As bruxas contam-se, sem dúvida, entre as personagens mais comuns das histórias populares, em que aparecem como mulheres velhas, muitas vezes de unhas afiadas, nariz grande e com uma verruga – pormenores anatómicos para que poderão ter contribuído, no último século, as imagens popularizadas pelos filmes de Walt Disney –, conhecedoras das artes ocultas da magia negra.
AS ORIGENS DO TERMO
O termo «bruxa» é de origem etimológica incerta, claramente partilhada com as palavras «bruja» (castelhano) e «bruixa» (catalão); nas regiões francesas de Gasconha e Bearne, junto aos Pirenéus, é também utilizada a palavra «brouche», o que leva alguns linguistas a apontarem a zona pirenaica como o local de nascimento do vocábulo. Há ainda quem sugira uma ligação com o termo italiano «brucia» (que significa «queima»), havendo ainda quem encontre possíveis ligações a vocábulos protoceltas, como «brixtom» e «brixtu», ligados a noções de magia, feitiçaria.
Seja qual for a origem do nome, a figura em si é bem conhecida, e logo lhe associamos, por exemplo, a arte de voar encavalitada numa vassoura, assim como a peculiaridade de se fazer muitas vezes acompanhar por um gato preto ou outros animais, cujos corpos seriam supostamente habitados por espíritos designados por Familiares.
Não faltam na História referências a bruxas célebres, como Circe, figura da mitologia grega, filha do deus Hélios e da deusa Hécate, figura bem conhecida da Odisseia, do poeta grego Homero, que Ulisses encontra na ilha de Eana, e que é igualmente referida no poema Metamorfoses, do romano Ovídio. Em tempos mais modernos, é sobejamente conhecido – e tem sido até alvo de tratamento cinematográfico – o caso das Bruxas de Salem (localidade costeira do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América), durante o qual, entre 1693 e 1694, mais de duas centenas de pessoas foram acusadas de práticas de bruxaria, sendo trinta delas consideradas culpadas e vinte (quinze mulheres e cinco homens) efectivamente executadas, tendo outras morrido na prisão.
AS BRUXAS NACIONAIS
Entre nós, por sua vez, ficou famosa uma curandeira da vila de Arruda dos Vinhos, não muito distante de Lisboa, precisamente conhecida como a Bruxa da Arruda. A designação aplicar-se-ia, na verdade, a mais do que uma mulher de determinada família, dizendo-se que os seus conhecimentos teriam sido obtidos de Comendadeiras da Ordem de Santiago, esposas dos cavaleiros dessa Ordem.
No final do ano de 1906, o Diário de Notícias publicava um trabalho intitulado «A Bruxa da Arruda», a qual dava pelo nome de Ana Loira. Segundo essa reportagem, a mulher teria já «uma fortuna avaliada em vinte contos», sendo que as suas filhas, Assumpção da Piedade Loira e Maria da Piedade Loira (de entre dezanove filhos que teria tido ao todo), davam também consultas, para «curar gente e adivinhar coisas».
Aqui está a descrição, transcrita do jornal, que Ana Loira fazia das suas actividades: «Uma pessoa quando adoece vem cá para eu a escutar e ver o que tem e depois faço a oração e leio na água, com letras d’azeite, a doença que essa pessoa tem. Quando o doente não pode vir manda outra pessoa qualquer, que traz uma peça do seu vestuário, sendo sempre melhor vir uma camisa, ceroulas ou meias. Essa peça deve ser tirada do corpo da pessoa doente e sem ser lavada ou posta ao ar, embrulhada num papel ou n’um saco. Eu então tiro para fora essa peça de roupa, ponho-a sobre o oratório e depois faço a oração. Para saber a doença que essa pessoa tem, cheiro muito bem a tal roupa e depois leio a doença na água, como já lhe disse.»
Dizia-se que a fama do êxito dos tratamentos de Ana Loira crescera mais após ter curado uma menina, filha de um médico de Setúbal, que a ela recorrera, perante o fracasso dos meios de tratamento científico que tinha experimentado, enquanto a Bruxa da Arruda deu conta do problema ao cabo de apenas três dias; a lenda diz que durante os primeiros dois dias, a rapariga doente não comera nem bebera nada, mas, no terceiro dia, tendo a bruxa colocado junta à cama da paciente um alguidar com leite, da boca da rapariga saiu uma cobra e a pobre ficou curada!
Para além dos conhecimentos em matéria de ervas e outras plantas medicinais, a tradição oral atribui à bruxa outros trabalhos, como o tratamento do mau-olhado e os exorcismos.
Um outro caso que surge nas lendas da Arruda refere-se à filha de um casal de agricultores abastados, que ninguém conseguia curar de um mal que a afligia. A bruxa, com a ajuda de um prato de azeite e outro de água e após algumas rezas, teria então diagnosticado mau-olhado. Segundo ela, os pais encontrariam debaixo da cama da pequena um sapo com a boca cosida, o que motivaria o progressivo enfraquecimento e inevitável morte da menina, à medida que o sapo ia também morrendo. Seguindo as recomendações da mulher, os pais lá encontraram o sapo, descoseram-lhe a boca e a menina foi então melhorando.
