Observar o modo como o Fantástico, enquanto género ou tonalidade de representação, foi sendo introduzido nas artes, desde as primeiras realizações culturais até hoje, é observar, ao mesmo tempo, mudanças expressivas nas consciências dos indivíduos: nós não pensámos sempre da mesma maneira. O Fantástico é uma excelente ferramenta para estudar essas mudanças porque, em simetria com as camadas estratigráficas que formam o subsolo, é capaz de conservar as preocupações que rodeiam os criadores, mas antes de prosseguir com o tema deste ensaio, e perceber quais os motivos pelos quais não é possível reconhecer uma tradição de literatura fantástica no cânone literário português, é importante definir, com brevidade, alguns conceitos.
O fantasma na máquina
O homem dotado de pensamento que se reconheça a si mesmo.
Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum
Costuma apontar-se o período que correspondeu ao Renascimento como aquele em que a civilização ocidental se desagrilhoou da repressão medieval e, recuperando a tradição humanista das culturas grega e romana, progrediu em direcção ao modelo materialista do mundo que podemos observar hoje. Contudo, o fenómeno renascentista, longe de ter sido espontâneo e ter operado efeitos imediatos, foi, geograficamente, muito específico.1 Os efeitos sociais, industriais e culturais que delegamos à intervenção do Renascimento são fruto de novíssimas formas de pensar o mundo desenvolvidas no período que se apelidou de Iluminismo. O Renascimento tratou-se de um movimento que conheceu raízes herméticas e que nunca se libertou de uma visão idealista do mundo.2 Este “idealismo” nada tem a ver com a comum corrente filosófica, advogada por Hegel, entre outros, mas com uma percepção mais profunda que os indivíduos tinham do universo e do seu lugar na grande máquina do mundo; é legítimo dizer que até ao Iluminismo as civilizações acreditaram e se orientaram por uma explicação idealista do cosmos: uma interpretação sob a qual o mundo imaginal3, o mundo das ideias, é mais real do que o cenário físico em que nos movemos. Uma visão apoiada pela tese que expressa a criação da matéria pela mente e não o oposto.
Para um indivíduo crente no sistema idealista do mundo, a própria consciência é uma entidade. Isso foi bem satirizado no livro The Third Policeman, de Flann O’Brien, onde se pode ler que a personagem principal possui uma alma independente chamada Joe, com aspirações e objectivos diferentes dos seus. Na verdade, alma e espírito nunca foram a mesma coisa para os indivíduos crentes no modelo idealista do mundo: será preciso anotar que ambos foram conceitos distintos até à realização do oitavo concílio ecuménico (869-870), presidido pelos representantes do Papa João VIII; a unificação dos conceitos idealistas de alma e espírito serviu, sobretudo, para rasurar os credos herméticos dos textos eclesiásticos. Este momento é muito importante porque, se o hermetismo idealista se divorciou dos textos e rituais da religião organizada, continuou a ser transmitido não só no seio das sociedades secretas como através de um veículo insuspeito: o folclore.
As inofensivas narrativas infantis que os ingleses chamam de «old wives’ tales» e «nursery rhymes», os franceses de «contes de ma mère l’oye», e os portugueses de «histórias da carochinha» são mensagens de sabedoria hermética disfarçadas de cantilenas e rimas para serem decoradas facilmente. Charles Perrault, Madame d’Aulnoy, Wilhelm e Jacob Grimm foram todos ocultistas que reuniram sabedoria hermética nesse formato: sob a máscara da historieta moral, narrada naquilo a que se chama «linguagem dos pássaros» em terminologia iniciática (ou, em calão popular português, «Espírito Santo d’Orelha»), poderiam ser difundidas ao abrigo da censura inquisitória e eclesiástica.4
Foi a partir do Iluminismo que mudámos o nosso modo de ler. Publicado em 1678, o primeiro romance moderno La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette, iniciou um movimento inédito que foi mimado pelos romancistas posteriores: o nascimento da narrativa do interior do indivíduo.
