Revista Bang!
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Dar novos futuros ao mundo para que o mundo termine tarde

Por Inês Botelho

No princípio era a palavra, as histórias contadas ao borralho, e então eis que o mundo se encheu de páginas e cenários e notas e imagens, de vidas que embora inventadas são verdade. Por graça das várias artes, temos hoje um mundo povoado de universos, realidades com gente e passados, acontecimentos revistos ou reescritos, terras impossíveis e devires que talvez se concretizem. O futuro imaginado pertence inteiro à ficção científica. E contudo tende-se ainda a imaginar este género como uma caixa pejada de Cefalópodes gigantes e naves espaciais.

Ultrapassadas as associações mais imediatistas, lá se pensa em robôs, extraterrestres, planetas transbordantes de fauna exuberante com hábitos alimentares a roçar a carnificina, mais umas quantas reminiscências das velhas narrativas pulp apresentadas em tecnicolor. Outra pequena dilatação e surgem também inteligências artificiais assassinas, regimes opressivos feitos para controlar cada gesto e indivíduo, maquinaria atolada de botões, painéis e hologramas, cidades metálicas com arranha-céus de lisura rebrilhante ou sujos, acanhados, meras torres decrépitas enfeitadas por néons e erguidas em terras perpetuamente chuvosas. Fica-se sem dúvida com uma caixa de limites menos constritos, mas de qualquer modo subjuga-se a ficção científica a uma meia dúzia de motivos simplistas. Zero subtileza e nada de capacidades artísticas nem desenvolvimentos estimulantes.

Malgrado a longevidade, uma vasta disseminação e décadas de debates sobre o assunto, o género onde ciência e futuro se fazem enredo mantém essa reputação parasitária de parente indesejado. Se nos meios anglo-saxónicos esta fama começa a inverter-se, fruto tanto de um público em clara expansão como de um interesse académico e crítico cada vez maior, por terras lusas retém-se a ideia de uma coisinha popularucha apreciada por uns quantos adolescentes de cultura reduzida e parcas aptidões sociais.

As caixas têm destes problemas: dividem e repartem e no fundo servem mais para excluir do que para facilitar a organização. Acentuam demasiado a diferença, dão o mote para se formarem grupos e num instante estamos todos a declarar alianças enquanto nos empenhamos a desconfiar com algum desdém de certa facção. A taxonomia artística é ademais um artifício signifi- cativamente limitado, desprovido quer da precisão quer dos benefícios concretos da sistemática classificativa dos seres vivos. Talvez devêssemos liquidá-la. Ou talvez devêssemos abandonar de vez tanto as generalizações como os estereótipos. Não existem géneros menores, só obras boas e más. Ou enunciando de outra forma, a reaproveitar o argumento de Theodore Sturgeon, noventa por cento da ficção científica é sem dúvida lixo, porém noventa por cento de tudo é lixo. E esses dez porcento restantes encantam, provocam, distendem fronteiras, incitam buscas, propulsionam questões.

O futuro chega hoje e agora.

Por graça da ficção científica entramos sem entraves no que poderá ocorrer um dia, em tipologias e arquitecturas se calhar diferentes e em hipotéticas sociedades onde variados paradigmas convergiram por simbiose de eventos históricos e técnica. Aliás, com quase tanta celeridade quanto se evocam objectos voadores pouco identificados e hipotéticos tripulantes de proporções insólitas, costuma aventar-se para a ficção científica a extraordinária faculdade de prever tecnologia futura. À semelhança de Jules Verne, cuja fama de visionário presciente advém não de espantosas fugas imaginativas mas antes de uma sopesada extrapolação da tecnologia sua contemporânea, a perspicácia da ficção científica deriva de uma observação da actualidade tão apurada quanto cuidada e que implica ponderar ciência, política e as consequências de ambas conjugadas, transformando depois esse pensar em narrativa, em situações que desencadeiem outras reflexões.

Aventura e filosofia conciliadas em diferentes doses e proporções. O presente ali ao virar da esquina. Nós a caminhar por possíveis ainda não acontecidos. O grande fascínio da ficção científica reside precisamente aqui. Mesmo quando os feitos descritos parecem advir mais da falta de conhecimento científico do que do seu excesso ou quando, como postulado pela terceira lei de Arthur C. Clarke, a tecnologia está tão avançada que se torna indiscernível da magia, algo muito frequente nos últimos anos mal se convoca a nanotecnologia para a história, ainda assim conserva-se esta  impressão de realidade potencial. Os futuros que a ficção científica tece viciam-nos, prendem-nos, ficam a levedar-nos no raciocínio. Umas poucas imagens, algumas palavras sugestivas, e às vezes há logo aí o início de uma descoberta.

Lembro-me de andar em miúda pela Feira do Livro a cobiçar as escolhas dos meus pais, em especial os volumes de páginas fininhas e capa azul adquiridos na banca da Editorial Caminho. Via-os a circular pela casa o ano inteiro, ouvia-os em conversas e elogios e queria absolutamente escorregar ali para dentro. Que me achassem muito nova para semelhantes enredos deixava-me fervente de curiosidade.

Já vos contei do enjoo e da confusão
que advêm de viajar no tempo.
H. G. WELLS, A Máquina do Tempo

Aos sete ou oito anos surripiei o Memórias encontradas numa banheira (1961) de Stanislaw Lem, instigada mais por uma vaga ideia romântica de ler livros às escondidas do que por alguma proibição efectiva. Não retive qualquer frase e sei que desisti em pouco tempo da aventura. Adiei-a para leituras vindouras, resignada à ideia de que porventura aquilo da ficção científica ainda não era de facto para mim. No futuro, portanto. E nessa altura leria também A nebulosa de Andrómeda (1957), a obra de Iván Efrémov que a minha mãe afirmava estar guardadinha à minha espera.

Não a li. Vieram outros livros, novas sugestões que por qualquer motivo ganharam precedente. Um dia será. Em todo o caso, saia ou não desiludida da leitura, devo-lhe uma certa gratidão. Contribuiu muito para a aura que durante a infância montei em torno da ficção científica, convertendo-a num mistério pleno de promessas espicaçado pelo tema dos Ficheiros Secretos, essas seis notas que fui reproduzindo ao piano e que volta e meia me punham a cirandar pela sala numa tentativa pouco dissimulada de espreitar o episódio que o meu pai e a minha irmã viam com afinco.

A ficção científica serve-me desde então de pequena delícia, quase de jogo e desafio. Onde a fantasia tem o dom encantatório do maravilhoso e do onírico, às vezes até do pesadelo, a ficção científica tem o da descoberta inventiva e criadora, o do raciocínio lógico aplicado a uma multiplicidade de aspectos. Trate-se de um livro, de um filme, ou de uma série televisiva, gosto das ideias provocantes, das noções que ficam a inquietar o pensamento, a perguntar poderia ou não suceder, quais são as bases, os fundamentos, e se isto acontecesse como ficaria o mundo, o que mudaríamos, como mudaríamos. Há uma potencial panóplia de debates gerados a partir de uma obra deste género e dos efeitos práticos e éticos das premissas que apresenta. Convoque-se
alguém para a conversa, partilhe-se determinado livro, siga-se uma série acompanhado de fulano ou sicrano, vá-se ao cinema com os amigos, e depressa se inicia uma actividade comunitária tornada mais estimulante pela variedade de intervenientes e posturas. Além disso as interrogações conduzem a pesquisas, a livros e filmes e quadros e teorias e a uma infinidade de caminhos. Alguma sorte, um pouco de enredo certeiro na altura correcta para a pessoa certa, e gera-se inclusive uma paixão por
ciência e conhecimento.

Carecemos desta vertente de usar a ciência como heroína ou apenas mais-valia, sem andar alegremente a vilipendiá-la enquanto criadora exclusiva e irre flectida de monstruosidades ou mera ferramenta predilecta de indivíduos megalómanos que colocam sempre a humanidade na berma do precipício. Tamanho apego à latência catastrófica e nefasta da ciência adequa-se mais às narrativas do século XIX sobre cientistas loucos que tentam usurpar o lugar divino do que ao desenvolvimento do século XXI onde os prodígios da biologia, da química, da física e da matemática nos rodeiam dia a dia de contínuos benefícios. O que auxilia a distopia também a combate, desmonta-a, e segue mesmo na direcção oposta.

De uma infância em ânsias por ferrar os olhos nisso da ficção científica, desemboquei com alguma surpresa numa juventude a investigar utopias, o seu subgénero mais generalizado e com melhor aceitação por parte do grande público, efeito quer da reputada tríade formada por Admirável mundo novo (Aldous Huxley, 1932), 1984 (George Orwell, 1949) e Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1953), quer de uma frequência crescente no cinema e de um uso assíduo por diversos escritores, alguns assinantes de fenómenos comerciais significativos, alguns louvados pela crítica.

De facto, nessas disputas anquilosadas sobre as virtudes inatas do género ou a falta delas, recorre-se amiúde à distopia de Margaret Atwood A História de uma Serva (1985) para demonstrar que a ficção científica consegue produzir obras de elevada literacia. Podiam escolher-se outros livros. Podia, por exemplo, falar-se do Matadouro Cinco (1969) de Kurt Vonnegut, mais próximo das viagens no tempo que propulsionam este As primeiras quinze vidas de Harry August.

primeiras quinze vidas de harry august
Primeiras Quinze Vidas de Harry August -Coleção: BANG Nº: 242

Séculos antes de H. G. Wells engendrar A Máquina do Tempo (1895), uma viagem temporal a revelar um futuro distópico, já a humanidade imaginava regressar ao passado ou espreitar o futuro por meio de um qualquer transporte mágico ou através das visões dos oráculos. Os dois pólos opostos das viagens no tempo cativam de tal modo a imaginação e o desejo que poucos autores do género resistem ao deslumbre. A maioria cai num vórtice de linhas temporais sobrepostas, contradições e paradoxos tão entranhados que ponderar o assunto por mais de breves instantes resulta num invariável nó mental e numa sobrecarga do sistema. Como se explica num dos muitos debates de As primeiras quinze vidas de Harry August:

(…) cem gerações mais tarde, o nosso bravo viajante dá por si desprovido de existência porque a sua antepassada foi apanhada com o filho do talhante e, por isso, ao não existir, já não pode regressar ao passado e impedir o seu próprio nascimento assustando um pardal, e portanto nasce, pelo que já pode regressar ao passado e… Será que devemos introduzir Deus a esta altura?

Harry August vai evitando confusões desta ordem por viajar no tempo de maneira algo peculiar: ao morrer volta ao dia do nascimento e cresce e vive de novo na mesma época até morrer mais uma vez e repetir todo o processo. Contudo, embora Harry se esforce por não comprometer o futuro nem o influenciar, talvez existam outros com capacidades semelhantes e menor contenção. O mundo está a chegar ao fim demasiado depressa. Harry sabe-o, avisaram-no, o próximo passo pertence-lhe.

Claire North, ou antes Catherine Webb sob o pseudónimo de Claire North, maneja os meandros da ficção científica e das viagens no tempo entrelaçando-os com as características de um romance histórico situado entre o início e o término do século XX e onde a ciência figura de variadas formas não redutoras. Nas páginas deste livro vogam motivos originários de muitos géneros, técnicas comuns em obras bem diversas, e existem perguntas, dúvidas, inquietações. Nem todas se resolvem. Ficam para as analisarmos, para as dissecarmos sozinhos ou em conversas com amigos, familiares, gente mais ou menos conhecida que se reúne em argumentações geradas numa qualquer rede social.

Matosinhos 15/12/2017 – Comic Con 2017 na Exponor. Claire North . (Pedro Kirilos / Global Imagens)

Terminada a décima quinta vida de Harry August, estaremos de pensamento invadido por passado e futuro, um outro futuro talvez possível. Como Harry, decidido a travar o cataclismo iminente, revisitaremos o passado e o presente movidos pela ideia da aproximação de um devir instável. Os hipotéticos futuros que a ficção científica dá ao mundo causam às vezes destas turbulências e, ao alertarem para equilíbrios trémulos, dão-nos vontade de mudança, de engenhos e atitudes que adiem o fim por vários séculos.
Boa viagem.

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