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Nova Vaga, Novas Capas: quando a ficção Científica ousou não se parecer com ficção científica

por Pedro Piedade Marques


Entre meados da década de 1960 e o início da década seguinte, a vaga de renovação e experimentação atingiu também a Ficção Científica publicada nos dois lados do Atlântico. Algumas editoras apostaram então numa reformulação visual para as capas desses livros, criando um portefólio original, variado e que permanece, até hoje, sem par na edição deste género.


Há uns anos, numa das suas crónicas na revista Believer, Nick Hornby contou que, certo dia, se encontrava numa fila de espera para o pagamento de um ou dois livros de Ficção Científica (FC), numa dessas livrarias de grandes cadeias. Reparando numa rapariga atraente atrás de si, que ostentava uma revista de arte com belo design, apercebeu-se de que ela iria julgá-lo também pelo livro de capa roxa com uma nave espacial, que rapidamente se apressou a esconder. A ansiedade fê-lo perguntar-se: Que mensagem estou a dar à rapariga sexy que está atrás de mim na fila do balcão da livraria, com este livro de FC de capa tão pirosa nas minhas mãos?

A situação apresentada por Hornby é, obviamente, explorada pelo lado da comicidade auto-depreciativa, mas está no centro de uma questão latente na edição de FC há décadas: as capas dos livros deste género devem apelar apenas aos iniciados e conhecedores do mesmo (aqui representados por Hornby, apesar de a sua desculpa ser de que apenas comprara esses livros para poder escrever o texto para a Believer…), ou devem servir de ponte, ou – usando uma outra metáfora – de isco, para um público mais abrangente, quiçá mais “cool” ou “erudito” (aqui representado pela beldade com a “groovy art magazine”)? Devem ser exclusivas ou arriscar ser inclusivas?

Não é necessário um conhecimento profundo do tema para, numa visão diacrónica pelos poucos livros que nos permitem consultar o portefólio da edição de FC ao longo do século xx, obtermos uma resposta clara a essa questão: aparentemente, dos anos de 1920 à incontornável década de 60, o género reforçou-se pelo recurso exclusivo a uma iconografia imediatamente reconhecível, em maior ou menor consonância com os temas e estilos dos textos publicados em revistas pulp ou edições de bolso. Não era apenas com a iconografia (foguetões ou discos voadores, monstros alienígenas, homens e mulheres com roupas e armas “futuristas”, seguindo a vaga do design streamline na América dos anos 30 aos 50) que se reforçava esse carácter exclusivo, mas também através do estilo (um naturalismo túrgido na representação de formas humanas, muita pele no caso das formas femininas) se procurava delimitar o campo do género, pois era dessa delimitação que o mesmo retirava a sua força e identidade.

Ora, são precisamente esses livros com portefólios de ilustração editorial para a FC (uso, como exemplo, o Science Fiction of the 20th Century, de Frank Robinson) que nos deixam perante um curioso hiato: que se passou, exactamente, entre meados dos anos 60 e o início da década seguinte? Podemos ver que os anos 70 são, na ilustração de FC, como, aliás, noutros campos, anos de nostalgia, de regresso mais ou menos irónico à tradição do pulp, mediada agora pela moda do Hiperrealismo e do uso do aerógrafo. Pulpier than pulp, quase. Livros como o de Robinson são claros na ponte entre essa tradição de décadas e a sua, mais ou menos (em muitos casos, bem menos), sofisticada reformulação comercial, a partir do início dos anos 70 até hoje. Mas o que se passou entre esses dois momentos? E essa viragem comercial e conservadora dos grafismos editoriais na FC terá sido uma reacção a quê?

O que aconteceu foi o mesmo que se passou em quase todos os campos de criação artística ou literária nos anos 60, no que, então, se convencionava chamar “mundo ocidental”: uma vaga (new, nouvelle ou nova, consoante as coordenadas) de experimentação formal e temática. Nesse espaço de quatro ou cinco anos, os temas da ficção especulativa cruzavam-se e confundiam-se com o zeitgeist: uma década de obsessão lunar e espacial nos EUA (e no outro lado do Muro), uma paranóia latente sobre o cataclismo nuclear, a incipiente ansiedade acerca da sobrepopulação e, incontornavelmente, o filme de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço (1968, que se seguia à sua adaptação de Nabokov: a FC era agora parte do cânone culto e já não uma diversão de drive-in), somavam-se à já enorme qualidade literária do género, nos dois lados do Atlântico, para fazer da FC um dos mais excitantes cantos criativos do panorama literário e cultural desses últimos anos de 60. Como escreveu David G. Hartwell, o que identificava os autores e editores americanos e ingleses associados à New Wave era uma firme convicção de que «a FC era um caso especial dessa categoria genérica, a literatura, e, como tal, podia aspirar à criação de “arte” (ao nível literário de Joyce, Proust, Pound, Eliot)».