A dádiva do nascimento do romance para a consciência do homem ocidental foi a noção de que as vidas dos indivíduos poderiam ser histórias com princípio, meio e fim: sequências pertinentes de eventos e ocorrências – de aventura pessoal.5 Embebida no materialismo filosófico que ameaçava derrubar o paradigma idealista do mundo, a nova consciência, assistida pelo nascimento das letras de expressão íntima, opostas às epopeias clássicas e outros relatos fabulosos de viagens, será responsável pela popularidade do herói individualista, desamarrado de responsabilidades colectivas. A abertura do mundo interno, da vivência isolada do outro, será hostil à inclusão de elementos fantásticos, apartados da vivência de todos os dias como ela é absorvida pelos cinco sentidos. Antes do nascimento do romance, o cânone literário possuía dois modos, a “tragédia” e a “comédia”, sendo que a segunda era considerada uma forma menor de literatura. Contudo, a tragédia podia servir-se de elementos fantásticos sem correr o risco de ser olhada com soberba pela academia e pelos leitores. Só mais tarde o Fantástico começou a ser entendido como um modo obsoleto de contar histórias: uma velharia do sistema idealista de olhar o mundo.
Carne Rebelde
There would be tears and there would be strange
laughter. Fierce births and deaths beneath umbrageous
ceilings. And dreams, and violence, and disenchantment.
Meryn Peake, Titus Groan
A literatura fantástica é, por natureza, subversiva. Alguns dos temas que a compõem acabam por encontrar um reflexo em trabalhos literários insuspeitos. O conto gótico «Six Weeks at Heppenheim», de Elizabeth Gaskell, possui, pelo menos, dois herdeiros de referência: os títulos Johnny Got His Gun, de Dalton Trumbo, e Die Verwandlung (A Metamorfose), de Franz Kafka. O livro The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner, de James Hogg, antecipa o modelo plasmado por John Fowles em The Colector. Até Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, não pode deixar de evocar uma colagem a The Day of the Triffids, de John Wyndam. Contudo, estes exemplos não são os melhores para debater o entrecruzar dos géneros fantásticos naqueles que em nada se lhe assemelham, porque não existe neles uma colagem ao modo como aquela que se pode ler nos romances editados sob a nomenclatura «Realismo Mágico».
O realismo mágico, como hoje se compreende, é um epígono da tradição literária do Norte da Europa que encontrou maior expressão em autores sul-americanos como Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. O primeiro foi buscar inspiração e temas para Pedro Páramo ao livro Sjálfstætt fólk (Gente Independente), de Halldór Laxness, publicado vinte e um anos antes. Existe em ambos os romances o respigar da iconografia mítica e religiosa dos países de origem, misturada num árido contexto rural descrito com realismo agreste. A introdução dos elementos fantásticos (os fantasmas de Rulfo e os espectros e bruxas de Laxness) no panorama político e económico do período pós-revolução industrial, no qual grassa a extrema pobreza e a confusão das populações diante da perda da cultura ancestral face aos avanços da sociedade tecnológica, serve para criar alegorias que veiculam nostalgia e utopia (como a socialista). Por outro lado, atendendo ao tom das suas narrações, não considero Borges um escritor de realismo mágico, como foi, por exemplo, o autor holandês Gerard Reve, mas um escritor de ficção fantástica.
A partir do século xviii, a literatura fantástica concebeu uma corrente designada «romance gótico», um spin-off dos romances de cavalaria6. Tratou-se, originalmente, de um produto anglo-saxónico que se generalizou pela Europa em diferentes denominações: «roman noir» em França, do qual o «giallo» italiano é um sucessor evidente, e «schauer-roman» (romance de arrepios) em alemão. O género caracterizou-se pela criação de ambientes de elevada decadência arquitectónica e moral e pela integração total de elementos sobrenaturais (espíritos, monstros, demónios) em consórcio com as personagens humanas. Obras como Le Diable Amoreux, de Jacques Cazote, La Morte Amoureuse, de Théophile Gautier, The Monk, de Matthew Lewis, ou The Necromancer, de Carl Friedrich Kahlert, encontram-se entre os primeiros títulos que se atrevem a cruzar o sobrenatural, o disforme e o grotesco, com a sexualidade, vulgarmente tratada com pudor. Esta corrente de literatura fantástica influenciou toda a produção literária dos séculos xix e xx no que diz respeito à ficção policial e de horror.
