Talvez o medo nasça do sexo. Não falo do medo da castração que tanta felicidade trouxe a Sigmund Freud, mas do medo que alimenta tanto cinema de horror. Vai de A Pantera, de Jacques Tourneur, a Psycho, de Hitchcock, ao Dracula, de Bram Stoker ou A Semente do Diabo, de Roman Polanski.
Wes Craven sabia-o melhor do que ninguém, ele que, para escapar da família religiosa e da escola conservadora onde dava aulas, não hesitou em ir trabalhar para os filmes pornográficos de Los Angeles. Aí, talvez não tenha descoberto o sexo ou o medo, mas descobriu algo que levou para os seus próprios filmes: a ideia de que o sexo e a ficção do sexo são coisas diferentes e que se alimentam entre si.
A sua carreira no cinema mainstream começa, curiosamente para quem se tornou conhecido a explorar o medo adolescente, por explorar os medos dos pais. O primeiro filme, A Última Casa da Esquerda, contava a história de duas jovens raptadas, violadas e mortas por um gangue e a vingança sangrenta que os pais vão exercer sobre os membros desse gangue. É o típico primeiro filme de realizadores talentosos de série B – de baixo orçamento, de mau guião, com piores atores e direção inepta, mas filmado com uma energia e nudez que prende a atenção e uma vontade de chocar que ainda hoje nos incomoda. É ainda mais particular que o filme seja um remake em ambiente contemporâneo do filme de Ingmar Bergman, A Fonte da Virgem, sobre idêntica vingança, só que em contexto medieval, mística e não carnal, relutante e não quase exultante.
A versão de Craven, pelo contrário, é um filme que deseja tanto ser real que quase se esquece de ser filme. Por isso foi um pequeno escândalo na altura, alvo de críticas violentas e até de censura devido à sua crueza. E isso, de alguma forma, acabou por guetizar Craven. Talvez por isso, os seus filmes subsequentes – Os Olhos da Montanha e A Benção do Anjo Negro – foram também filmes de terror, desta vez sobre comunidades fechadas e sufocantes, corrompidas por segredos terríveis. Seria tentador ver nesses filmes elementos autobiográficos – que certamente têm – mas não foram os filmes marcantes de Craven, nem aqueles que melhor exprimiram a sua singularidade enquanto realizador.
Isso só iria acontecer com Pesadelo em Elm Street, de 1984, no qual Craven encontrou a sua forma singular – a história de um psicopata que habita os sonhos dos adolescentes e os mata. Era uma história inspirada tanto nas lendas dos íncubos – os demónios que possuíam mulheres adormecidas para lhes sugar a energia vital –, como nas histórias das vítimas do Khmer Vermelho, que sofriam de pesadelos tão terríveis que se recusavam a dormir, acabando alguns por morrer de ataque cardíaco. Era um filme em que Craven finalmente reconhecia a relação complexa e nada inocente entre a dimensão do real e a dimensão do sonho, da ficção.
Pois essa era a principal singularidade do filme: oscilar entre o mundo real e o mundo dos sonhos, ligados por um horror comum que supostamente só existia num deles.
No fundo, era como se o perigo não estivesse nos sonhos em si, mas na própria teimosia das fantasias das quais não nos conseguimos libertar. Esta teimosia do medo, por mais ficcional que seja o medo, levaria, dez anos depois, Wes Craven a assinar uma das sequelas de Elm Street. Em O Novo Pesadelo de Freddy Krueger, a história passa-se durante a rodagem de Pesadelo em Elm Street, ou seja, deliberadamente fazendo passar o medo dos sonhos para a realidade do filme, dentro do filme, e depois para o filme e depois para o próprio espectador, como se todas as dimensões de realidade e ficção não fossem mais do que canais ligados pelo medo.
Essa mesma ideia iria acabar por ganhar corpo e concretização numa das mais bem-sucedidas séries de filmes de horror de finais dos anos 90: Gritos. Aí, Craven vai mostrar personagens que são vítimas conscientes das próprias convenções dos slasher movies – no fundo, personagens que têm vidas de ficção e mortes reais – pois o seu mundo de fantasia não as pode proteger da crueza da realidade. Que é como quem diz que todas as histórias que inventamos para nos consolar ou entreter são incapazes de sanar o medo ou esconder o perigo.
Tal como diz a personagem Billy, os filmes não nos enlouquecem– tal como não nos dão a sanidade –, mas reinventam a loucura. Porque essa fantasia é definida por regras – como a regra de que nos filmes de terror não se pode ter sexo porque o sexo, como diz “Randy”, equivale à morte, ou ao sucumbir do medo.
Talvez, supõe Gritos, a racionalidade não faça mais do que conduzir o medo, mas continuamos a sucumbir a esse medo porque ele tem raízes mais fortes do que a nossa consciência – talvez o sexo, talvez outra coisa qualquer. E os filmes, ensinou-nos Crave, não são a vida, não nos protegem da vida – ou mesmo da morte. Apenas podem, como diz a personagem Billy, ajudar-nos a escolher o nosso género de filme ou o nosso género de vida.
Editorial da revista BANG! n.º 19, publicada em outubro de 2015