FC COMO «ARTE»: OS INGLESES ADIANTAM-SE 

Que isso se reflectisse nas capas de algumas edições é, mais do que uma agradável constatação para o explorador gráfico, um efeito perfeitamente compreensível. As grandes editoras e imprints de Londres e de Nova Iorque estavam permeáveis à onda de experimentação estética desse período, e o resultado é, por um lado, um redesenho profundo ou uma aposta em design e ilustrações menos tradicionais nas colecções de FC em paperback (Penguin e Panther, em Londres; Ballantine, em Nova Iorque), e por outro, e mais importante, uma elevação da aposta com a criação de séries exclusivas em hardback, de que o caso mais extraordinário é a série de livros de FC da Doubleday, responsável por algumas das mais soberbas capas que o género conhece nesses anos e até meados dos anos 70.

Na FC anglógrafa, o movimento é cunhado, quase em simultâneo, de Londres à Califórnia, mas são os ingleses que ganham nítida vantagem. Aparecendo ao mesmo tempo da explosão Pop britânica desses anos, nomes como Ballard, Brunner ou Aldiss tornam-se sinónimos dessa revolução temática e estilística da prosa especulativa, tão radical que roça quase o escândalo (e Ballard provará desse cálice mais tarde). Mas, em Inglaterra, os autores de uma FC nova são acompanhados por editores ao seu nível, e, sobretudo, pelos novos artistas gráficos. Quando o jovem Michael Moorcock entra, em 1964, como editor da New Worlds, a decana das revistas de FC inglesas, tem um programa muito simples: fazer de J. G. Ballard o estandarte da nova literatura especulativa e o eixo central da sua revista. Ora, Ballard traz com ele o seu amigo, Eduardo Paolozzi, uma das estrelas em ascensão no panorama da Pop Art britânica. A mensagem era muito clara: esta nova vaga de FC exigia, tal como trinta anos antes os autores modernistas o tinham exigido aos seus editores, uma nova imagem. Paolozzi chega a fazer uma capa para a revista, e ambos partilham a sua colaboração na New Worlds com participações na revista Ambit, que publicava a nova poesia inglesa (em que outro período, o maior escritor de FC do momento escreve também numa revista de poesia?). Conseguindo um milagroso apoio do Arts Council em 1968, a revista não esmorece o seu plano inicial, bem pelo contrário: a experimentação torna-se de tal forma acentuada, que o próprio “espartilho” do género da FC é posto em causa. Este fascinante cul-de-sac chega ao seu termo em 1971.

Na edição em paperback, a Penguin encontra um rival na Panther, no que toca à urgência de renovar a imagem das suas edições de Ficção Científica. Na primeira, a década começa com apropriações de imagens dos Surrealistas, ainda sobre a grelha concebida por Romek Marber (Tanguy para Ballard, Ernst para Dick), com a inclusão de uma ou outra capa de um designer da nova geração (como, por exemplo, Herbert Spencer). Trata-se de um programa claro: a “nobilitação” de um género, não apenas pela sua inclusão numa editora prestigiante, mas também pela sua associação iconográfica à nata do Modernismo (além de quadros surrealistas, são usados pintores abstractos como Kandinsky ou Klee. A Jonathan Cape fará o mesmo com as suas edições em capa dura para os livros de Ballard, recorrendo a quadros e desenhos de Max Ernst e Dalí, e marcando-as com um detalhe importante: a ausência da expressão “science fiction” das capas). Em 1967, o jovem director artístico Alan Aldridge cria uma série de capas para a série de FC que se sustentam quase apenas nas suas ilustrações muito heterodoxas e já muito Pop. Após a saída de Aldridge da Penguin, e já sob a direcção do designer David Pelham, Franco Grignani redesenha por completo a colecção de FC em 1968, e aparecem então as capas abstractas: a imagem da FC da Penguin dá um passo enorme a caminho da experimentação e das novas soluções de vanguarda. A capa da edição da novela pós-apocalíptica Davy, de Edgar Pangborn, é disso um exemplo notável pela sua simplicidade cromática e de composição.

A Panther opta pela abstracção a partir de detalhes fotográficos, conseguindo efeitos inesperados e, em alguns casos, muito atraentes. A influência de 2001 é visível na capa de The Thirst Quenchers (1968), de Rick Raphael, pela inversão das cores e da sua saturação, a fazer lembrar os célebres minutos de efeitos visuais far out da viagem a «Jupiter and beyond», influência a que os livros de Grignani na Penguin também não escapam. Às serifadas desta série da Penguin corresponde, na Panther, a ubíqua Helvetica em caixa baixa, mas a grelha racionalizadora e o objectivo são comuns: a fuga ao excesso visual e à iconografia estafada do período precedente. Infelizmente, esta editora não irá manter estes níveis de qualidade no grafismo depois de 1970: as suas capas para a obra de Ballard, por exemplo, publicadas depois desse ano, serão uma prova do declínio quase generalizado da ilustração editorial no género.