«In the literature of the fantastic, necrophilia habitually assumes the form of a love consummated with vampires or with the dead who have returned among the living. Th is relation can once again be presented as the punishment for excessive sexual desire; but it may be present also without it receiving a negative value – as with the relation between Romuald and Clarimonde for instance. Th e priest discovers that Clarimonde is a female vampire, but this discovery produces no change in his feelings.»7
A sexualidade e a blasfémia presente nos romances góticos foram ainda muito influentes para o movimento simbólico e modernista, como se pode decalcar das obras de Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Mas se estes autores se apropriaram dos códigos do Fantástico à guisa de alegoria – de símbolo –, isso não invalidou o facto de o género ter continuado a ser subversivo; uma literatura de adversidade à norma:
«As a critical term “fantasy” has been applied rather indiscriminately to any literature which does not give priority to realistic representation: myths, legends, folk and fairy tales, utopian allegories, dream visions, surrealist texts, science fiction, horror stories, all presenting realms “other” than the human. A characteristic most frequently associated with literary fantasy has been its obdurate refusal of prevailing definitions of the ‘real’ or “possible”, a refusal amounting at times to violent opposition. […] Such violation of dominant assumptions threatens to subvert (overturn, upset, undermine) rules and conventions taken to be normative. This is not in itself a socially subversive activity: it would naïve to equate fantasy with either anarchic or revolutionary politics. It does, however, disturb “rules” of artistic representation and literature’s reproduction of the real.»8
O texto prossegue com ênfase neste distúrbio da forma de representar artisticamente o mundo.
A morte é o meu ofício
Nem os mortos escapam.
Pregão popular português (século xvii?) sobre o costume que os oficiais da Inquisição tinham de desenterrar os indivíduos que eram condenados já cadáveres para os enforcar ou imolar.
Com uma lista de crimes a punir onde figuravam práticas como a «sodomia», o «erotismo» e a «concupiscência»9, é flagrante que a Inquisição, implantada em Portugal por D. João III, coagido pelo cunhado Carlos V, em 1536, era uma fervorosa inimiga dos prazeres da carne (foi transfigurada em Conselho Geral do Santo Ofício trinta e três anos depois). Contudo, também foi adversária do espírito, já que perseguiu a burguesia intelectual portuguesa desde o século xvi até ao século xviii: foram quase trezentos anos de violento jugo teocrático (duzentos e oitenta e cinco para ser rigoroso) que dominaram as artes e a cultura portuguesas – é ingénuo pensar que este legado não deixou sequelas.
Em 1539, Carlos V conseguiu a licença do Papa Paulo III para os Teólogos de Lovaina elaborarem um índice de livros a proibir. A primeira lista de livros portugueses proibidos foi publicada em 1547, mas seguiram-se mais duas em 1551 e 1561. O terceiro índice expurgatório é o mais completo, incluindo diversas instruções contra a compra, venda, troca e conservação dos títulos proibidos. Os visitantes vindos do estrangeiro estavam obrigados a mostrar os seus livros a um representante da Inquisição, e aqueles que herdavam bibliotecas familiares só poderiam usufruir delas após rígida inspecção. Os autores estavam classificados em três categorias: os de 1.ª, aqueles cujas obras eram sumariamente rejeitadas; os de 2.ª, aqueles que apenas seriam censurados em determinadas partes; e os de 3.ª, os anónimos. Este terceiro índice foi organizado por Frei Bartolomeu Ferreira, censor de Camões em Os Lusíadas, e colocava de sobreaviso os leitores contra toda a literatura de ficção onde existissem referências ao amor e aos preceitos do clero. Proibia, inclusive, o livro Utopia do canonizado Thomas More. Será uma iniciativa calamitosa para a cultura renascentista portuguesa: entre os perseguidos pela Inquisição estiveram o humanista Jorge Ferreira de Vasconcelos, o cronista João de Barros (autor da primeira gramática europeia de que há referência) e o escritor Bernardim Ribeiro. Gil Vicente foi perseguido e censurado pelas denúncias constantes que fez às desigualdades sociais, mas também os poetas Chiado, amigo íntimo de Camões, e Sá de Miranda (o pai do soneto português). Note-se que a Inquisição Portuguesa pecava por ser mais papista que o Papa, pois se em Espanha Don Quijote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, circulava à vontade, e era um sucesso, encontrava-se proibido em Portugal.
