Revista Bang!
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Anais do ontem e do amanhã

Artigo de opinião revista bang! #24

Diz mulher
ao teu país
como lutaste até hoje
MARIA TERESA HORTA, Mulheres de Abril (1976)

As histórias tendem a despontar de um enovelado de influências significativamente ou nada interligadas, cheio de coincidências e possibilidades às vezes concretizadas, em muitas outras esfumadas. As histórias inventadas e também as reais que nos informam cada dia.
Em Janeiro de 2017, com Donald Trump a iniciar o mandato como Presidente dos Estados Unidos e a Marcha das Mulheres logo a seguir-se-lhe, antecipava-se um ano de lutas e retrocessos, maior desprotecção das camadas frágeis, demagogias, agrilhoares tanto dos direitos sociais como dos direitos sexuais e reprodutivos. Aconteceu de algum modo o que se previa e também uma sucessão de atropelos algo surreais, daqueles que dariam vontade de risos não viessem acoplados a situações dúbias, incompetências, e posições inflamatórias de gravidade crescente. Neste contexto, a adaptação televisiva da distopia de

Margaret Atwood

Margaret Atwood The Handmaid’s Tale (1985) adquiriu uma relevância em tudo imprevista quando a Hulu anunciara a produção no Abril anterior.
Nessa época de 2016 vivia-se ainda a impressão de que Hillary Clinton ganharia as eleições e os Estados Unidos elegeriam a sua primeira mulher Presidente. A teocracia de Atwood, hierárquica e segmentada por géneros, parecia mais um exercício especulativo já sem ecos na ocidentalidade do que um extremar de assuntos pertinentes. Um ano volvido e afinal os nacionalismos e ideologias conservadoras cresciam no espaço público dos Estados Unidos e da Europa.


Os materiais promocionais, divulgados desde Março de 2017, mostravam cartazes, excertos, vídeos e entrevistas e mulheres com os capelos brancos e vestidos vermelhos das Servas a caminharem por Austin durante o festival South by Southwest. A Hulu pretendia apenas propulsionar o interesse, não frisar conteúdos políticos ou promover paralelismos. A conjuntura sociopolítica, aliada à forte iconografia da série, encarregou-se dessa parte.
Gilead, a nova república instalada no deposto território dos Estados Unidos, totalitária e repressiva, com valores transcritos do puritanismo do século XVII, impôs às mulheres uma passividade servil quase desprovida de direitos. Divididas em Esposas, Martas, e Servas, serão senhoras casadas, empregadas domésticas, ou então mulheres férteis atribuídas à classe dominante pois a fertilidade mundial escasseia e Gilead decidiu-se a primeiro gerar crianças para as elites. June/Offred é uma dessas mulheres, capturada, afastada da filha, e obrigada a servir de útero à família do Comandante a que o estado a emprestou.
No livro, ainda que com vergonha, Offred habita uma inércia não só imposta pelas circunstâncias mas também algo escolhida, um acomodar-se ao que aconteceu guiado pelo hábito e pela percepção de que para sobreviver mais vale aquiescer do que impor resistência. Talvez seja uma falsa submissão, um truque para se proteger caso a encontrem e apanhem as cassetes com o relato da sua experiência. Atwood alude a essa possibilidade no novo final que escreveu para a versão áudio do livro saída em 2017, um revisitar da obra em parte oportuno, em parte movido a uma vontade de acrescentar leituras face à contemporaneidade, em grande parte desnecessário e que entrosa no espírito de chamada às armas da série. “A culpa é deles” – reflecte June/Offred – “nunca deveriam ter-nos dado uniformes se não queriam que fossemos um exército.”
Episódio a episódio, a série direcciona-se para uma resistência algo aspiracional. Desfazem-se as ambiguidades do livro, aproveita-se para definir posições, expandir a narrativa, criar activismo. Como argumenta Emily Nussbaum, um produto televisivo precisa de infundir energia no enredo, engendrar uma missão, em especial se pretende estender-se por várias temporadas e este gostaria de chegar às dez.


