvinte dissimulado.

Mas é o humor que sobressai de um visionamento contemporâneo deste material outrora levado muito a sério, e é, curiosamente nesse aspecto, que o filme mais se aproxima de Capitão Falcão. O filme centra-se num bolchevique regressado do exílio e pronto para acender o rastilho de uma revolução. Numa reunião clandestina, os seus camaradas dão-lhe conta de que as coisas mudaram enquanto esteve fora e aconselham-no a visitar uma das grandes obras do Estado Novo, o Instituto Nacional de Estatística, de modo a actualizar-se. O bolchevique dirige-se então ao moderno e sumptuoso edifício, detendo-se apenas na contemplação de outro grande equipamento do regime – o Instituto Superior Técnico –, e descobre com total perplexidade que tudo havia mudado: dos números do desemprego à quantidade de árvores plantadas. Numa visita ao norte do país, descobrem que já nem os operários do Porto de Leixões estão interessados nas chatices das revoluções. Há ainda uma faceta musical de A Revolução de Maio que põe o protagonista a cantar uma canção de amor num jardim, para não falar de um bolchevique puro, o mirabolante personagem soviético Dimoff, que parece ter saído directamente de um filme de Eisenstein. Até ele tem o seu momento musical, cantando uma canção em russo sobre «nuvens negras e pesadas no céu». E depois, há sempre os diálogos antológicos como «Há coisas que um português e um patriota não pode alhear-se» ou essa frase final do bolchevique arrependido «Se me prenderem, não fazem mais que o seu dever. Eles é que têm razão!».

Há, na maioria dos filmes produzidos durante o Estado Novo, temas recorrentes: a conciliação de classes, as virtudes da pobreza honesta e alegre ou a vida no campo como modelo de virtudes. Mas há um tema que é restrito aos filmes produzidos directamente por António Ferro, que é o da conversão. No decorrer do filme assistimos à salvação de uma alma das garras do comunismo internacional, projectando a noção de que o aparelho do regime não se dedica apenas ao esmagamento dos opositores, mas ao invés, de uma forma muito condescendente, lhes permite que mudem de opinião e que sucumbam perante as «verdades evidentes do Estado Novo». Em Capitão Falcão, o tema que ocupa grande parte do filme é o da reconversão do personagem principal, entretanto transformado em «comuna». Se no filme de 1937, basta o hastear da bandeira nacional para a epifania do bolchevique, Falcão precisa de ser visitado em sonhos pelo fundador da pátria, D. Afonso Henriques, alguém que, apesar de ser «filho de espanhóis, isso não o impediu de ser o primeiro português». Os tempos são outros.

 

PORTUGUESES DE BEM

É interessante que Capitão Falcão, cuja linguagem fílmica assenta essencialmente em modelos estrangeiros, se dirija, em primeiro lugar, ao público português. E por mais estranho que seja escrever isto quarenta e nove anos depois do 25 de Abril, há que destacar e valorizar a coragem por parte dos criadores deste filme. Isto porque António de Oliveira Salazar, eleito o «português do Século» por um programa televisivo em 2007, nunca tinha sido representado directamente, ou seja, sem ser através de personagens alegóricos desde Brandos Costumes (1975), de Seixas Santos, até O Barão (2011), de Edgar Pêra. Só em 2009, num filme/série co-produzido pela SIC chamado A Vida Privada de Salazar, em que a faceta romântica do ditador, é encarnada pelo galã Diogo Morgado. Em 2015, no filme, o escolhido para desempenhar o ditador foi o veterano actor José Pinto, que soube o que era viver sob o salazarismo, e talvez por isso sente-se um tremendo prazer do actor em poder estar envolvido neste acto de dessacralização do ditador. A certa altura, vemo-lo a tirar do forno um bolo-rei, trajando um avental que condiz com os naperons na cor da bandeira de Portugal. Este aspecto de audácia é muito importante realçar e não ignorá-lo num juízo crítico sobre o filme. Porque, no caso do cinema português, a coragem também devia levar uma estrelinha. Não nos podemos esquecer que vivemos num regime democrático há quase cinquenta anos, mas, em 1988, o Humor de Perdição foi cancelado e retirado do ar por troçar figuras históricas portuguesas. Quatro anos mais tarde, já na década de 90, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, foi riscado da lista de concorrentes ao Prémio Literário Europeu. E importa reter estes dois episódios por terem ocorrido durante as maiorias absolutas encabeçados pelo mesmo homem que ainda cumpriu dois mandatos como Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Curiosamente, o filme termina com um discurso do próprio Falcão, ladeado por crianças da Mocidade Portuguesa, empunhando bandeiras nacionais, sustentando que «o patriotismo assenta na inação», numa clara alusão à presidência de Cavaco Silva, ainda em vigor à altura da estreia do filme. Mas talvez seja este o momento em que o filme, passados oito anos, descobre a sua própria faceta profética.


NOTAS

As principais influências do filme foram a série britânica Garth Marenghi’s Darkplace, a «websérie» Italian Spiderman, a série de animação Futurama, entre outras.

Uma das referências de Capitão Falcão é a série Duarte & C.a, de Rogério Ceitil, através da inclusão no elenco de Rui Mendes e Luís Vicente, respectivamente «Duarte» e «Átila». Hoje gozando de um merecido estatuto de culto, foi para o ar em 1985 e um dos seus trunfos era a subversão de género, eram as mulheres que batiam em toda a gente.


*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrada na
revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.

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