Livros considerados heréticos, na esteira de Lutero e Calvino, e livros que mencionassem artes mágicas, como a astrologia e a adivinhação, não passavam no exame censório. Por conseguinte, podemos imaginar que a literatura fantástica realizada no período em que a Inquisição manteve o poder de purgar obras e autores não conheceu qualquer difusão junto dos leitores em potência. Lembrem-se de que os mestres das Escolas dos Mistérios, e outros guardiães das doutrinas herméticas tiveram de encontrar outras formas de passar os ensinamentos uns aos outros, e ao público, como disfarçá-los de contos e lenga-lengas infantis, para fugir aos excessos de zelo dos inquisidores. Só depois da extinção do Conselho Geral do Santo Ofício, em 1821 – já em pleno século xix! –, é que a literatura fantástica conseguiu, finalmente, penetrar no nosso país – e timidamente:
«Quanto a autores, não os encontramos na nossa literatura de terror com individualidade e decididamente negros. Podemos, no entanto, destacar alguns, em cuja obra, avaliada em conjunto, é possível encontrar uma linha de influência constante dos objectivos, géneros e processos da escola. Além de Herculano, Rebelo da Silva, Camilo e Arnaldo Gama, há que mencionar Pereira da Cunha, Correia de Lacerda, Serpa Pimentel, Costa e Silva e Antónia Pusich. Daqueles que se restringiram praticamente a um género, temos, antes de todos, Mendes Leal Júnior, no teatro, e ainda Alfredo Hogan e Aires Pinto de Sousa, na novelística. As várias tendências literárias modernas, que se podem classificar de negras, não encontraram cultores em Portugal.»10
O Fantástico, enquanto literatura de subversão, enquanto modelo herético de representação do mundo, afigurou-se perigoso para a ordem eclesiástica à guarida da Inquisição: se o mundo plasmado nos romances de literatura fantástica era caótico, selvagem, sem redenção ulterior, então Deus não assegurava a ordem natural das coisas – talvez até nem sequer existisse!… No modelo idealista do mundo, as más intenções, aquelas que vão contra Deus, estão condenadas ao fracasso. Contudo, os cultores do género fantástico não só pareciam divertir-se com as obras como não eram castigados pela Providência. Esta observância subtil, mas terrível, seria capaz de derrubar os alicerces de qualquer crente que viesse a ser influenciado pela leitura ou pelo simples contacto com os livros.
Com efeito é inegável que a literatura fantástica se lavrou em território herético: nos países de expressão anglo-saxónica, e na Escandinávia, regidos por outras instituições que não a Igreja Católica Apostólica Romana. É extraordinário que em nenhumas das fontes que consultei sobre literatura fantástica esse facto seja sequer aflorado; o que não é de estranhar, já que a maioria dos títulos ensaísticos que fazem parte da minha biblioteca são escritos por autores de expressão inglesa aos quais o conceito é alienígena. Faz falta uma obra que se dedique, de um modo empenhado, ao estudo da literatura fantástica portuguesa – ou à escassez dela –, mas, a escrever-se, acredito que a solução do enigma tem, necessariamente, de passar por aqui: pela repressão religiosa operada pela Inquisição durante quase trezentos anos sobre o tecido cultural do país, extinguindo quaisquer hipóteses de o género fantástico crescer e se difundir pelos nossos antepassados leitores.
Sintetizando: o Fantástico é, por excelência, uma literatura de subversão porque faz imaginar, logo foi alvo preferencial da ordem teológica inaugurada pela Inquisição. Tal como em Portugal, também em outros países onde a cultura conheceu, e ainda conhece, uma forte influência religiosa não existe uma tradição literária devotada ao género fantástico.
Fahrenheit 451
Our biggest mistake was teaching them to read. We won’t do that anymore.
Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale.
O intervalo entre o término do regime teocrático da Inquisição e a instauração do regime teocrático do Estado Novo, em 1933, durou pouco mais de cem anos, tempo insuficiente para mudar o paradigma de profundo analfabetismo no qual o país se imergia. Até às vésperas da extinção do aparelho inquisitório publicaram-se em Portugal, em média anual, cerca de cem edições. Em França, em 1818, imprimiram-se 4917 livros e brochuras, mais do dobro do que Portugal publicou em vinte anos. À entrada do século xx, a situação geral era a de analfabetismo: saber ler e escrever era uma excepção entre a população rural e, mesmo nas cidades, somente uma quarta parte dos homens havia frequentado algum grau de ensino.11
Em plena Inglaterra vitoriana já as mulheres liam e manifestavam opiniões; pouco depois, a partir de 1918, era-lhes reconhecido o direito de voto. Em Portugal isso só chegaria treze anos mais tarde. Portugal sempre fora um país hostil ao desenvolvimento literário, e os cem anos que duraram entre o fim da Inquisição e o início da ditadura de Salazar não foram suficientes para colmatar essa lacuna. Entre 1911 e 1919, durante a Primeira República, o aparelho de Estado tomou várias medidas contra o analfabetismo criando os primeiros ensinos oficiais Pré-Primário e Primário Geral gratuitos. Criou as Escolas Normais de Lisboa e do Porto, a Faculdade de Direito de Lisboa, a Faculdade de Letras de Coimbra e do Porto e muitas escolas superiores que viriam a constituir as Universidades de Lisboa e Porto. As iniciativas de divulgação cultural e alfabetização foram exemplares: as Escolas Móveis, as conferências e os cursos nas províncias mais as bibliotecas itinerantes; estabeleceu-se a leitura pública de jornais em diversas aldeias. Contudo, logo a partir de 1926, com o início da ditadura militar do General Gomes da Costa, e o decreto-lei que instaurou a censura, o percurso foi interrompido. Como escreve Luiza Cortesão:
«Não se pode deixar de melancolicamente reflectir sobre o que hoje seria o nosso povo se esta acção tivesse prosseguido.»12
Saindo de uma censura para outra, igualmente teocrática, e quase imediatamente, nós não fomos capazes de criar, e sustentar, uma cultura literária saudável.
Através de uma propaganda muitíssimo bem desenhada, o regime do Estado Novo soube, de geração para geração, fomentar a ideia de que o conhecimento, o progresso científico e a imaginação eram ferramentas luxuosas que não serviam o bom patriota, disposto a sacrificar-se pela nação.
«E digo: este povo, para o que sente, já sabe demais. Intensifique-se a educação religiosa; proteja-se a instituição doméstica; olhe-se a sério pelo estado dos costumes deste povo – forme-se o carácter conveniente e, depois, voltamos à Instrução. O Padre Cruz faz mais, num dia, pelo bem de Portugal, do que os mestres primários todos juntos num ano. Ele não ensina a ler e a escrever: educa almas; arranca corações à perversidade – e quem sabe quantos lá foram lançados pela acção do ABC!»13
«Será a única inteligência valiosa, considerável e útil à sociedade a que se revela na aptidão para as ciências e para as letras? […] Uma criança inteligente filha de um operário hábil e honesto pode, na profissão de seu pai, vir a ser um trabalhador exímio, progressivo e apreciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profissão, e assim deve ser. Na mecânica da escola única, seleccionado pelo professor primário para estudar ciências para as quais o seu espírito não tem a mesma preparação hereditária que tem para o ofício, não passará nunca de um medíocre intelectual, quando muito um homem sábio, mas incapaz de singrar na vida nova que lhe indicaram sem o ouvir. […] Não é difícil de notar que há geralmente nas famílias uma ascensão da inteligência prática e recolhida até ao talento fecundo e brilhante. As ideias, as noções, as experiências vão-se elaborando através umas poucas de gerações até florir, em determinada altura, na pessoa de um dos membros da linhagem. […] A gestação duma inteligência superior é trabalho de muitos anos, de séculos até. Resume-se nela toda a experiência de uma família, concentra-se então tudo quanto através das idades naquela linha de sucessão se foi acumulando no sub-consciente.»14
Durante quase meio século (de Maio de 1926 a Abril de 1974) a maioria dos artistas e escritores portugueses sentiram-se refreados, conscientes de que a mais simples frase os poderia levar a confrontos indesejáveis com os censores:
«Nessa única conversa que tive com um censor, ele trouxe-me um exemplar, censurado, com o célebre lápis azul da censura – exemplar que eu tenho em meu poder –, daquele meu livro Histórias de Amor, onde verifiquei que eles cortaram, logo a abrir, a palavra “nu”, numa frase que começa assim: “estava nu em cima da cama…”. Bastou-me ver isto para perceber que havia ali um propósito de queimar tudo e mais alguma coisa […] Aliás, a simples referência ao Éluard e ao Pessoa (ao Fernando Pessoa, imagine-se só!), foram simplesmente abaixo.»15
Não só as menções ao regime de Salazar, ao comunismo e à condição feminina foram censuradas. Tudo o que consistisse em laivos de laicismo e ataques à religião católica foi abafado; e também obras de ficção fantástica; como é exemplo Les Paradis Artificiels, de Charles Baudelaire, e outros autores contemporâneos. Existe um despacho que proíbe a publicação de um livro intitulado Contos de Terror, de vários autores do cânone e traduzido por José Vilhena16: a religião tratava de preencher o lugar vagado pela imaginação, pela fantasia. A paupérrima difusão de conhecimento científico, em desproporção à propaganda religiosa, contribuiu, de certeza, para que surgissem pouquíssimos autores portugueses de Ficção Científica, e ainda menos leitores.
Se um género se faz com autores, e editores, é verdade que também se faz de leitores: num país de gente que não lê, onde o analfabetismo foi fomentado pelas classes dirigentes, como mecanismo de controlo e hegemonia, sendo ainda observado com desconfiança pelas outras, é natural que não se verifiquem condições semelhantes às presentes nos países culturalmente mais ricos. Condições convenientes à saúde do tecido cultural.
É que nós, se calhar, ainda não aprendemos a sonhar.
Notas finais
Este ensaio concentrou-se, em exclusivo, na abordagem das causas da ausência de uma tradição de literatura fantástica escrita em português. Não quis falar sobre a produção de literatura fantástica existente, porque esse é um tema que merece uma reflexão individual. Contudo, na minha opinião, a literatura fantástica portuguesa recebeu uma injecção de vitalidade nos últimos quatro anos com o surgimento de novas editoras sensíveis ao género como a Saída de Emergência, a Livros de Areia e a Chimpanzé Intelectual. Apareceram novas colecções que publicam regularmente clássicos da literatura fantástica como a colecção A Biblioteca de Babel da Editorial Presença; mais as incursões da Cavalo de Ferro no Fantástico e no Realismo Mágico de vários países e tradições. A Ficção Científica, infelizmente, é o género que menos marca presença nas nossas livrarias, tanto na produção original como nas traduções de livros estrangeiros. Todavia, o problema não é tanto a falta de edições relacionadas com o Fantástico, mas a falta de um verdadeiro discurso crítico que pense sobre os livros e os apresente aos leitores.