Narrativas alargadas prestam-se mal a indeterminações e só se justificam perante âmbitos mais vastos, logo as personagens aumentam, as suas existências crescem, desdobram-se os pontos de vista. Por um lado perde-se, por outro ganha-se. A série prova-se particularmente ágil a desenvolver os meandros de Gilead, a forma como se reage ao novo regime, o desamparo que ele causa. Nesta nova realidade apenas se conseguem minúsculas vitórias e a série detém-se em diversas minúcias, uma filigrana de momentos e partilhas que se avolumam. Enveredando por trilhos diferentes do livro, reitera-se ainda assim a necessidade de contar histórias.
Os testemunhos chegam em sussurros, cautelosos contudo certos, a formarem um ninho de relatos, tanto amparo quanto impulso à vontade de actuar. As vivências contadas por essas vozes, juntamente com outros eventos filmados, inserem-se na premissa do livro de não incluir nada “que já não tivesse acontecido (…) nem tecnologia que não estivesse já disponível.”
Actualizaram-se certos referenciais. Afincou-se a proximidade. Muitos aliás sentiram ecos da Marcha das Mulheres na manifestação de protesto do terceiro episódio. Um sincronismo fortuito, pois a cena fora filmada meses antes, mas que serviu para acentuar a noção de pertinência.
Sob a orientação da realizadora Reed Morano, a fotografia de Colin Watkinson teceu uma paleta tão rica quanto esvaecida e luminosidades baças favoráveis aos jogos de focagem e desfocagem que perpassam os episódios. Onde esta ambiência de sereno afogamento promove quer claustrofobia quer um certo onirismo umbrífero, as cores suaves de Wonder Woman (Patty Jenkins, 2017), frequentemente soalheiras ou listradas pelo Sol, fomentam um júbilo discreto porém constante.


O clima sociopolítico impulsionou o furor que rodeou The Handmaid’s Tale e a sua valorização, contribuindo para os diversos prémios que a série angariou, e ajudou também a alimentar os louvores a Wonder Woman. À semelhança do que aconteceu com Black Panther (Ryan Coogle, 2018), Wonder Woman, embora de forma menos pronunciada, estreou em clima celebratório. O próprio filme imbui-se desse espírito. Há graça e encanto, um sentido de humor natural, uma inabalável esperança.
As escolhas de elenco afirmam-se no mínimo competentes, amiúde felizes, certeiras nos casos de Diana/Mulher-Maravilha (Gal Gadot) e Steve Trevor (Chris Pine). A realização de Jenkins ilumina o filme, afastando-o dos disparates voyeuristas habituais neste género e nos quais, poucos meses volvidos, Justice League (Zack Snyder, 2017) reincidiu. Mesmo quando o final encarrila na habitual apoteose de pancadaria, com o vilão a berrar baboseiras estereotipadas e incitações ao ódio reminiscentes dos métodos do Imperador para corromper os Jedi, todavia evita-se resolver o confronto com um festim de o meu murro é mais forte do que o teu.
Diana atravessa a maioria da história num estado de grande inocência, a ver o mundo no fundo em termos maniqueístas. A sua ingenuidade torna-se até constrangedora. E quando por fim as ilusões se desmoronam, inevitavelmente surge primeiro a desorientação, os golpes defensivos, ineficazes. Diana tem toda uma desmitologização para fazer em poucos minutos e a narrativa impõe-lhe que a efectue dentro da imagética de uma batalha. A passagem da infância à idade adulta, esse maturar de perspectivas, traduz-se portanto num discurso inspirador seguido de um contra-ataque, no entanto sem se glorificar a agressividade, apenas com eficácia, serenidade.


Tal atitude espelha a personagem criada por William Moulton Marston, principal autor da banda-desenhada desde o primeiro número em 1941 até à sua morte em 1947 e cuja biografia Jill Lepore explora em The Secret History of Wonder Woman (2014). Marston emerge como um homem pleno de contradições, fascinante mas exasperante, inventivo, intransigente, com mais lábia do que sucesso, convicto da própria genialidade e enamorado dela. A sua invariável necessidade de auto-promoção acabou quase sempre a minar-lhe os projectos, dividindo-o por variadas actividades de curta duração e deixando as responsabilidades diárias para Sadie Elizabeth Holloway e Olive Byrne, as duas mulheres com quem viveu longos anos numa relação poliamorosa.
Holloway trabalhava, assegurando a maioria do rendimento familiar, Byrne cuidava das crianças e ia auxiliando Marston nas suas actividades. Byrne era filha de Ethel Byrne e sobrinha de Margaret Sanger, ambas muito envolvidas nas campanhas feministas do início do século XX. O livro de Lepore transforma-se também num traçar fascinante destas lutas, da sua evolução e metamorfosear ao longo das décadas, de como influenciaram Marston, motivando e informando o percurso da Mulher-Maravilha.
Marston acreditava numa nova era na qual as mulheres governariam o mundo, as suas qualidades inatas propagando liberdade, justiça, amor, e conduzindo os homens a preferirem a paz aos conflitos. As histórias da Mulher-Maravilha serviam de propaganda psicológica a esse ideal de mulher, mostrando o seu valor e contribuindo para acelerar a sua aceitação. Uma utopia, à imagem das utopias feministas como Angel Island (1914) de Inez Haynes Gillmore ou Herland (1915) de Charlotte Perkins Gilman.
A Wonder Woman de Jenkins e Gadot prossegue essa via utópica, sem o ideário de Marston mas com o mesmo optimismo e compaixão da Mulher-Maravilha original, o seu empenho em ajudar a humanidade, em criar um mundo melhor. