Revista Bang!
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Literatura Erudita vs Literatura Popular

Uma tertúlia sobre géneros literários com David Soares, João Seixas e António de Macedo

A literatura popular é a literatura pimba. Escrita por gente sem talento, para gente sem tempo ou paciência para ler livros a sério. É a fast-food da literatura. Com capas berrantes, personagens de papel e enredos de telenovela. É fundamentalmente lida por rebanhos no comboio. A literatura erudita é uma treta intimista onde se disfarça a ausência de uma boa história com um estilo bonito e frases citáveis.
É lida por intelectualóides frustrados que gostavam de ser poetas, mas são apenas freelancers mal pagos. Ou será que não é nada disto? Vamos ver…

David Soares:
Para começar, penso que seria importante decidir uma nominação para os dois campos literários concorrentes que vamos analisar. A língua inglesa tem expressões engraçadíssimas para eles como highbrow ou high literature (literatura pedrada), mas como dizer, em português, a mesma coisa? É que dizer minor literature não tem o mesmo peso que dizer literatura menor… Bom, antes de decidirmos qualquer coisa a respeito destes nomes, é preciso esclarecer os leitores sobre aquilo de que estamos a falar: a high literature é toda a literatura que valoriza o modo como se conta uma história e não a história que se decide contar; essa preocupação pertence à minor literature e nela entram todos os géneros considerados menores pela “academia”, como o romance policial, a ficção científica, o horror ou a fantasia. O primeiro campo conforma-se num modo que prima pela expressão de ideias em detrimento do desenvolvimento e caracterização de personagens num enredo que se espera conclusivo. Talvez uma boa forma de visualizar esta questão seja dar um passo para o lado até outra área artística e observar que definições se podem encontrar aí.

Vamos especular sobre a música, por exemplo. É fácil perceber que existem duas distinções claríssimas: a música erudita e a música popular. No espectro compreendido pela música popular, achamos aquilo a que se pode chamar de música de género, resgatando a terminologia do parágrafo anterior, na qual se incluem — virtualmente — todos os tipos de música que não tenham sido compostos entre os séculos xvii e xix: o rock, o jazz, a pop, o metal, o pimba… Talvez a nomenclatura que melhor nos sirva para iniciar o nosso esgrimir de neurónios que promete deixar os leitores da BANG! de boca aberta e nós esgotadíssimos, mas de ego inchado, seja roubar à música a colagem que a língua portuguesa não permite quando chegamos perto das determinações literárias de expressão inglesa. Por conseguinte, proponho que usemos Literatura Erudita e Literatura Popular. Penso que são designações que farão todo o sentido no contexto deste artigo, como se irá ler mais à frente.

Usando a nómina que este artigo inaugura, acredito que o conceito de Literatura Erudita, por oposição a Literatura Popular, nasce com o romance moderno de expressão pessoal; logo, vitrina da vida interior da personagem principal. Isso acontece em 1678 com a publicação do livro La Princesse de Clèves, da condessa Madame de La Fayette, título que segue o caminho deixado em aberto por outros escritores franceses como La Rochefoucauld (1613-1680), que evidenciava nas suas máximas um aperfeiçoamento dos modelos mentais dos protagonistas, colocando os seus vícios acima das suas virtudes.

Desde o surgimento do teatro grego, no século vi a. C., que o grande género literário (porque as peças eram escritas) sempre foi a Tragédia, área na qual se assiste à luta do indivíduo ou de um grupo de indivíduos contra o destino. Um pouco mais tarde, iria florescer a Comédia, principalmente com as obras de Aristófanes (v a iv a. C.) que escreveu peças satíricas como As Rãs ou A Assembleia das Mulheres. Esta dicotomia em que figuram a Tragédia (o género erudito) e a Comédia (o género popular) influenciou a composição da Poesia e da produção literária até ao século xvi. Naquilo que hoje se compreende por Idade Média, surgiram proto-romances em verso como Le Roman de la Rose (século xiii) e os escribas conventuais mudaram o formato do registo das suas narrativas: abandonaram o pergaminho enrolado (volume) e passaram a escrever em livros de feitios que se mantém até hoje (códice). Isso foi vital para o desenvolvimento da Prosa, porque o códice, ao contrário do volume, permite aos autores escreverem mais desafogadamente, já que o método de reunir as páginas numa encadernação mais ou menos duradoura (consoante o material) é generoso. Não só a Tragédia e a Comédia apresentavam cenários e personagens fabulosas como a literatura religiosa se compunha de diversos elementos fantásticos. Por exemplo, o Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis (século xiii) influenciou muitíssimo a literatura italiana que esteve na génese das obras mais conhecidas do Renascimento, como as de Dante, Petrarca e Boccaccio — que, por mérito próprio, são obras de literatura fantástica, sublinhe-se. Para ser sincero, não encontro na literatura clássica nenhum desdém pela fantasia ou pelos elementos fantásticos, mas sim um preconceito contra aquilo que, já na altura, se designava por cultura popular. Essa cultura (muitas vezes até contra-cultura como a trovadoresca e a provençal) cifrava-se pela inclusão do humor grotesco, da sátira, e não salientava o carácter transcendental atribuído pela Tragédia (com excepção das aventuras de D. Quixote, não me recordo de outra grande obra literária de comédia a ser olhada com respeito).

A partir do século xviii, já é possível encontrar algum preconceito pelos elementos fantásticos, principalmente porque passaram a ser considerados mecanismos de fuga a uma realidade social em aceleração. É preciso não nos esquecermos que a literatura, como todas as outras artes, acompanha o desenvolvimento das sociedades (e, muitas vezes, o antecipa). Paradigmas racionalistas, o desenvolvimento da ciência e de sistemas políticos inéditos criaram um clima hostil a uma linguagem alegórica que não soube adaptar-se com agilidade aos novos tempos e ficou cunhada como sendo resquício de uma antiga forma de olhar o mundo. Escrever sobre mundos impossíveis ou fantásticos nos séculos xvii ou xviii não era considerado sério. Haverá excepções, claro, mas escritas por quem? Por indivíduos pertencentes às elites. Vamos lá ver: até ao século xx, quem é que tinha bagagem cultural ou tempo livre para se poder dedicar à escrita? A noção que temos daquilo em que consiste um autor ou um género literário é demasiado recente: acaba por ser fruto das contingências do mercado livreiro no qual é necessário criar, logo à superfície, uma identificação imediata daquilo que se pretende comercializar com o público ao qual o objecto se dirige. Talvez valha a pena transcrever este excerto do livro Theory of Literature, de René Wellek e Austin Warren (página 235, do capítulo 17 «Literary Genres»):

«Men’s pleasure in a literary work is compounded of the sense of novelty and the sense of recognition. In music, the sonata form and the fugue are obvious instances of patterns to be recognized; in the murder mystery, there is the gradual closing in or tightening of the plot — the gradual convergence (as in Oedipus) of the lines of evidence. The totally familiar and repetitive pattern is boring; the totally novel form will be unintelligible — is indeed unthinkable. The genre represents, so to speak, a sum of aesthetic devices at hand, available to the writer and already intelligible to the reader. The good writer partly conforms to the genre as it exists, partly streches it.»

Isto conduz-me à ideia que sempre defendi, de que o género é atribuído pelo tom dominante da obra: um livro pode apresentar um cruzamento de vários géneros, mas o tom dominante é o cromossoma que o transforma num drama, numa comédia, numa aventura ou num diálogo de pura expressão pessoal. O tom dominante pode ser algo abstracto, mas acredito que se trata de uma característica que os leitores são muito hábeis a detectar.

Contudo, pedir à maioria dos leitores para imaginar coisas que não se encontram todos os dias pode ser um exercício extenuante, ou mesmo impossível, para quem tem pouca imaginação ou pouquíssima disponibilidade para imaginar. É muito mais fácil visualizar um casal a correr na praia do que um aparelho espacial a tentar fugir de um horizonte de eventos; é mais fácil, e seguro, imaginar um sujeito que relata memórias empíricas a la Paul Auster do que imaginar um pedaço gelatinoso de muco nasal assoado por Lovecraft que, em última análise, está vivo, tem mau feitio e nos quer arrancar a cabeça.

Aqui, estamos próximos da noção partilhada pela maioria do público de que a Arte é apenas um espelho — quando muito um comentário… — à vida, mas nunca um upgrade da vida. É a velha história da “demasiada fantasia”: “Gostaste do filme?”, “Ah, não… Tinha muita fantasia.” Este é o grande problema das obras de ficção: são sempre ficcionadas, bolas!… O que varia é o grau de aproximação à convenção (aceite pela maioria) sobre aquilo que deve ser o realismo.

Este tema é importante porque está sempre associado à ideia de erudito. Nove em cada dez obras eruditas possuem um elevado grau de aproximação à representação do mundo construída pelo nosso cérebro com a ajuda dos falíveis cinco sentidos. Tudo aquilo que se afasta do “real” já não é erudito. Porquê? Tenho umas ideias sobre isto que quero partilhar convosco, mas esta minha primeira alfinetada já passou a derme e agora é a vossa vez. Sobre géneros e sobre tudo. Até já.

João Seixas:
Creio que o David localizou muito bem o cerne do conflito ao centrá-lo no qualificativo popular aplicado aos géneros literários que se afastam — em termos de métodos narrativos e convenções literárias — do romance mimético. Creio, porém, que para melhor compreendermos esta dicotomia, e avançarmos algumas hipóteses que melhor a permitam contextualizar, será necessário fazer algumas precisões. Assim, e desde logo, nunca é demais salientar que a oposição da Literatura Erudita é mais ou menos homogénea em relação aos géneros em geral, independentemente do maior ou menor grau de elementos fantásticos que contenham: géneros como o western ou o policial, ou mesmo o romance histórico, também foram olhados com igual desdém, embora, como é bom de ver, tal desdém seja mais igual quanto maior o grau de afastamento da representação realista do mundo (o western, o romance histórico e o policial, apesar de tudo, ainda mantêm laços de proximidade com a realidade histórica ou contemporânea, ainda que idealizada).

A questão que importa explorar, porém, é o porquê desse desprezo; é o porquê de existirem situações como aquela narrada por Philip Klass no seu ensaio «Jazz then, Musicology now» (F&SF, 1972), onde ele nos conta como, estando em companhia de um amigo, formando em Letras, e tendo encontrado Theodore Sturgeon, este discutiu longa, eloquente e apaixonadamente sobre os problemas artísticos da FC, as particularidades do género e o desafio que é escrever dentro das suas convenções, tratando-se, como se trata, de um tipo de literatura onde é imprescindível recorrer a trechos expositivos, sem permitir que isso desequilibre a narrativa. Depois de se terem separado de Sturgeon, o comentário (não menos eloquente) do estudante foi: «These science fiction writers, they really think of themselves as writers, don’t they? I mean, he’s talking about this stuff seriously, as if he were writing literature!»

Obviamente, embora Sturgeon fosse um consagrado autor de FC, hoje infelizmente quase esquecido, o comentário seria válido para qualquer outro autor que leve a sério o género ou géneros onde escolheu trabalhar, sobretudo se tais géneros se inserirem na mais vasta classificação do Fantástico. E não se pense que é uma questão sem importância, pois, para se lograr um princípio de compreensão deste fenómeno, é necessário procurar lobrigar, desde logo, qual ou quais as características transversais aos vários géneros que os tornam num todo separado daquilo a que, para este trabalho, convencionamos chamar Literatura Erudita. Ao mesmo tempo, tentarei perceber por que razão alguns géneros (western, policial, romance histórico) merecem, por vezes, o favor da crítica e da academia, ao passo que outros (Ficção Científica, Horror e Fantasia) nunca o logram, mesmo quando a qualidade intrínseca das obras é reconhecida.

Atente-se, como exemplo, nesta elucidativa crítica de Eugenia Thornton à distopia This Perfect Day, de Ira Levin (autor que se tornou célebre com obras de FC e Horror, como The Stepford Wives e Rosemary’s Baby), citada por Thomas D. Clareson na introdução ao tomo SF: The Other Side of Realism (1971) e publicada originalmente no Plain Dealer de Cleveland, a 22 de Fevereiro de 1970:

«Because of the basic subject matter the science fiction set will do its best to cuddle This Perfect Day to its steely, electronic bosom. They have already claimed Brave New World and 1984, not to mention Alice and The Wizard of Oz and about half the stories of Saki. I will thank them to keep their tiny little hands off Mr. Levin» [sublinhado meu].

Uma leitura, ainda que menos atenta, do trecho citado logo nos permite retirar algumas informações quanto ao quadro de referências operativo neste tipo (bastante recorrente) de críticas à literatura de género: em primeiro lugar, o reconhecimento («the basic subject matter») de que estamos realmente perante uma obra de ficção científica ou que, pelo conteúdo temático, é reconhecível como sendo semelhante a outras obras anteriores que a autora da crítica não hesitaria em classificar como ficção científica. Depois, o facto de os leitores de FC serem identificados com uma mundividência tecnofílica («its steely, electronic bosom», evoca, ademais, uma certa frieza) e, consequentemente, a autora da crítica posicionar-se numa perspectiva tecnofóbica (ou, pelo menos, indiferente à tecnologia) e emocional. Por último, e não obstante o reconhecimento de que se trata de uma obra de FC, ao colocá-la lado a lado com textos genéricos bem acolhidos pelo mainstream, nega-lhe essa qualidade genérica, por via de uma reconhecida qualidade literária.

Isso permite-me, desde já, enfrentar uma questão, talvez menor, mas que deve ser referida: nomeadamente, o potencial conflito entre forma e conteúdo; ou seja, e parece-me indiscutível, não há qualquer razão para considerarmos qualquer dos géneros populares literária, estrutural ou estilisticamente mais pobres do que a Literatura Erudita. Embora pareça ser ideia feita a de que não se logra encontrar qualquer mérito nas narrativas genéricas, não é difícil encontrar exemplos de autores de género que foram reconhecidos pelo mainstream (Hammett, Chandler ou Evan Hunter no policial, Ray Bradbury na dark fantasy, Le Guin na Fantasia, Levin na Ficção Científica, etc.), autores de mainstream que mergulharam no género (Orwell, Huxley, Roth, etc.) e autores de género que abriram novos rumos na literatura em geral com obras de género (Ballard, Bester e Vonnegut são os melhores exemplos. Curiosamente, nunca nenhum autor Erudito conseguiu inovar na literatura de género).

Outra coisa que é inevitável retirar daqui é que, por vezes, nem é o próprio género que limita a recepção crítica da obra. Aliás, e como o David muito bem referiu, o género é um constructo editorial que apenas se condensou na realidade norte-americana de princípios do século (embora o Gótico inglês dos séculos xviii e xix, pudesse — e fosse — já encarado como tal). Adaptando livremente uma definição de Steve Neale (que se referia ao cinema), podemos dizer que os géneros não consistem unicamente das obras que os compõem, mas também de determinados sistemas de expectativas e hipóteses que os leitores trazem consigo para a leitura e que interagem com os próprios livros.

Ora, independentemente da qualidade das obras ou autores, pois parto do princípio de que existem bons e maus, excelentes e medíocres, em todos os géneros (bem como na dita Literatura Erudita), qual é aquele fugidio elemento que permite que determinados textos genéricos sejam aceites e outros rejeitados pelo cânone?

Uma resposta, ainda que tosca e a pedir mais polimento, pode ser encontrada num post que li há tempos no fórum Bad Books Don’t Exist (por sorte, o autor do post assina ao abrigo de um nickname, o que lhe poupará o embaraço de passar à posteridade ao lado da Sra. Thornton, como um autêntico idiota). Em suma, manifestando o seu profundo desagrado face à Ficção Científica, referia que o livro de Orwell Nineteen-Eighty Four (1949) e de Saramago Ensaio Sobre a Cegueira (1995) não eram ficção científica, pois neles o elemento fantástico era apenas «pretexto para falar de coisas mais profundas», esse enorme lugar-comum que limita a comunicação e permite o refúgio dos pusilânimes.

Pese embora a óbvia incompetência valorativa de tal proposição, avanço que é nela que se deve encontrar a semente da discórdia. Abstraindo momentaneamente do particular contexto histórico que permitiu a agregação de trabalhos e obras dispersos em géneros universalmente reconhecíveis, e embora discorde parcialmente com o David na parte em que ele refere o fantástico na literatura Clássica (eu, pessoalmente, não gosto de falar de Fantástico antes do século xviii), concordo com ele quando propõe que busquemos a origem da dicotomia Literatura Erudita/Literatura Popular na criação do romance moderno. No entanto, não penso que seja necessário aguardar por 1678 e por Madame de La Fayette, pois encontramos o primeiro romance verdadeiramente moderno no próprio D. Quixote de Cervantes, em 1605. Já aí encontramos uma bem estabelecida dicotomia entre a vida interior do personagem, Alonso Quijano, onde este veste a personagem de D. Quixote, e o confronto desta com a dura realidade (imperecivelmente cristalizada na imagem dos moinhos de vento/gigantes). Não só isso, é no Quixote que assistimos à primeira crítica acérrima à literatura de género; na perspectiva de Cervantes, os escapistas romances de cavalaria que o personagem consome avidamente só o podem conduzir à loucura.

Para Daniel Boorstin (em Os Criadores, publicado em Portugal pela Gradiva), «o romance, ainda que virado para o interior do homem, alcançaria o exterior e democratizaria o público e o objecto da arte literária. Através da “recriação da vida a partir da vida”, o romance permitiria ao homem moderno descobrir-se.» (P. 287)

É nesta democratização, nesta «recriação da vida a partir da vida» que vamos encontrar a raiz do problema; o mesmo é dizer, o processo de formação do cânone literário. No entanto, e procurando ir um pouco mais longe, colocando cuidadosamente o pé em solo traiçoeiro (não disponho de suficientes conhecimentos para testar esta hipótese), atrevo-me a propor o seguinte: a resposta para a aversão ao fantástico (ao mesmo tempo que permite a aceitação de outros textos genéricos como o policial e o western, ou mesmo a comédia e até algum horror psicológico) prende-se com a intenção última do pai do romance moderno. Com efeito, na introdução às suas Duas Novelas Exemplares, publicadas em 1613, mas cuja redacção se pensa remontar a 1603, Cervantes escreve que as suas são histórias moralmente exemplares:

«Se eu acreditasse que a leitura destas novelas despertaria de algum modo um pensamento ou um desejo malévolos, preferia cortar a mão que as escreveu a vê-las publicadas.»

Ora, para Cervantes, os romances de cavalaria, como atestado pelos efeitos causados pela sua leitura no engenhoso fidalgo, seriam moralmente indignos e inspiradores de maus actos.

Não acredito que os responsáveis pelos cânones, pelo muito de político que anima as várias cotteries que têm sucessivamente dominado a crítica literária, aceitem que as suas escolhas se pautam pelo carácter moral das obras que avaliam; no entanto, o selo de infantilidade com que a literatura fantástica é sumariamente despachada faz-me pensar que não será demasiado ousado aventar a hipótese de que, independentemente da forma e, como vimos, independentemente do conteúdo, é o tratamento filosófico dado aos temas (e os próprios temas) que determinam a sua exclusão. Porque o romance moderno centra a experiência literária na reacção impressionista dos personagens, com a sua bagagem de sentimentos e problemas pessoais, ao ataque cerrado do mundo exterior (obrigando a determinar qual a reacção correcta), e não consegue tolerar a deslocação que a literatura fantástica faz dessa reacção; a introdução do fantástico obriga a que os petty problems dos seus protagonistas — que rondam sempre, seguindo Northrop Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando a determinar qual a reacção necessária). O concreto da vida é substituído pela abstracção (ainda que esta seja corporizada numa ameaça extraterrestre, numa mutação teratológica ou numa total transmutação da realidade).

A ideia que proponho é esta: a Literatura Erudita assenta numa Moral; a Literatura Popular assenta numa Praxis. Daí que a primeira seja mais rapidamente datável (a Moral torna-se obsoleta com grande facilidade) e consiga absorver aqueles géneros que cristalizam, também eles, uma resposta moral: o western e o policial tratam, acima de tudo, da reposição da ordem; também a fantasia, em menor grau, trata da obtenção de um estado ordenado. Já não a Ficção Científica e o Horror, que embora possam encontrar o clímax na reposição da ordem inicial, necessitam do caos e de respostas extremas a esse caos. Por outro lado (a FC em maior grau), ambos propõem — mais, impõem — novos comportamentos, pois postulam situações absolutamente novas.

António de Macedo:
Eu bem sabia que já me tinham tramado. Ao ler os vossos eminentes ensaios, não sei se me sinta como o Menino Jesus entre os doutores, ou como o pobre escravo Esopo no mercado de escravos, em Atenas, para onde foi levado com dois colegas seus: aproximou- se um potencial comprador e perguntou ao primeiro escravo:

— Que sabes fazer?

— Tudo.

Voltou-se para o segundo:

— E tu, que sabes fazer?

— Tudo.

Finalmente, dirigiu-se a Esopo:

— E tu, que sabes fazer?

— Nada.

— Como nada?!

— Os meus companheiros tomaram por sua conta o fazer tudo, logo para mim não sobrou nada.

(Esta é uma das minhas peças favoritas, a Esopaida, do meu comediógrafo de estimação António José da Silva, o Judeu).

Pois é, o David e o João já disserem «tudo» — que hei-de dizer mais, e se possível que acrescente qualquer coisinha?? Citando Esopo: nada…

Ou talvez não. Para começar, devo dizer que esta coisa dos géneros (literários, musicais, cinematográficos…), com guerra ou sem guerra, sempre me deixou desconfiado e com o nariz um bocadinho torcido. Cada vez me sinto mais inclinado a concordar com Voltaire, quando escreveu em 1763, numa carta dirigida a Monsieur de Moultou: «Tous les genres sont bons, sauf le genre ennuyeux».1  (Antigamente, o «género enfadonho» chamava-se «littérature d’idées».)

A divisão proposta pelo David, ainda que provisória e apenas como ferramenta de arranque de trabalho, da Literatura Erudita e da Literatura Popular, não sei que lhe diga, mas suspeito que simplifica tanto a base de abordagem ao tema que corre o risco de gerar grandes zonas cinzentas de sobreposição fronteiriça; embora o David tenha tido o cuidado de esclarecer que essas expressões nasceram com o romance moderno, no fundo é inevitável pensar que peças literárias de grande divulgação popular, como as palpitantes «estórias» contadas e cantadas para o povinho nos tempos de Homero, hoje chamam-se Ilíada ou Odisseia e são literatura erudita, tal como as peças de Shakespeare de grande êxito popular ou as óperas de Mozart representadas em tascas para um público ruidoso e arrebatado e que hoje são peças eruditas…

Depois há que considerar também o factor subjectivo. O que é ennuyeux para uns pode ser delirantemente orgásmico para outros. Por exemplo: pessoalmente, sempre tive a maior dificuldade em meter o dente na Recherche, de Proust, quanto mais engoli-la e muito menos digeri-la; já fui insultado várias vezes por isso, e de uma delas por uma jovem senhora que muito estimo, culta, que lia, relia e re-relia os nove volumes da Recherche com tanto ou mais prazer e entusiasmo do que eu a devorar as aventuras do Tio Patinhas. Enfim, depois de tanto opróbrio só me resta retirar-me da liça e reconhecer que devo ser um caso perdido nestas classificações em que os críticos são exímios — por isso estou sempre a dizer que felizmente não sou crítico literário! Quando faço filmes, prefiro dizer que faço fitas, e quando escrevo ficção, prefiro dizer que conto historietas! Que querem, sinto-me mais à vontade e desinibido, e posso inventar sem remorsos o que me passa pelo toutiço…

Como o João faz notar, e bem, sem dúvida que não podemos fugir ao preconceito ainda muito arraigado em certas mentes contra essa «literatura menor» da FC, do Horror, da Fantasia, etc. Há uns tempos, tive a paciência e a bondade de ler um pequeno ensaio de um professor de literatura (de cujo nome felizmente não me recordo, cito isto de memória), que discorria sobre a «grande literatura» e depois, de raspão, se referia a umas formas de «pseudoliteratura», «paraliteratura» e «subliteratura» onde incluía, indiscriminadamente, desde a FC até às estórias popularuchas de faca-e-alguidar do tipo Maria Não Me Mates Que Sou Tua Mãe.

Em todo o caso, parece que estamos (consciente ou subconscientemente) a cingir-nos e restringir-nos a alguns formatos e estruturas mais associados àquilo que nas prateleiras dos livreiros costuma ter as etiquetas «ficção científica», «fantástico», «horror», etc. — mas existem outros objectos literários (e esquecendo outras formas narrativísticas como o cinema ou o teatro) que não sei em que género incluir, como por exemplo os romances (?) de Maria Gabriela Llansol, em que nenhuma frase liga com coisa nenhuma, e lá pelo meio tem grandes buracos, troços em branco com falta de palavras, parecem enigmas e logogrifos, não sei se aquilo é para a gente adivinhar que palavras lá estariam, ou se é para desengatilhar o chamado «clique» revelador que faz ver para além do visto/não-visto… A verdade é que é considerada pelos luminares da crítica uma grande autora de grande literatura, com vários prémios daqueles sérios, do mainstream e tudo — mais uma vez, e para minha grande contrição, não consigo meter o dente naquilo.

Mas eu gostaria de tecer uns quantos considerandos mais atentos e veneradores sobre «estilos» e «géneros», que desde a velha retórica até às novas análises radicalistas têm rolado e girado por aí sob diversos nomes, e nem é preciso citar os rebentos de Harold Bloom como Barry Scherr e David Fite —, mas isso fica para o próximo post.

 

David Soares:
Uma das maiores satisfações de ser escritor é saber que, na melhor das hipóteses, os livros que se escreve serão sempre lembrados no futuro (assim como o João se lembrou do Sturgeon. Recomendo a todos que leiam o “belo” Some of Your Blood). É improvável que se encontre um rasto de migalhas genéticas que nos conduzam até às ossadas de Esopo (lembrado pelo António), mas as memes esopianas estão connosco — vicejantes e saudáveis, ou seja: Esopo existe enquanto alguém se lembrar da vida e obra dele — e ele afecta aquilo que se desenrola séculos depois de ter morrido; até os desvairamentos de três rufiões como nós. Talvez esse tipo de persistência memética seja longitudinalmente mais poderoso do que a existência de carne e osso: é que as palavras parecem ser mágicas no modo como nos afectam. Já antes de Alfred Korzybski e William Burroughs publicarem os livros deles, o Aleister Crowley dizia que a Magia era uma «doença da linguagem». O Tempo (o velho Saturno que tanto gosta de acariciar o cabelo sedoso das virgens…) também acaba por nos fazer esquecer o piorzinho que se vai publicando — o que não significa que certos autores sejam descobertos por gerações seguintes, sejam eles maus ou bons.

Num simples périplo pelos alfarrabistas, é fácil constatar que, há cinquenta anos, se publicavam menos livros, mas que a variedade das ofertas editoriais era maior (varietas delectat): na verdade, publicava-se de tudo. Eu encontro coisas nos alfarrabistas que nem sequer sabia que tinham sido dadas à estampa em português, como uma edição de Bruges, a Morta, de Georges Rodenbach, publicada pela Editorial Inquérito em 1943 e que trouxe para casa no passado fim-de-semana. Qual seria a editora que, hoje em dia, perderia tempo a publicar esta obra-prima do Simbolismo, pioneira da psicogeografia?!… E é uma pena, porque é um livro bom que se farta!… O que desejo destacar desta exposição introdutória à minha segunda intervenção é que, autonomamente à polémica entre géneros, se está a publicar menos e pior. Existe uma homogeneidade livresca, sintomática da homogeneidade cultural que nos absorve a uma velocidade vertiginosa, mas acredito que as obras que melhor falam sobre os problemas dos seus tempos continuam — e continuarão — a ser as Fantásticas. Como as de Rodenbach, de Esopo e de Sturgeon.

Acredito mesmo que quem se dedica ao ofício da escrita precisa de ter uma maior sensibilidade no que diz respeito ao uso da palavra. Falei em Burroughs, e a técnica beat do Cut-up é um bom exemplo daquilo que pretendo ilustrar: tem tendência para produzir algaraviada, mas — bolas!… —, em última análise, uma algaraviada escrita por um escritor sensível à palavra pode ser muito melhor do que um enredo tradicional autorado por um tarefeiro — eu acho que Burroughs é um gigante quando confrontado com o Paul Auster (eu adoro qualquer coisa que tenha baratas falantes, por isso talvez esteja a ser biased). É desanimador pensar que a Escrita é um campo com possibilidades tão vastas, mas que se encontra sempre espartilhado por convenções de mercado, acidentes de iliteracia e preconceitos patetas. Falando em insectos… Lembrei-me do desenho do Escher, aquele da formiga, e do conto que o Hofstatder escreveu, inspirado nele, que está no livro Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid. Chama-se «Ant Fugue» e é sobre aquilo que pensa um papa-formigas enquanto se banqueteia. O ensaio não é sobre sabores alternativos, contudo, mas sobre a consciência colectiva (que no texto se chama Aunt Hillary e mais não é que a própria colónia de formigas), e acho que se aplica ao nosso nicho literário. Ou seja, essa parábola das formiguinhas insuspeitas e do mirmecófago bonacheirão, que aparece para as devorar sem perceber que a Tia Hillary com quem tanto gosta de conversar é composta pelos milhões de indivíduos que ele tanto gosta de comer, pode ser lida de várias formas (não estou “consciente” de qual é a maneira correcta de a entender ou se existe sequer uma maneira correcta de a entender): 1) nós, escritores, somos as formigas que percorrem os subtérreos níveis do subconsciente em busca de novos modos de olhar o mundo e o papa-formigas representa os leitores que vêm lamber os beiços com as nossas fabulosas criações, mas o problema com este modelo é que o papa-formigas come as próprias formigas, por isso 2) talvez seja ele, o escritor, que vem chupar os leitores despreocupados? De qualquer das maneiras… Porquê reduzir o ofício da escrita nesta configuração? Devíamos ser melhores do que as formigas e perceber que caminhamos num terreno que é muito maior do que aquilo que parece ser: devíamos prestar mais atenção.

Gostava de ler um livro recente que me oferecesse algo que só a literatura é capaz de fazer: que não fosse uma experiência que pudesse ser suplantada por outra arte. Acho que isso faz muita falta; e até pode ser um dos motivos pelos quais o mercado do livro prima pela confrangedora homogeneidade que se encontra nos escaparates: não há nada na maioria dos livros publicados neste momento que não possa ser vivenciado com mais rapidez e economia num filme, numa série de televisão ou numa telenovela. Eu não quero ler filmes impressos: eu quero ler… hum… livros.

Esta linha de raciocínio trouxe-me àquilo que o João enunciou: que «o romance moderno centra a experiência literária na reacção impressionista dos personagens, com a sua bagagem de sentimentos e problemas pessoais, ao ataque cerrado do mundo exterior (obrigando a determinar qual a reacção correcta), e não consegue tolerar a deslocação que a literatura fantástica faz dessa reacção; a introdução do fantástico obriga a que os petty problems dos seus protagonistas — que rondam sempre, seguindo Northrop Frye — o Amor e a Morte, sejam afastados para enfrentar e resolver problemas maiores (obrigando a determinar qual a reacção necessária). O concreto da vida é substituído pela abstracção (ainda que esta seja corporizada numa ameaça extraterrestre, numa mutação teratológica ou numa total transmutação da realidade).»

Como sugeri na minha primeira intervenção, a Realidade é uma ficção feita pelos nossos sentidos e não vale a pena sobrevalorizá-la: aquilo que pensamos estar a ver pode ter tanta proximidade com o mundo físico quanto uma história do Hulk a lutar com o Wolverine. Os nossos cérebros capturam as sensações circundantes e constroem um modelo do mundo que funciona para nós, mas nada garante que esse modelo é a realidade. É por essa razão que sempre achei absurdo que, como escreveu o João, citando o Boorstin, a «recriação da vida a partir da vida» seja o modo eleito de expressão literária do establishment. Aquilo que é entendido como realista é igualmente ficcionado.

Vou citar um exemplo pessoal: era uma vez, estava eu, com dois amigos, a perder tempo sentado no muro da antiga estação ferroviária de Queluz; não me recordo do que estava a falar com eles, porque a comunicação entre nós já só se devia estar a cumprir por minúsculos movimentos oculares, tal devia ser o ennui vespertino… Todavia, aconteceu algo inesperado. Uma rapariga distraiu-se e atravessou a linha-férrea no momento em que um comboio, vindo de Sintra, se aproximava dela a grande velocidade. Vi tudo! Hesitante, a jovem recuou à passagem da locomotiva, mas tarde demais: o comboio atingiu-a na cabeça e deitou-a ao chão — por um instante, pareceu que ela tinha esticado as pernas para debaixo das rodas do comboio, mas não ficou sem elas porque caiu de joelhos. Levantei-me e corri para a ajudar. Aproximei-me e ouvia-a a chorar; agarrei-a e senti um arrepio pela espinha acima porque me deu a impressão de que ela tinha ficado sem um olho. Afinal, o olho estava apenas escondido pelo sangue que brotava de uma têmpora aberta. Fiquei com a impressão de que ela tinha um pé torcido, também. Com custo, consegui levá-la sozinho para a plataforma de embarque: fiquei cheio de sangue — havia sangue por todo o lado, vocês não fazem ideia da quantidade de sangue que jorra de um corte daqueles. Quando a ajudei a deitar-se no chão de cimento, aproximou-se um homem que me disse com urgência «chega-te para lá, chega-te para lá!». Pensei que fosse um familiar preocupado com ela, mas não. Era apenas um idiota chapado que veio armar-se em herói depois de ter sido eu a ir buscar a rapariga à linha-férrea. Não tenho palavras para descrever o nojo que senti por aquele homem que agiu como se fosse o salvador, não só da pobre diaba como da pátria. Nesse instante, chegou uma ambulância. Um montão de gente rodeou-nos e eu deixei de ver a rapariga. Acho que lhe estavam a lavar a cara. Acho que um enfermeiro lhe estava a cortar a perna da calça de ganga quando voltei as costas e me fui embora. Reuni-me com os meus amigos, mas não fui capaz de ficar ali. Estava a tremer. Fui para casa e preguei um susto à minha mãe que, ao pôr-me a vista em cima, pensou que eu tinha vindo de um bar mexicano.

Se há alguma moral nesta experiência dantesca que acabei de partilhar convosco acho que pode ser esta: ninguém sabe como é a realidade até ela lhe cair, a sangrar e a chorar baba e ranho, nos braços! Podemos escrever incontáveis páginas de prosa iluminada, e apaixonar-nos por elas ao ponto de sacrificar a vida e a higiene, mas é quase um pecado afirmar que a ficção que estamos a escrever é realista porque não é e nunca será. É por este causador que a obsessão com a realidade que afecta o espectro da Literatura Erudita e os molossos que a defendem demencialmente não se sustenta: aquilo que eu encontro na literatura que mais se aproxima da experiência que acabei de narrar, com o cheiro e o calor do sangue que me ensopou as mãos e a roupa, mais o ruído das ambulâncias e a vozearia dos heróis-de-bancada, está nos livros de horror do Stephen King e do Clive Barker. Com efeito, estes autores de ficção — de Literatura Popular —, estes desgraçados que andam iludidos a pensar que são escritores a sério, estão mais próximos da realidade do que outros escritores a sério de Literatura Erudita.

Depois do sangue, é preciso manter as coisas simples… Por isso, vou falar de insectos outra vez: as abelhas vêem cores que nós nem sabemos que existem. Não vêem tons diferentes das cores nossas conhecidas, mas cores novas. Acho que essa é que deve ser a tarefa do escritor: enquanto uns olham para as flores e vêem as cores do costume, os escritores devem ver os tons mais loucos e os padrões mais incríveis. E escrever sobre eles, claro. Resumindo, não quero ficar prisioneiro de uma forma de ver o mundo que, na verdade, é apenas mais uma ficção. Uma das maiores satisfações de ser escritor, recuperando o mote do primeiro parágrafo, é mesmo essa: atrever-nos a ser diferentes. Até faz lembrar aquele patético separador do canal de cabo da Fox em que há um tipo que está num bar a ver os outros a beber água e comenta que uns vêem o copo meio-cheio e outros olham para um copo meio-vazio. E ele? Ele diz que tem é sede… Imagino-me numa livraria a ver toda a gente a rotular os livros de Literatura Erudita ou de Literatura Popular, de acordo com as suas inclinações pessoais. E eu? O que é que acho? Eu quero é escrever, pá!… Como diz o papa-formigas (na página 312): «REDUCTIONISM is the most natural thing in the world to grasp.»

 

João Seixas:
Ora, passo a passo lá nos vamos aproximando de uma tentativa de resposta, da fugidia compreensão de qual a verdadeira essência da barreira inconstante que se ergue entre a academia e o populus. Como sempre, o David levanta questões pertinentes, e faz sangrar algumas feridas que alguns, mais inconscientes, achavam que estavam já bem saradas. Mas, conquanto subscreva inteiramente as conclusões do David, penso ser pertinente reforçar a ideia de que existe, efectivamente, uma realidade objectiva.

Negar a existência de uma tal realidade, objectiva, cognoscível em maior ou menor instância, seria subscrever as mais disparatadas teorias pós-modernas, selon Chacan, Derrida, Foucault e, entre nós, o falecido Eduardo Prado Coelho (e quem pode esquecer a sua lastimável intervenção na questão do Discurso Sobre a Ciência, de Boaventura Sousa Santos?). Seria negar a ciência moderna e, por conseguinte, as próprias fundações do pensamento racional e do mundo ocidental. Que a nossa utensilagem visual esteja limitada ao espectro compreendido entre o vermelho e o violeta (sendo nós, portanto, cegos quanto às colorações infra-vermelhas e ultra-violetas) não contende em nada com a realidade e concreta coloração de determinado objecto. Que uma flor para nós seja amarela, e para uma abelha tenha uma dezena de tonalidades invisíveis ao olho humano, em nada colide com a identidade fundamental dessa flor. A única diferença é a percepção que uns e outros, humanos e abelhas, temos de uma mesma realidade objectiva. Idêntica falsa questão é o célebre dito: se uma árvore cair no meio da floresta, sem que esteja lá ninguém para a ouvir, será que a sua queda provoca ruído? Claro que sim. Nós sabemo-lo porque sabemos que, havendo ar, a queda da árvore provocará sempre a deslocação deste, vibrando em determinadas frequências. Tal como sabemos que as abelhas percebem outras cores, pois desenvolvemos tecnologia e divisamos experiências que permitiram comprovar tal facto.

No entanto, o facto de existirem diferentes percepções sobre a mesma realidade não invalida que essa realidade exista e seja (em potência) integralmente cognoscível; nem colide directamente com o interesse ou desinteresse das obras que convencionamos chamar eruditas e as chamadas populares. Umas e outras orbitam sempre em torno desta realidade, explorando-a, confirmando-a, contorcendo-a ou obliterando-a. Mas é sempre esta realidade que escora e permite estruturar a ficção. É isso que, em última análise, distingue a ficção dos escritos dos loucos e dos religiosos, que postulam uma outra realidade imaginada, sem prestarem a devida vénia ao real e ao conhecido.

(Também não anula a existência de uma outra realidade consensual e não objectiva, uma realidade de valores, que não assenta na contingência histórica, mas na vontade da massa social, com as devidas adaptações nacionais, regionais, filosóficas ou religiosas. É essa realidade consensual que poderá, como antes disse ao referir-me à dimensão moral da literatura Erudita, ajudar a compreender a aversão à literatura Popular. Mas não é disso que quero tratar de imediato.)

Mas há, efectivamente, algo de fundamental nesta multiplicidade de percepções do real. Algo que, de acordo com alguns ensaístas, é ínsito à própria literatura moderna. Viktor Shklovsky, um dos Formalistas Russos, considerava no seu célebre ensaio de 1917 (Art as Device) que a principal função da arte era ultrapassar o efeito do hábito, através da representação do familiar de uma forma original: a isto chamava ele ostranenie, que David Lodge equipara ao conceito de desfamiliarização ou, digo eu, estranhamento. Na verdade, escrevia Shklovsky, «a arte existe para que possamos recuperar a sensação da vida; existe para que possamos sentir as coisas, para tornar o rochoso, rochoso. O propósito da arte é provocar a sensação das coisas tal como são percebidas, e não como são conhecidas.»

Este estranhamento resultaria assim de uma interpretação extremamente individualista da realidade, a qual nos seria apresentada de forma reconhecível, mas inovadora, enriquecendo assim a nossa capacidade de experimentar o real. Ora, poderíamos observar que, em nenhum caso, é tal estranhamento tão essencial como no caso da Ficção Científica, do Horror e da Fantasia, onde a realidade é transformada, por vezes completamente, mas nunca ao ponto de ser totalmente irreconhecível. No entanto, a mente-colectiva do estabelecimento cultural tem uma capacidade diminuta para enfrentar esse particular tipo de estranhamento; o máximo de abertura que lhe é concedido é o caso do realismo mágico, que Lodge identifica (em The Art of Fiction, 1992) «when marvellous and impossible events occur in what otherwise purports to be a realistic narrative». Porém, essa intervenção do fantástico no real tem uma razão de ser (que é o que a torna aceitável e lhe permite partilhar do sistema de códigos de reconhecimento da Arte Erudita): «In magic realism, there is always a tense connection between the real and the fantastic: the impossible event is a kind of metaphor for the extreme paradoxes of modern history.» Ou seja, o fantástico típico do realismo mágico apenas é aceitável por configurar uma codificação da incapacidade do espírito humano em lidar com acontecimentos extremos da história moderna. Curiosamente, uma análise dos elementos fantásticos que costumamos encontrar nos episódios de realismo mágico (capacidade de voar, animais falantes, animismo, queda livre, tempo lento) permite-nos concluir que são os mesmos que costumamos associar ao (e encontrar no) sono/sonho. O realismo mágico parece assim servir de almofada entre uma realidade tão brutal que nem pode ser representada e a representação que se quer fazer dessa realidade. Donde se retira que a própria literatura erudita, pelo muito que se propõe representar o real, extrair a sensação de vida da própria vida, tem dificuldade em lidar com todos os seus aspectos (do real e da vida), já para não falar na dificuldade que tem em lidar com as variadas matizes do possível. São mais as reticências e os silêncios cúmplices, os vazios entre capítulos e as insinuações do que propriamente as representações fiéis do real.

Porque os próprios autores, que são afinal os canais interpretativos necessários à ostranenie, não são eles próprios capazes de entender o real, entregando-se, sim, a interpretações do real extremamente subjectivado sobre que escrevem. Pensemos em eventos extremos: pensemos nos campos de batalha das duas guerras mundiais, pensemos no pesadelo do Holocausto, pensemos no horror de uma vítima de torturas, pensemos na vida agreste na Marinha Real Inglesa nos séculos xvii a xix. Todos eles encontraram representações realistas e fiéis, e todos eles passaram pelo crivo da individualidade dos autores que sobre eles escreveram. Pensemos em A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque; em Na Outra Margem por Entre as Árvores, de Hemingway; em Regimento da Morte, de Sven Hassel; em The Shadow-Line, de Conrad…

Pensemos, depois, no exemplo de Paul Auster, citado pelo David, ou nos exemplos nacionais de Gonçalo M. Tavares, Pedro Paixão, José Luís Peixoto. Se aqueles souberam interpretar a realidade porque a viveram, estes interpretam uma realidade em segunda mão, uma realidade que lhes é transmitida através da experiência dos outros. Que interesse pode ter um livro escrito por alguém que não tem qualquer experiência de vida, que não a de frequentar um curso superior, arranjar um tacho num jornal e ver as unhas dos pés a crescer?

Não se pense com isto que quero defender a escola redutora do “escreve sobre aquilo que sabes”. Quero, sim, demonstrar que estes autores, privados da vivência de acontecimentos extremos, reduzem a sua escrita à sua própria vivência interior; a sua adopção pelo cânone, paradoxalmente, opera-se não por uma novel perspectiva da vida ou do real, mas por uma repetição (por vezes doentia) dos próprios códigos de figuração perpetuados ao longo dos últimos duzentos anos. Face ao vácuo experiencial dos autores, a literatura mimética funciona como uma jaula de mediocridade, onde a ostranenie é interpretada, não como uma técnica, mas como carta branca para mergulhar em exercícios de estilo estéreis e pouco imaginativos (a exclusão de maiúsculas e pontuação, as brincadeiras com a mancha gráfica, as intervenções de um narrador/autor que nada tem a dizer a não ser lembrar a sua existência para que não seja esquecido) onde a forma se sobrepõe total e definitivamente ao conteúdo. Numa completa negação da literatura. Nada poderia estar mais longe da intenção de Zola quando definiu o romance experimental pela equivalência entre a orientação sociológica da sua escrita e os (então nascentes) métodos experimentais das ciências naturais.

Obviamente, dir-me-ão, os autores do fantástico, por maioria de razão, fogem ainda mais à interpretação da experiência real, ao escreverem sobre temas que são assumidamente irreais. O que é manifestamente verdade. No entanto, considerem o seguinte: ao escreverem sobre passados, presentes ou futuros alternativos, os autores de Ficção Científica estão a dissecar não só o real, mas o próprio carácter contingente desse real; colocam a nu a arbitrariedade do “real” tal como o conhecemos (precisamente chamando-nos a atenção para as cores do mundo das abelhas); e os autores de horror, pelo menos aqueles que são honestos consigo próprios e com os leitores, expõem perante nós os seus fantasmas mais profundos, despindo, por assim dizer, a alma do humano confrontada com os seus próprios pesadelos. O fantástico funcionará quase como o oposto do realismo mágico, enfrentando as experiências extremas que a literatura mimética não ousa representar.

Ao definir a ostranenie, Shklovsky serve-se como exemplo de um trecho de Tolstói, onde este descreve uma ópera vista através do olhar de alguém que nunca assistiu a nenhuma: «Depois apareceram ainda mais pessoas a correr e começaram a arrastar dali a donzela que até então envergara um vestido branco mas que agora vestia de azul-marinho. Não a arrastaram logo, mas ficaram a cantar com ela durante muito tempo antes de a levarem dali.» O que Tolstói faz é ridicularizar, de forma certeira, as convenções da Alta Cultura, ao mesmo tempo que demonstra que é necessário o domínio dos códigos para apreciar uma obra de arte. O Fantástico vai ainda mais adiante, pondo a nu a artificialidade das construções sociais, servindo por vezes de “comentário” extremo ao status quo que essa Alta Cultura pretende representar.

Onde a Literatura Erudita critica alguns aspectos do real, o Fantástico postula a total substituição do próprio real. Ao fazê-lo, nega o conjunto de valores comuns que as obras miméticas pretendem confirmar. Ao invés de nos apresentarem uma nova perspectiva do familiar, as obras do fantástico convidam-nos a desafiar o que é familiar, a tomarmos consciência da artificialidade das convenções e, sobretudo, a que abramos os olhos para a necessária contingência histórica do real. É uma posição de completa negação do cumular de experiências que forma o nosso sentir colectivo, cristalizado nas obras que a academia considera representativas do espírito humano.

E, no entanto, nada disto responde ainda à questão essencial: O que distingue um quadro de Van Gogh de uma ilustração de Frank R. Paul? O que distingue uma composição de Beethoven de uma outra de John Williams? Que distingue um livro de David Soares de um de Gonçalo M. Tavares?

Pelo pouco que vale a minha opinião, e no que a esta última questão diz respeito, daqui a 20 anos, ninguém saberá quem é Tavares.

 

António de Macedo:
Tenho lido atentamente os excelentes ensaios do David e do João, e a maneira como constroem e abordam a sempre vertiginosa e desequilibrante questão de como se poderá recortar, em arte (neste caso, narrativa), o instável território do real versus imaginário, do duradouro versus efémero, com inúmeros e pertinentes exemplos. Suspeito que estamos perante uma situação «fractal», de interdimensões fraccionárias, ou seja, antigamente era fácil saber-se que uma recta tem a dimensão 1, um plano a dimensão 2 ou um cubo a dimensão 3, mas… uma linha de costa que dimensão tem? Um ou 2?… Provavelmente, entre uma coisa e outra, talvez 1,666… E uma nuvem? Talvez 2,4 ou, se estiver muito carregada, talvez 2,8…

Em arte narrativa (e não só, bem entendido, mas convém não alongar muito isto), ao pretendermos delimitar conceitos tão deslizantes e escorregadios como popular/erudito, ou real/fantástico, ou o que fica para a posteridade e o que vai para o limbo do eterno olvido, estamos a entrar num campo minado por essa coisa esquisita que é a estética subjectiva, e que fez, por exemplo, com que um Júlio Verne nunca fosse admitido à Académie Française, apesar dos seus esforços: é que a sua escrita não era suficientemente «literária»… Penso que o problema dos académicos não era tanto uma questão de «género», mas de «prosa»: quando Flaubert publicou a sua Salammbô, em 1862, foi admirado por uns, pela força literária do seu «esteticismo realista», e violentamente contestado por outros que achavam aquilo não só imoral, mas sobretudo que aquela prosa era uma autêntica carthachinoiserie.

Esse mistério do «escrever bem» evidentemente que não basta e ainda menos esgota a desejável qualificação (e quantificação, as ideias também têm «peso»!) que distingue (felizmente!) um David Soares de um Pedro Paixão ou de um José Luís Peixoto, como o João muito bem acentuou: «Não se pense com isto que quero defender a escola redutora do “escreve sobre aquilo que sabes”. Quero, sim, demonstrar que estes autores, privados da vivência de acontecimentos extremos, reduzem a sua escrita à sua própria vivência interior; a sua adopção pelo cânone, paradoxalmente, opera-se não por uma novel perspectiva da vida ou do real, mas por uma repetição (por vezes doentia) dos próprios códigos de figuração perpetuados ao longo dos últimos duzentos anos.»

Isto é verdade. Um dia, comecei a ler os livros do Pedro Paixão e rapidamente me dei conta de que bastava ler um para ser o mesmo que ler todos; mais: bastava ler uma página de um, para se ficar com o livro todo lido… Quando se chega ao fim, ficamos a saber quantos cigarros fumou o protagonista, quantas quecas deu e quantas vezes olhou pela janela, e eu não posso deixar de me interrogar: O KEK EU TENHO A VER COM ISSO??? Bom, talvez esteja aqui uma boa razão das voltas que andamos a dar ao problema dos «géneros»: seja qual for o género, o que se descreve, aquilo para onde se olha, o que se dá, o que se idealiza, o que se conta, precisa de ter sempre algum ponto de contacto, ainda que ténue, com a humanitas, por muito alienígenas que sejam as propostas de autores tão diametrais como Ursula K. Le Guin ou Paul Di Filippo, acho que o Terêncio tinha razão quando escreveu numa das suas comédias homo sum et humani nihil a me alienum puto2

É por isso que continuo desconfiado das catalogações em géneros que nunca obtêm consenso entre os diversos luminares que se dedicam ao caso, como os estudiosos de «Teoria dos géneros» e da «Crítica dos géneros», como Devitt (2004), Dobbs-Allsopp (2000), ou Prince (2003) sem falar nos estudos de Kress (2003) sobre a «literacia».

Já os Gregos desconfiavam da separação de géneros cortada à faca, e reconheciam que certas obras podiam ser percorridas, transversalmente, por diversos géneros — embora lhes repugnasse este tipo de ambiguidades (maldito/bendito racionalismo grego!) que punha em causa as categorias e classificações naturalmente associadas a valores ideais, arquetípicos. Por conseguinte, a Ilíada com toda a excelência reconhecida por Aristóteles, não deixava de ser uma incómoda aberração, por ser do género épico, mas ter segmentos de tragédia e episódios líricos, como por exemplo a tocante despedida de Heitor e Andrómaca — estou mesmo a ver o pobre do Aristóteles a escrever isto na Poética e a coçar a cabeça, perplexo.

E já não falo no colete de forças que foi a ideia que percorreu toda a época do «cânone ocidental» do plot bem construído, plot esse cujos eventos ou incidentes, segundo os antigos retóricos (e a maioria dos modernos…), têm de se suceder logicamente (!) uns aos outros. Ainda não vi nenhum crítico que me soubesse explicar isto satisfatoriamente, e entretanto vou-me deliciando com estranhezas tão empolgantes como Tales of Zothique, do velho Clark Ashton Smith, ou as loucuras do ainda mais clássico Gustav Meyrink — e não falo nos modernos porque, curiosamente, há muitos e bons, quantas vezes o problema está na escolha!

Enfim, vocês desculpem-me, mas deve ser do reumático, volto sempre à receita mágica da suspension of disbelief, receita cunhada por Coleridge, em 1817 e que, em minha humilde opinião, continua a ser indispensável para que a leitura de uma estória história agarre, mais a receita gémea do sense of wonder examinado proficientemente por John Clute & John Grant, na sua incontornável Encyclopedia of Fantasy, e que eu prefiro traduzir simplesmente por «fascínio». Realmente, é disso mesmo que se trata: se o livro não agarrar o leitor pelo «fascínio», seja pelo lado do plot, seja pelo lado da fulgurante manipulação literária, seja por outro interstício supradimensional qualquer, mas igualmente enfeitiçante —, a obra falha.

E já agora, não gostaria de rematar estes breves alinhavos (ou desalinhos…) sem corresponder, nem que seja a cinquenta por cento, a uma sugestão off-the-record do João, de escolher um livro fantástico e um livro mainstream que tratassem temas semelhantes, e depois comparar… Confesso que a tentação é grande de pôr, lado a lado, dois livros «de peso» que tratam de um certo eterno feminino malévolo e criado artificialmente, embora este «artificial» tenha um significado completamente distinto em ambos os casos… Mas aqui vai: leiam com atenção A Sibila (1954), de Agustina Bessa-Luís (que, em 2004, já ia com mais de 26 edições), que ganhou vários grandes prémios literários do mainstream, bocejem à vossa vontade, e depois deliciem-se com os gélidos calafrios provocados pela Alraune (1911), de Hanns H. Ewers (1871-1943) — e esqueçam, por favor, as simpatias dele pelo nazismo, coisa que muito prejudicou a sua memória literária e que relegou para o desfavor do olvido a sua enorme capacidade de «criar fantástico».

David Soares:
Consultar o e-mail e ver que já chegaram mais intervenções vossas é um grande prazer: acho que o exercício de participar nesta troca de ideias convosco já se tornou, para mim, aquilo que o hidrogénio representa para a Tabela Periódica. Reli o que foi escrito e penso que a minha linha de raciocínio ficou reproduzida na integral, o que significa que, à vizinhança das considerações finais, tenho poucas palavras a acrescentar àquilo que já foi apresentado por todos.

Gostaria de sublinhar algumas ideias, mesmo assim. Conhecem o livro Tooth and Claw, da Jo Walton? Lembrei-me dele porque acho que será um bom exemplo para servir de modelo ao que vou expor. Esperem só um bocadinho que vou buscá-lo à estante… Já está! Bem, eu não sei como está o tempo em Viana do Castelo, João, mas aqui está um calor tremendo. António, se está em Lisboa, poderá comprová-lo. Talvez seja a nossa troca de ideias que se aproxima do boiling point!… Ui!… As nossas palavras estão prestes a transformar-se em vapor. Bom, eu disse que ia falar sobre o Tooth and Claw, não disse? Muito bem.

Este livro é um romance vitoriano (sub-género realista que se debruça sobre as condições sociais dos indivíduos que viveram no século xviii e cujo exemplo mais representativo serão as obras de Anthony Trollope) sobre uma sociedade estratificada em estratos rígidos. Todas as personagens têm de lutar com garras e dentes para ascender na pirâmide social e económica, pactuando com as situações mais aviltantes e permutando com as figuras mais abjectas. Não é um mundo fácil, acreditem!, em especial para as mulheres que, por serem… enfim… mulheres, são observadas como uns não-seres… Mas Tooth and Claw tem uma particularidade muitíssimo especial que o distingue, por exemplo, do título Framley Parsonage, escrito pelo já mencionado Trollope, no qual busca estrutura e inspiração. É que todas as personagens de Framley Parsonage são humanas, mas todas as personagens de Tooth and Claw são dragões!

São todas répteis alados que vivem em cavernas e cospem fogo. E, no entanto, não deixam de estar incluídas num romance que emerge da leitura como sendo vitoriano no sentido mais tradicional; na verdade, as personagens draconianas até fortalecem a luta de garras e dentes travada — literalmente!… — ao longo da narrativa.

Tooth and Claw não dá tréguas: é violentíssimo, demencial e psicadélico! Contudo, é tão… humano que se torna desarmante. Este livro ganhou um World Fantasy Award em 2004 e a minha primeira pergunta é a seguinte: É pelo facto de as personagens serem dragões que este título pode ser considerado um livro de fantasia? Por outro lado, poder-se-ia atribuir um World Fantasy Award a Framley Parsonage? Não sei… Também existem preconceitos na área da Fantasia e do Fantástico… É público que, depois de Neil Gaiman ter ganhado um WFA com uma história em banda desenhada, mudou as regras para que tal coisa não voltasse a acontecer.

Tooth and Claw é mesmo um exemplo excelente para partirmos as cabeças: 1) é um romance vitoriano tradicional, mas 2) tem dragões como personagens e 3) tem, também, uma certa aura de — porque não dizê-lo à boca cheia? — imbecilidade que faz com que seja olhado de lado tanto pelos leitores de fantasia como pelos outros. Conseguem imaginar-me a falar bem deste romance a um leitor que odeie fantasia? «Meu, tens de ler isto! É um romance vitoriano maravilhoso. Só que tem — arrhuuum… — “dragões” como personagens!» Nem preciso dizer qual seria a reacção mais provável deste acto falhado de proselitismo. Agora pensem que o recomendo a um leitor de fantasia: «Meu, tens de ler isto! É um maravilhoso romance com dragões. Só que tem — arrhuuum… — um realista enredo vitoriano!» ‘Nuff said. A conclusão é que ambos os lados — aquele que prefere ler Literatura Erudita e aquele que gosta mais de Literatura Popular — são preconceituosos!

Acho que existe tanto preconceito dentro da área do Fantástico como em qualquer outra área literária. É que alguma da Literatura Erudita que para aí anda… bem… é mesmo, mesmo boa!… E alguma da Literatura Popular que para aí anda é mesmo, mesmo má! Estou a lembrar-me do “idiota”, citado pelo João na primeira intervenção dele, que dizia no fórum Bad Books Don’t Exist, que o 1984 nunca poderia ser considerado como um livro de ficção científica, e só me dá vontade de rir por um motivo que é flagrante: não é um pouco pateta (no mínimo) dizer mal de um livro num fórum que tem como nome Bad Books Don’t Exist? O que é que me escapou? Poderá ser um sintoma que, mesmo dentro do nicho, existe um sub-establishment? Ou parafraseando Orwell: Há livros fantásticos mais fantásticos que outros?

Os livros nunca serão perfeitos: terão sempre fantasia a mais ou fantasia a menos; serão mais comerciais ou pouco comerciais; alternativos ou mainstream; serão impressos em papel reciclado ou em papel couché; serão escritos por homens para chatear as feministas e por mulheres para chatear os misóginos; terão autores gay para chatear os homofóbicos — habituem-se!… Ainda bem que existem livros, ou estaríamos condenados a ver as repetições da TV Cabo.

O meu método de abordagem aos livros é o seguinte: eu leio tudo o que me vier parar às mãos. Estou-me nas tintas se é Literatura Erudita ou Literatura Popular. É grosso, é fino? Não interessa. Se tiver letras e tiver páginas, eu leio.

Gostava de partilhar convosco quatro belos excertos: dois de péssima Literatura Erudita e Popular e dois de excelente Literatura Erudita e Popular. Palavras para quê? Para ler, claro.

«— Certo dia fui a um restaurante para trincar algo e alguém tinha deixado um jornal no balcão. Peguei nele e li-o. Foi quando descobri que tinha sido publicado um livro meu.

— Ficaste surpreendido?

— Não é essa a palavra que eu usaria.

— Então o quê?

— Não sei. Zangado, creio. Perturbado.

— Não compreendo.

— Fiquei zangado porque o livro era lixo.

— Os escritores nunca sabem julgar o seu próprio trabalho.

— Não, o livro era lixo, acredita em mim.

Tudo o que fiz era lixo.

— Porque não destruíste tudo, então?

— Estava muito ligado àquilo. Mas não é isso que o torna bom. Um bebé está muito ligado à caca que faz, mas ninguém se rala com isso. É um assunto pessoal.

— E por que razão obrigaste a Sophie a mostrar-me o teu trabalho?

— Para a acalmar.»

(Retirado de O Quarto Fechado da Trilogia de Nova Iorque, de Paul Auster)

«The doorbell rang.
It was a thirtyish woman, slender as Jane Fonda, a bit shorter than DeAnne. She had three kids in tow, the oldest a boy about Robbie’s age, and somehow — perhaps because of the kids, perhaps because of her practical cover-everything clothing, perhaps just because of her confident, cheerful face with hardly a speck of makeup on it — DeAnne knew that this woman was a Mormon. Or, if she wasn’t, should be.»

(Retirado de Lost Boys, de Orson Scott Card)

«Since I didn’t know what masturbation was, I of course didn’t know what ejaculate was. I thought it was pus. I thought it was phlegm. I didn’t know what to think, except that it was something terrible. In the presence of a species of discharge as yet mysterious to me, I imagined it was something that festered in a man’s body and then came spurting from his mouth when he was completely consumed by grief.»

(Retirado de The Plot Against America, de Philip Roth)

«The orange in the sun loses colour, turns white and develops thick, deep wrinkles.
It diminishes in size. Open the orange out and, taking one of the thick, wilted and creased segments, tear it in half. Inside, at its very centre, is a tiny piece of the orange that used to be — still fleshy, still clutching to a little juice. Were I to peel Emma, I think that somewhere deep within her, past all that thick seemingly dead cover, I might have found a little life, a little blood.»

(Retirado de Observatory Mansions, de Edward Carey)

Aguardo pelos vossos desenvolvimentos.

 

João Seixas:
À medida que nos vamos aproximando do final destas nossas (necessariamente) breves considerações, mais claro se torna o muito que fica por dizer. Relendo as nossas intervenções anteriores, apercebo-me de que, talvez por (de)formação profissional, todos temos centrado a nossa atenção naquilo que se escreve e como se escreve, sem prestarmos grande atenção à forma como é recebido aquilo que se escreve.

E, ao referir-me à recepção das obras escritas, quero referir-me essencialmente ao complexo processo de aceitação/rejeição-perpetuação/redescoberta em que são simultaneamente intervenientes leitores, editores, críticos e académicos. Ninguém põe em causa que cada autor tem uma sensibilidade própria — essencialmente pessoal — com a qual filtra os acontecimentos sobre que escreve. É essa diferença irredutível que ergue algumas obras acima de outras. E digo obras, não géneros. La Condition Humaine, de Malraux, To a God Unknown, de Steinbeck, Dying Inside, de Robert Silverberg, The Body, de Stephen King, V, de Thomas Pynchon, The Silence of the Lambs, de Thomas Harris, Pop. 1280, de Jim Thompson, Por Amor al Arte, de Andreu Martín, The Devil’s Advocate, de Morris West, The Gods Themselves, de Isaac Asimov, The Song of Kali, de Dan Simmons, ou The Painted Bird, de Jerzy Kozynski (entre milhares de outros títulos que poderia citar) são livros que, independentemente de pertencerem a um género popular ou erudito, independentemente de abraçarem ou não o fantástico, independentemente de um estilo de escrita mais ou menos conseguido, se elevam acima da média da literatura em geral, exclusivamente pela forma como o tema (quantas vezes banal) é tratado; veja-se, por exemplo, o caso de Jim Thompson, um hack writer, que escrevia um livro em coisa de semana e meia, quando não em quatro dias, e no entanto, imbuía as suas narrativas — brutais, cruas, de uma escrita atabalhoada — de uma tal realidade que as faz transcender o próprio texto.

E não será difícil encontrar exemplos de casos opostos, livros escritos de forma brilhante, mas que são como caixinhas de jóias vazias: o interior oco não acolhe nada de interessante e o deslumbramento com a forma esvai-se ao fim de poucas páginas; Paul Auster, Milan Kundera, Salman Rushdie escreveram alguns deles. Mais fácil ainda, encontrar exemplos de livros em que o vácuo de conteúdo e a ineptidão de forma são inseparáveis: qualquer coisa de Paulo Coelho, Inês Pedrosa, Pedro Paixão, Dan Brown ou Scott Wheeler, grande parte da obra de Lin Carter ou David Alan Prescott.

Excluídos, porém, estes casos, encontramos aquela que é, sem dúvida, a situação mais frequente em todos os géneros (mainstream incluído): livros escritos de forma capaz, sem nada que os distinga a nível estilístico, mas que arrebatam o leitor, de acordo com os seus interesses pessoais, durante as horas necessárias à sua leitura. São livros onde o estilo está subordinado à história, ao plot, e, se a história for bem contada, conseguem ser mais satisfatórios do que algumas das obras-primas que supra referi.

São livros que não necessitam de retirar verdades essenciais da “experiência da vida”; não têm, do início ao fim, uma frase eminentemente citável ou um personagem que não seja facilmente esquecível. E, no entanto… Ian Fleming, Isaac Asimov, Agatha Christie, Robert E. Howard, Ellery Queen, L. Ron Hubbard, A. E. Van Vogt, Clive Cussler, Richard Laymon, Dean Koontz, Kenneth Robeson, Edgar Rice Burroughs, Laurel K. Hamilton, Anne Rice, Lester Dent, H. Rider Haggard, John Buchan e tantos, tantos outros, tornaram-se imortais na memória daquele que é o leitor intemporal. São autores cujos livros são/serão lidos com o mesmo prazer e o mesmo agrado, mesmo volvidos mais de cem anos sobre a sua publicação, mesmo que tenham de atravessar o deserto de alguns anos de esquecimento.

Tal como o David disse numa das suas intervenções, e Leonard Cohen imortalizou numa das suas canções, «you live forever, when you’ve done a line or two». Uma das experiências mais compensadoras que se pode viver é a de “descobrir” um novo livro ou um novo autor, mesmo que esse livro tenha sido publicado há dezenas de anos e o autor não seja referido em nenhuma História da Literatura. A maior parte das vezes, damos com livros desprovidos de artificialismos narrativos, onde as personagens são completamente despidas de vida interior, mas que nos agarram pelo mero incidente da acção. Terminada a sua leitura, não nos foram reveladas nenhumas das verdades da vida (seja lá isso o que for) mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, parece que ficamos com os olhos muito mais abertos àquilo que nos rodeia. Talvez, como referia Gwyneth Jones no caso da FC, estes livros que pertencem à literatura menor consigam “traduzir” muito melhor as ansiedades do seu tempo do que as grandes catedrais estéticas jamesianas, vazias de fiéis, mergulhadas em silêncio, pó e presunção.

Parece-me a suprema ironia que sejam estes autores (hacks, que escrevem a martelo, comerciais) e estas obras (aventurosas, fantasiosas, por vezes mal escritas) que muitas vezes logram aquele que é o objectivo manifesto da literatura erudita: mudar o mundo, congelar em si a essência de uma época, documentar a identidade da espécie humana. Que sejam elas, afinal, as que mais vezes abordam as tais “coisas mais profundas” e que mapeiem uma possível identidade comum da humanidade. As fraquezas que o establishment lhe aponta são afinal as suas mais-valias. Ao fim e ao cabo, é na história, na narrativa, no plot, que assenta a literatura. A estrutura típica de uma obra de género é como um ritual que codifica as expectativas de uma época, de uma classe social, de uma nação. Alterando-se o ritual, altera-se a sociedade (ou, mais frequentemente, reflecte-se essa alteração). A literatura erudita — interior, umbilical, individual — é apenas um reportório de casos clínicos (Freud dixit, antes do descrédito das suas teses que — outro paradoxo — sobrevivem apenas na academia que matou a literatura com o escalpelo saussuriano). Já ninguém lê Zola, mas Verne continua a ser um bestseller. James está encerrado nos currículos das universidades, Wells nas prateleiras das livrarias; de Orwell sobrevivem as obras fabulistas (1984 e Animal Farm), Asimov é reeditado quase todos os anos.

«Swift ’s Gulliver, Huxley’s Brave New World, Orwell’s Nineteen-Eighty Four are great works of literature because in them the oddities of alien worlds serve merely as a background or pretext for a social message. In other words, they are literature precisely to the extent to which they are not science fiction, to which they are works of disciplined imagination and not of unlimited fantasy.» Quem assim escreve, antecipando em 55 anos o idiota do BBDE, é Arthur Koestler, no seu ensaio «The Boredom of Fantasy», na Harper’s Bazaar de Agosto de 1953. A profunda falácia que encerra já foi bastas vezes denunciada ao longo dos anos. No entanto, a ideia está lá, escrita por uma das luminárias do século xx: a literatura — a verdadeira, a boa literatura, tem de possuir uma mensagem de carácter social. Ou, recuando ainda mais, numa linha ininterrupta de continuidade, podemos recorrer a William Dean Howells que no seu «Novel Writing and Novel Reading» (1899), erguia a verdade como sendo o teste definitivo da literatura:

«(the novel is) the sincere and conscientious endeavour to Picture life as it is, to deal with character as we witness it in living people, and to record the incidents that grow out of character. (…) If I do not find it is like life, then it does not exist for me as art. It is ugly, it is ludicrous, it is impossible

Fidelidade ao real e mensagem de carácter social. O que poderá ser mais espartilhante, mais redutor? Apenas a ideia que lhe está subjacente: a de que a Alta Literatura, a literatura erudita, trata essencialmente de temas universais, imutáveis ao longo da história e transversais à humanidade: ou seja, uma impossibilidade de facto. Com uma tal agenda, os autores encontram-se livres de restrições de forma ou estrutura: é a importância do tema, a dignidade do tratamento, a relevância social que servirão de escala de mérito.

E, no entanto, já Kipling, com a sua desarmante simplicidade, escrevia que «no one in the world knew what truth was ‘till someone had told a story» (in A Book of Words, 1928).

A literatura erudita, proselitista, moralizante, pretendendo traduzir a verdade do mundo e as verdades da vida, é um atavismo do dealbar da modernidade, daquele período em que os romances (e quão melhor é o termo anglo-saxónico novel) eram escritos exclusivamente por cavalheiros para os seus pares, independentemente de considerações quanto à sua popularidade ou capacidade comercial. Uma tal perspectiva, da Sra. Thornton, de Koestler, de Howells, deixa sempre fora da equação o leitor: a novela destina-se àqueles que pensam como nós, pregando apenas aos convertidos e fechando-se à própria experiência do real. Perante uma tal situação, as obras deixam de ser avaliadas pelo seu mérito intrínseco, mas pelos seus autores: recordo-me de uma das mais patéticas críticas literárias que li no suplemento Leituras do Público, a 11 de Setembro de 1999, onde até a mancha gráfica do texto dos Cães de Rui Nunes (a mancha gráfica, como sabemos, é alheia à vontade do autor) era tida como uma revelação; recordo-me de Inês Pedrosa (ou alguém semelhante, tão parecidos são todos eles) referindo que Lobo Antunes estaria a perder qualidades porque começara a publicar um romance por ano, à moda dos autores comerciais norte-americanos (como se fosse impossível publicar três bons livros num único ano, como já King fez, ou apenas um de oito em oito anos, como Harris, ou um na vida, como Lampedusa, ou vinte em dois anos, como Dick).

A literatura erudita transforma-se assim numa tradição limitada, na perpetuação de um modelo (ele próprio assente nos clássicos, eles próprios assentes no acaso) congelado no tempo pela perpetuação da cotterie académica e crítica que o sustenta e que dele se sustenta, ela própria fechada à intrusão de novas vozes (veja-se, entre nós, como os autores mais jovens, para lhe acederem, têm de imitar de imediato as vozes vetustas que os precedem). A escrita transforma-se assim numa fantasia de inspiração, como se assentasse numa musa, ao invés de no trabalho árduo e diário dos autores debruçados sobre os seus teclados. Provavelmente, será o único refúgio do autor romântico que escreve possuído por um demónio interior, ao invés de pelo puro prazer de contar uma história. «A literatura é a voz da noite», dizia Eduardo Prado Coelho, com a sua habitual banalidade. É tão a voz da noite, como do dia, como da manhã, como de uma tarde de sol ou de uma manhã de ressaca. A literatura é a voz de quem escreve por ter uma história para contar e que prefere uma audiência activa, que se imiscui na narrativa a aprecia a inteligência da trama, do que uma audiência passiva, que procura na literatura as suas verdades transcendentais.

A transcendência, escreve Greg Egan (Schild’s Ladder, 2002) «was a content-free word left over from religion… It was probably an appealing notion if you were so lazy that you’d never actually learnt anything about the universe you inhabited, and couldn’t quite conceive of putting in the effort to do so…»

Apenas os imbecis e os irrecuperavelmente relapsos procurarão na literatura uma perspectiva da realidade, uma fatia de revelação de como as coisas realmente são; os outros, procuramos na literatura entretenimento, inteligência, um mindfuck assoberbante que escancare os preconceitos e os valores arreigados, uma libertação das grilhetas morais, uma escapatória para os desejos mais recalcados, um upgrade da realidade, como o David muito bem disse e, como alguém que não me lembro, disse ainda melhor, «enquanto uns se contentam com o real, os outros querem corrigi-lo».

Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvimento Interior? Realidade ou Fantasia?

São falsas questões que dicotomizam a utensilagem de que a literatura dispõe para cumprir uma única e idêntica função: entretenimento inteligente.

 

António de Macedo:
Nas intervenções anteriores do João e do David foram focados alguns dos pontos essenciais deste nosso tema, e digo apenas «alguns» porque, se virmos bem, são inesgotáveis, o que não quer dizer que os tais «alguns» propostos e analisados pelos meus ilustres confreires não sejam de peso, e perfeitamente iluminadores de eventuais caminhos a seguir.

Na impossibilidade de comentar tudo, e até porque nesta fase do campeonato a maratona se aproxima da recta final, limitar-me-ei a escrevinhar algumas notas a propósito de um ou outro ponto que me permita divagar sobre estas fascinantes matérias — como diz o provérbio: a divagar se vai ao longe…

Começo por pegar no comentário do João ao referir-se à profunda falácia que é: «…a literatura — a verdadeira, a boa literatura, tem de possuir uma mensagem de carácter social. […] Fidelidade ao real e mensagem de carácter social. O que poderá ser mais espartilhante, mais redutor? Apenas a ideia que lhe está subjacente: a de que a Alta Literatura, a literatura erudita, trata essencialmente de temas universais, imutáveis ao longo da história e transversais à humanidade: ou seja, uma impossibilidade de facto.»

Estou inteiramente de acordo, e não posso deixar de me lembrar de um conhecido crítico literário e historiador de literatura, Harold Bloom, muito mal visto pelos actuais críticos neo-historicistas, descontruccionistas, sexistas dialógicos e outros pós-modernistas… Pois o bom do homem dizia coisas como estas, no seu livro The Western Canon (1994 — O Cânone Ocidental, na excelente tradução portuguesa de Manuel Frias Martins): «Ler os melhores dos melhores autores — digamos, Homero, Dante, Shakespeare, Tolstói — não fará de nós melhores cidadãos. A arte é perfeitamente inútil, como disse o sublime Oscar Wilde, que tinha razão em tudo. Wilde também nos disse que toda a má poesia é sincera. Se eu pudesse, mandava gravar estas palavras na porta principal de todas as universidades.» E, duas páginas mais adiante, interroga-se: «De onde veio a ideia de conceber uma obra que o mundo não deixasse deliberadamente morrer?»

Parece que esta ideia da eternidade da fama literária terá começado a surgir e a tomar forma com o Renascimento, conceito aliás manhoso e escapadiço porque, tal como a preferência ou não-preferência pela «literatura de género», é coisa que tem tendência para variar de acordo com os tempos e as modas: Alastair Fowler, Professor de Literatura Inglesa na Universidade de Edimburgo, em Kinds of Literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes, afirma sem rodeios que «temos de admitir o facto de que a gama completa de géneros nunca está igualmente, para não dizer totalmente, disponível em todos os períodos. Cada época possui um reportório relativamente pequeno de géneros a que os seus leitores e críticos podem responder com entusiasmo, e o reportório que se encontra facilmente à disposição dos seus escritores é ainda mais pequeno: o cânone contemporâneo é fixado para todos excepto para os escritores maiores, ou mais fortes ou mais arcanos. Cada época faz novas rasuras no reportório. Num sentido fraco, talvez todos os géneros existam em todas as épocas sombriamente incorporados em excepções bizarras e fora do vulgar…»

Por exemplo, no século xix, esteve muito em voga um género literário, o «romance de adultério» (Flaubert, Tolstói, Balzac, etc.), que hoje nem merece o rótulo de género!

É curioso que o David tocou neste ponto de uma maneira contundente, como quem dá uma estocada de florete com um taco de baseball, e ainda por cima acerta em cheio! «É desanimador pensar que a Escrita é um campo com possibilidades tão vastas, mas que se encontra sempre espartilhado por convenções de mercado, acidentes de iliteracia e preconceitos patetas…» Sem dúvida! Não posso deixar de me lembrar, reprimindo dentro dos limites da decência as inevitáveis e convulsivas gargalhadas, do espartilho pateta, para não dizer colete de forças, que foi, durante séculos, para a literatura em geral e para o teatro em particular, a famosa Regra das Três Unidades, atribuída ao pobre do Aristóteles, que ainda por cima, não teve culpa nenhuma: um humanista italiano do século xvi, um tal Lodovico Castelvetro, lembrou-se de publicar um livro intitulado La Poetica di Aristotele vulgarizzata (1570), onde impingiu a ideia de que Aristóteles tinha imposto a exigência das três unidades dramáticas, de tempo, de lugar e de acção, e portanto uma peça de teatro devia confinar-se a uma única e simples acção, decorrendo num único local, e não ultrapassando um único dia de duração. (Na verdade, as observações de Aristóteles na Poética são mais descritivas do que prescritivas, e limitam-se apenas à unidade de intriga [plot], ou de acção.)

Todos nós, mais ou menos, conhecemos o estrago que aquele popularíssimo e erróneo livro de Castelvetro provocou na Europa culta: a absurda «Regra das Três Unidades» fez uma brilhante carreira e deu origem a polémicas e disputas críticas intermináveis, como por exemplo se um único dia significava 12 ou 24 horas, ou se um único local significaria uma sala, uma rua ou uma cidade. Esta curiosa tirania dominou sobretudo a França literária até ao século xix, e os conceituados Corneille e Racine obedeceram-lhe cegamente!

É claro que nada impede que tais espartilhos sejam utilizados em literatura como meros jogos, são os chamados «constrangimentos literários» com que se divertem certos autores e certos grémios: creio que um dos círculos mais notórios onde este tipo de fenómeno prospera é o OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), que conta (ou contou, alguns já faleceram) com nomes tão conhecidos como Georges Perec, Harry Matthews, Marcel Duchamp, Stanley Chapman, Italo Calvino, etc., e impõem-se tarefas tão entusiasmantes como, por exemplo, escrever um romance inteiro sem a letra «e» (La Disparition, de Georges Perec), ou escrever um romance em forma de puzzle ou ainda um conto ou uma novela em palíndromo, ou seja, tanto se lê de diante para trás como de trás para diante, como as frases «Socorram-me em Marrocos», «A diva em Argel alegra-me a vida», «Anotaram a data da maratona», etc.

Podemos pensar que isto é um disparate e não tem nada a ver com «literatura a sério», mas, se virmos bem, e como muito bem realçaram o David e o João com diversos exemplos e referências, os preconceitos com que a «crítica» examina os «objectos literários» acaba por ser, no limite, tão absurda e aberrante como coisas destas.

No fundo, não passará tudo de mera convenção?!

Bom, eu apesar de tudo creio que não. Há sempre um resíduo que não se deixa assimilar pela estupidificação da moda ou pela estreiteza da análise, por mais intelectuais e academizantes que estas sejam, e esse resíduo, felizmente, é a inesgotável capacidade da natureza humana de absorver «encantamento» onde ele realmente exista — como diz o João:

«Forma ou conteúdo? História ou Desenvolvimento Interior? Realidade ou Fantasia? — São falsas questões que dicotomizam a utensilagem de que a literatura dispõe para cumprir uma única e idêntica função: entretenimento inteligente.» [Sublinhado da minha responsabilidade.]

(E ainda podíamos acrescentar outras falsas dicotomias, como plot versus character, ideias versus imagens, intelecto versus emoções, etc.)

Se quisermos abranger todo este vasto universo do confronto entre o «género fantástico» e o mainstream numa outra forma de dicotomia para além destas que o João denuncia, talvez me atrevesse a sugerir que, no fundo, tudo se resume a uma questão de respeito ou não respeito pelas leis da Física (seja ela quântica ou mecânica clássica)! De uma forma geral — e se calhar, em muitos casos, inconscientemente —, os críticos têm tendência para considerar que as matérias que constituem impossibilidades físicas não merecem acolhimento na Alta Literatura — dragões que deitam fogo pela boca ou espadas mágicas são impossíveis, logo não podem subir ao excelso pódio literário, tal como são impossíveis as viagens no tempo ou desviar planetas das suas órbitas. O que não exclui que os directamente implicados em FC&F não procurem distinguir entre as impossibilidades que a Ciência pode eventualmente tornar um dia possíveis (viagens no tempo ou desviar planetas das suas órbitas), e as impossibilidades que a Ciência (pelo menos, em princípio) não está minimamente interessada em tornar possíveis (dragões que deitam fogo pela boca ou espadas mágicas). Talvez esteja aqui a mais elementar destrinça entre FC e Fantástico… De ambos os impossíveis, um pode constituir um interessante desafio para a Ciência, o outro não.

Já agora, e a propósito de Fantástico, não gostaria de terminar estas breves notas sem mencionar um aspecto que o David realçou, e bem, ao chamar a atenção para «as obras mais conhecidas do Renascimento, como as de Dante, Petrarca e Boccaccio — que, por mérito próprio, são obras de literatura fantástica, sublinhe-se. Para ser sincero, não encontro na literatura clássica nenhum desdém pela fantasia ou pelos elementos fantásticos.»

Isto é verdade, e o que é mais curioso é que estes autores — e outros, como Chaucer, Froissart, Malory… — a cavalo entre os séculos xiii e xv, talvez por serem artistas imaginativos e de alto voo, tinham e propunham uma salutar ideia de fantasia, ao passo que nos meios filosóficos (imagine-se!), em paralelo e até bastante tarde, se manteve uma conservadora e arcaica ideia de fantasia, considerada uma actividade da mente que se identificava com a suspeitosa imaginação, visto que se opunha à realidade, tanto sensível como intelectual. Para os filósofos, a imaginação, sobretudo até ao século xvii, ainda era considerada «maîtresse d’erreur», segundo Blaise Pascal (1623-1662), e «la folle du logis», no dizer de Malebranche (1638-1715). Ambos seguiam neste particular as pegadas de Montaigne (1533-1592) que, falando daqueles «qui croient voir ce qu’ils ne voient point», considerava a imaginação não como um poder contemplativo e criativo do espírito, mas como aquilo que faz com que o erro e a desordem se instalem no mesmo espírito e o tumulto se apodere do corpo!

Mas os filósofos bem-pensantes não desarmam, e não obstante terem começado finalmente a perceber a diferença, a partir do século xviii, entre imaginação e fantasia, mesmo assim só condescenderam com a primeira, que passou a ser vista positivamente, como actividade criadora e instigadora de novas formas e novas ideias (imagination is image-in-action), mas perante a segunda não desarmaram, e a pobre da fantasia continuou a ser uma «imaginação desenfreada e caótica», em cujos meandros se perde quem queira correctamente lidar com o mundo e planear as suas directrizes de vida.

Ora, este curioso (e corrosivo) preconceito continua a preponderar, mais ou menos disfarçadamente, em muitos círculos literários e artísticos que aspiram ao Prémio Nobel ou ao Museu Guggenheim… Mesmo depois das teorizações de Freud (as fantasias psicológicas podem constituir forças poderosas graças ao poder dos desejos recalcado) e sobretudo de Dilthey e de Benedetto Croce, em que a fantasia ascendeu ao estatuto estético e se transformou em «fantasia poética» tornando-se o fundamento da livre criação do artista — mesmo assim, dizia eu, mesmo depois das lucubrações destes ilustres pensadores, ainda hoje se mantém, pegajosamente, a ideia de que a literatura de fantasia é uma literatura menor — como se toda a literatura de ficção, realista ou não realista, mimética ou não mimética, não fosse afinal uma literatura de fantasia: por muito «autênticas» que possam parecer as personagens e as acções, a famosa e cautelosa advertência que costuma anteceder certas obras (literárias ou fílmicas), e que diz «qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é pura coincidência», mais não é do que uma contrita confissão de que tudo aquilo não passa de fingição fantasiada!!!

Bem, está na hora de concluir — tenho de pôr um travão em mim, senão corro o risco de me entusiasmar e continuo por aí fora, o que não seria nada decente nem oportuno.

Ainda bem que estas «tertúlias» se fazem, é uma maneira expedita de irmos aprendendo o que não há tempo de ler e absorver nos milhentos livros que tratam de todos estes (e outros!) excitantes assuntos, e agradeço ao David e ao João o prazer deste instrutivo e agradável convívio, e ao Luís a ideia de ter lançado o desafio. Ainda por cima, um convívio sobre «géneros» donde, naturalmente, sobressai o «fantástico», que, enquanto género (ou subgénero?) literário/artístico parece causar tantos pruridos à crítica mainstream, quando afinal o fantástico, sob a capa mágica do invisível (ainda que mal nos dêmos conta, por tão habituados), é algo que preenche as nossas vidas dum modo quase absorvente para não dizer sufocante — e nem sequer precisamos de fazer apelo ao invisível dos reinos sagrados, religiosos, míticos ou místicos, preponderantes em todos os tempos e em todas as culturas: basta-nos referir, por exemplo, o invisível psicológico dos sonhos, dos pressentimentos ou das coincidências inexplicáveis, bem como todo o supra-mundo dos arquétipos e do inconsciente colectivo desvendado por Jung. Mas, se prestarmos bem atenção ao «mundo concreto» em que se engolfam as nossas vidinhas e as nossas actividades quotidianas, vemo-lo transpenetrado a cem por cento por um campo invisível de radiações — ou melhor, de interacções —, gravíticas, electromagnéticas e subatómicas que «governam» as nossas vidas e deixam a perder de vista os prodígios das histórias de fadas e de lendárias feitiçarias: a electricidade, as ondas de rádio, o telemóvel, a TV, os raios-X, o ciberespaço, a Internet, o comando a distância, a RV [Realidade Virtual], os infravermelhos, a ressonância magnética nuclear, as microondas, os efeitos quânticos, a aceleração de partículas de alta energia…

O nosso universo, mais do que um lugar fantástico, é um misterioso lugar de «encantamento mágico», como já fazia notar Francis Bacon (1561-1626), Barão de Verulam, chanceler de Inglaterra e filósofo, na sua famosa obra Novum Organum (1620): o universo e toda a sua estrutura, diz Bacon, é um verdadeiro labirinto para o intelecto humano que o contempla, um labirinto cheio de caminhos ambíguos e de aparências falaciosas de coisas e sinais, uma complexa teia de nós, espirais e contracurvas, além de que os nossos sentidos são enganadores e a mente humana é instável e repleta de ídolos: todo o conjunto se apresenta como visto através duma bola de cristal, simultaneamente deformante e encantada…


1 «Todos os géneros são bons, excepto o género enfadonho.»
2 «Homem sou, nada do que é humano me é alheio.»


A revista BANG! agradece a António de Macedo, João Seixas e David Soares o tempo e interesse que dedicaram a esta tertúlia. Que seja a primeira de muitas. Os três autores estão representados neste número da revista com outros textos, onde poderá consultar a biografia de cada um deles.

 

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 5, publicada em setembro de 2008

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