A haver um veículo de crítica rigorosa, e generosa, sobre o género Fantástico, ele terá de ser pensado e realizado de “dentro para fora”.
1 – A History of Civilizations de Fernand Braudel (Penguin Books, 1993, pp. 343-344) e The New Penguin History of the World de J. M. Roberts (Penguin Books, 1992, p. 540).
2 – The Secret History of the World de Jonathan Black (Quercus, 2007, p. 279) e Giordano Bruno and the Hermetic Tradition de Frances Yates (Routledge, 2002, pp. 13-20).
3 – De acordo com a terminologia criada por Henri Corbin.
4 – A designação de «old wives’ tales» é a mais antiga e foi cunhada por Lúcio Apuleio em O Burro de Ouro como «anilis fabula». In, From the Beast to the Blonde de Marina Warner (Farrar, Straus e Giroux, 1994, p. 14).
5 – Ou aquilo que Umberto Eco apelida de «experiência pessoal do destinatário», in Sobre Literatura (Difel, 2002, pp. 199-205).
6 – Exemplos de poemas que poderão ter influenciado Walter Scott e Tobias Smollett, os “pais” do romance de cavalaria, são os épicos Beowulf (1010?), La Chanson de Roland (1150?) e Herzog Ernst (1180?). As chamadas «novelas do Graal», cujo primeiro exemplo é consensual apontar-se como sendo Perceval, Le Conte du Graal, de Chrétien de Troyes (1180-1190?), têm, por outro lado, raízes nos mitos galeses compilados numa sequência lógica, e dramática, em The Mabinogion por Evangeline Walton. São, por mérito próprio, um sub-género dentro dos romances de cavalaria já que possuem preocupações herméticas ausentes nos segundos. É seguro afirmar que os pioneiros do género gótico em Portugal, na tradição de Walpole e Radcliffe foram Alexandre Herculano com Eurico, o Presbítero (1844) e Almeida Garrett com Frei Luís de Sousa (1844). Convém também incluir Sampaio Bruno com o ensaio O Encoberto (1804) e o inacabado Os Cavaleiros do Amor, esboço para romance publicado postumamente em 1996.
7 – Tzvetan Todorov, in The Fantastic: A Structural Approach to a Literary Genre (Cornell University Press, 1975, pp. 136-137). O excerto fala sobre La Morte Amoureuse de Théophile Gautier (1836).
8 – Rosemary Jackson, in Fantasy: The Literature of Subversion (Routledge, 1981, pp. 13-14).
9 – In Judeus, Cristãos-Novos e a Inquisição de S. Alexandre (Prefácio, 2002, p. 89). Ver também a obra em três volumes de Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (Edições Europa-América).
10 – Maria Leonor Machado de Sousa, in A Literatura “Negra” ou de Terror em Portugal: Séculos XVIII e XIX (Editorial Minerva, 1978, p. 286).
11 – In Diário da História de Portugal de José Hermano Saraiva e Maria Luísa Guerra (Selecções do Reader’s Digest, 1998, p. 363). A acompanhar o texto encontra-se uma tabela muito completa com o número total de edições, reedições e traduções de obras estrangeiras realizadas nesse período.
12 – In Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, p. 18).
13 – Alfredo Pimenta, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, p. 209).
14 – Marcelo Caetano, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, pp. 204-205).
15 – José Cardoso Pires, in A Censura de Salazar e Marcelo Caetano de Cândido de Azevedo (Editorial Caminho, 1999, pp. 103-104). Outros dois tomos que iluminam esta questão da censura com documentação da época são Mutiladas e Proibidas de Cândido de Azevedo e Os Segredos da Censura de César Príncipe, ambos da Editorial Caminho (1997 e 1979, respectivamente).
16 – Os Segredos da Censura de César Príncipe (Editorial Caminho, 1979, p. 122).
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 3, publicada em janeiro de 2008