Pelo contrário, a Penguin, graças ao labor de David Pelham como designer ou director criativo da editora ao longo da década seguinte, continuará a produzir excelentes capas de FC nestes moldes “iconoclastas”. A chegada das novas modas hiperrealistas na ilustração e da influência do cinema de FC mais comercial do final dos anos 70 não deixará, contudo, de se fazer sentir também, com os mesmos resultados negativos na qualidade das capas (Pelham sairá da Penguin em 1980, não sem alguma acrimónia).

Esse esforço é também notório nas edições do Science Fiction Book Club de Londres, e de uma forma mais radical e surpreendente: as capas, em edições hardback, são um misto das soluções mais abstractas da Penguin e mais fotográficas da Panther, e o seu belíssimo preto-e-branco faz lembrar as capas de Alvin Lustig para a New Directions, dos anos 40 e 50. De 1967 a 1971, o designer Terry James (do qual não sei nada mais a não ser o nome: é um ilustre ausente de qualquer “who’s-who” que consultei) é o único responsável por uma série de mais de cinco dezenas de capas para os lançamentos do clube, algo de, certamente, único na história do design editorial da FC: pela economia de meios e a genialidade das soluções visuais, a aspiração à “high art” da New Wave, de que fala Hartwell, teve aqui, sem dúvida, a sua mais inspirada tradução, mesmo quando muitos dos títulos aqui “encapados” não pertenciam sequer ao movimento.

DO OUTRO LADO DO OCEANO

Na América, o caso da Doubleday, nesta onda de renovação gráfica, não é menos interessante. Apostando num clube de FC próprio, a editora lança edições hardback de grande qualidade, criando um enorme contraste com a tradição das capas de livro de bolso pulp, a que o género estava remetido (nas edições da Dell ou da Berkley, por exemplo). A grelha inglesa é aqui preterida em favor de uma contínua experimentação (tipo)gráfica, apostando em ilustradores que vêm refrescar o imaginário com óbvias referências à Pop Art, Op Art, ao Surrealismo, e ao Psicadelismo (típico fenómeno americano a partir de 1967). Olhando para elas, fico sem saber se se tratava de uma subtil manobra de “contrabando” cultural por parte de uma casa editorial grande e conservadora, apresentando a FC sob a capa do mainstream, ou de uma genuína confiança nos valores culturais intrínsecos ao género, mas creio que esta última hipótese será a certa. Nunca Philip K. Dick, por exemplo, teve nos EUA capas tão boas como as que a Doubleday fez para Do Androids Dream of Electric Sheep? ou Ubik.

O pico desta fase é a edição, em 1970, de The Atrocity Exhibition, de J. G. Ballard, que Ronald Reagan, então governador da Califórnia, impediu que saísse para as livrarias e mandou destruir devido ao conto «Why I want to fuck Ronald Reagan». A capa era de Michael Foreman e a edição continha desenhos feitos ad hoc por este ilustrador (é, hoje, e como se compreende, a edição de Ballard mais rara e valiosa: nem o próprio autor possuía qualquer cópia). Era a assunção do surrealismo como constante referência na edição de FC, aqui bem escolhido (referência a Les Amoureux, de Man Ray), decantado e articulado com o design da capa (tal como nas da Cape em Londres, para os livros do mesmo autor).

No que toca às todo-poderosas (e muito conservadoras) editoras de paperbacks, houve igualmente, ainda que de forma menos sistemática, uma certa renovação gráfica face ao panorama imediatamente anterior, em que um ilustrador como Richard Powers era o modelo incontornável. O trabalho conjunto do casal Leo e Diane Dillon, por exemplo, pela sua qualidade e consistência, deu-lhes o acesso ao topo da profissão, com um estilo que devia menos à Pop do que a algumas fontes surrealistas doseadas com a influência expressionista e psicadélica no tratamento das linhas e planos de cor. A sua ligação às edições de Harlan Ellison, a partir da famosa antologia Dangerous Visions, em 1967, garantiu-lhes um culto fiel. Todo este panorama refrescante na edição de FC, marcando um período em que ostentar um livro de FC numa livraria não era motivo de ansiedade pelo “estigma” cultural, bem pelo contrário, e em que muitos livros do género podiam ombrear nas prateleiras com o mainstream mais elitista, ter-se-á mantido até à imposição (ou regresso sob novas roupagens), em meados dos anos 70, da ilustração naturalista (em que o aerógrafo substituiu lentamente os pincéis), preterindo a sugestão das texturas ou detalhes fotográficos abstractos e o jogo onírico de grafismo actualizado em favor de um imaginário muito pobre e reciclado da nostalgia pulp dos anos 50 (procurando uma analogia com o cinema, e arriscando a extrema simplificação, diria que foi o passo de 2001 ou THX1138 para Alien ou A Guerra das Estrelas).


*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da
revista BANG! n.º 8, publicada em outubro de 2010.

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