A verdade é que a fama da mulher se espalhou por todo o país e dela resultou a confecção de uns saborosos doces característicos de Arruda dos Vinhos, pequenas tortas de noz, recheadas com doce de ovos e cobertas por um fio de chocolate, que dão precisamente pelo nome de Bruxas d’Arruda e cuja degustação se recomenda vivamente a quem passe por aquelas bandas.
DA ACEITAÇÃO À CONDENAÇÃO
Deve notar-se que, até ao século XIII, a Igreja cristã não condenava severamente as alegações de bruxaria e foi só nos séculos seguintes que as ideias de práticas mágicas, de feitiçaria, se associaram à de heresia, caindo por isso sob a alçada da Inquisição, criada já no século XII, em França, para combater movimentos considerados heréticos, como os dos cátaros, valdenses, fraticellis, hussitas, beguinas e conversos (muçulmanos e judeus alegadamente convertidos ao catolicismo, mas que secretamente continuavam a cumprir os preceitos das suas próprias igrejas). O início do Renascimento, por meados do século XIV, alargou o âmbito de acção da Inquisição, alargando-o a diversos países, entre eles, a Espanha e Portugal, resistindo a organização até ao início do século XIX.
Foi com o nascimento da Inquisição que a iconografia cristã deixou de representar o Diabo como um anjo caído, emprestando-lhe a aparência geral de deuses pagãos como o grego Pã e o celta Cernuno, usualmente representados com chifres como os de um animal. Daí resultou, por sua vez, a ideia de que as bruxas seriam adoradoras do Diabo.
Na década de 1480, a publicação do Malleus Maleficarum (literalmente, o «martelo das bruxas»), livro redigido pelos inquisidores alemães Heinrich Kraemer e Jakob Sprenger e que consistia numa espécie de manual de combate aos hereges, veio fornecer um guia particularmente cruel para as práticas inquisitoriais, advogando o ódio, a tortura e a morte.
AS BRUXAS NO FOLCLORE EUROPEU
Deixemos, porém, os aspectos históricos e sociais e concentremo-nos mais nas bruxas que povoam o folclore europeu.
Quem não se lembra, por exemplo, da bruxa antropófaga que aterroriza as crianças no conto «Hänsel und Gretel», incluído na obra Kinder- und Hausmärchen (os célebres «Contos de Grimm»), colectânea organizada pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm e publicada em 1812? Num breve estudo intitulado «Bruxas e bruxaria na literatura infantil dos irmãos Grimm», publicado pelo Fórum de Ensino, Pesquisa, Extensão e Gestão (FEPEG), da Universidade Estadual de Montes Claros (Minas Gerais, Brasil), as autoras Natália Silva Rocha e Telma Borges da Silva prepararam uma lista de bruxas que ocorrem nos contos dos Grimm e respectivas características que, com a devida vénia, aqui reproduzimos:
Título do conto: «Irmãozinho e Irmãzinha» («Brüderchen und Schwesterchen»)
Personagem: Madrasta, bruxa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Maldosa, invejosa, maquiavélica
Destino da bruxa: Morre na fogueira
Título do conto: «João e Maria» («Hänsel und Gretel»)
Personagem: Bruxa
Descrição física: Velhinha muito franzina
Descrição psicológica: Canibalismo
Destino da bruxa: Morre queimada no forno
Título do conto: «Os seis cisnes» («Die sechs Schwäne»)
Personagem: Bruxa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Esperta, maldosa
Destino da bruxa: —
Título do conto: «Ave-achado» («Fundevogel»)
Personagem: Cozinheira, bruxa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Perversa, desesperada
Destino da bruxa: Morre afogada
Título do conto: «O querido Rolando» («Der Liebste Roland»)
Personagem: Madrasta, bruxa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Invejosa, perversa, violenta, vingativa
Destino da bruxa: Morre compelida a dançar sem parar entre espinhos
Título do conto: «A ondina» («Die Wassernixe»)
Personagem: Ninfa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Exploradora
Destino da bruxa: Volta para o poço
Título do conto: «A lâmpada azul» («Das blaue Licht»)
Personagem: Bruxa
Descrição física: Velha bruxa
Descrição psicológica: Aproveitadora, vingativa
Destino da bruxa: Morta por uma criatura mágica
Título do conto: «O soldado e o carpinteiro»
Personagem: Bruxa
Descrição física: Velha senhora
Descrição psicológica: Rancorosa, receosa, enganadora, falsa
Destino da bruxa: Morta pelo soldado, o carpinteiro e o príncipe
Título do conto: «A noiva branca e a noiva preta» («Die weiße und die schwarze Braut»)
Personagem: Madrasta, bruxa
Descrição física: —
Descrição psicológica: Invejosa, maldosa
Destino da bruxa: Morte (colocada nua num barril com pregos e arrastada pelo mundo)
Título do conto: «Os seis criados» («Die sechs Diener»)
Personagem: Rainha feiticeira
Descrição física: Velha rainha
Descrição psicológica: Inclemente, pesarosa, teimosa
Destino da bruxa: —
Título do conto: «Jorinda e Joringel» («Jorinde und Joringel»)
Personagem: Bruxa
Descrição física: Velha curvada, amarela e ressequida, olhos vermelhos, nariz adunco, voz cavernosa
Descrição psicológica: Maldosa, implacável, violenta, traiçoeira
Destino da bruxa: —
Título do conto: «O cordeirinho e o peixinho» («Das Lämmchen und Fischchen»)
Personagem: Madrasta, feiticeira
Descrição física: —
Descrição psicológica: Maldosa, perversa
Destino da bruxa: —
Título do conto: «A velha do bosque» («Die Alte im Wald»)
Personagem: Bruxa
Descrição física: Velha
Descrição psicológica: Esperta
Destino da bruxa: —
Não obstante a profusão de bruxas presentes na tradição europeia, uma das mais estranhas é porventura a Baba Yaga, figura do folclore eslavo.
O nome «Baba» corresponde, no idioma ucraniano moderno, a бабуся (= babusya, que significa «avó») ou, em russo moderno, é бабушка (= babushka, que significa «avó»); em polaco é babcia ou babunia, com o mesmo significado. Também em servo-croata, bósnio, macedónio, búlgaro e romeno a palavra baba quer dizer «avó» ou simplesmente «mulher velha». Já o termo «Yaga» tem raízes etimológicas mais controversas, não havendo consenso entre os linguistas a respeito do seu significado, embora seja comparada com palavras como a servo-croata jeza («horror», «estremecimento», «arrepio»), a eslovena jeza («ira»), a jězě («bruxa») do idioma checo antigo ou a jezinka («ninfa má dos bosques», «dríade») do checo moderno e ainda a jędza («bruxa», «mulher maléfica», «fúria») do polaco.
Pois a Baba Yaga é um ser sobrenatural (por vezes, uma de três irmãs com o mesmo nome) que tem o aspecto de uma mulher deformada e/ou de aparência feroz, voa encarrapitada numa espécie de canhão, empunhando um pilão.
O mais estranho de tudo é que a Baba Yaga vive no meio da floresta, numa cabana erigida sobre pernas de galinha e que se desloca pela floresta!
Associada à vida selvagem da floresta, a bizarra criatura revela grande ambiguidade, já que pode por vezes ajudar e até desempenhar um papel maternal em relação àqueles que a encontram, embora outras vezes lhes cause problemas. Diz-se também que devora criancinhas.
Segundo o Dr. Andreas Johns, que obteve o seu grau de Doutor em 1996, como uma dissertação intitulada Baba Jaga, the Ambiguous Mother of Russian Folktale, publicada em livro em 2004, trata-se de «uma das mais memoráveis e distintas figuras no folclore da Europa oriental», sendo «uma figura multifacetada, capaz de levar os investigadores a verem-na como uma nuvem, a Lua, a Morte, o Inverno, uma serpente, um pássaro, um pelicano, uma deusa da Terra, uma matriarca totémica ancestral, uma iniciadora feminina, uma mãe fálica (segundo o conceito psicanalítico) ou uma imagem arquetípica».
Embora se possa encontrar representada em gravuras pelo menos a partir do século XVII, a primeira referência clara à Baba Yaga surge em 1755, no livro Российская грамматика («Gramática Russa»), da autoria de Mikhail V. Lomonosov (1711-1765) erudito, escritor, poeta e cientista russo, responsável pela descoberta da atmosfera de Vénus e pela lei da conservação da massa nas reacções químicas, ao mesmo tempo que autor de importantes contribuições nas áreas das Ciências Naturais (foi o fundador da moderna Geologia), da Física, da História, da Arte, da Filologia, etc. Naquela obra, a Baba Yaga é referida duas vezes, a par com outras figuras da tradição eslava.
Nas histórias em que aparece, o nome de Baba Yaga é por vezes acompanhado dos epítetos kostyanaya noga («pernas ossudas») ou s zheleznymi zubami («com dentes de ferro»). Alguns autores têm proposto a hipótese de que a Baba Yaga date de muito antes do século XVII, sendo, em vez disso, a equivalente eslava da divindade grega Perséfone, filha de Zeus e deusa das ervas, flores, frutos e perfumes. Baba Yaga, na sua ambiguidade acima referida, presente em diversas culturas e em muitas histórias, simbolizaria então a natureza indomável e imprevisível do espírito feminino.
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrada na revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.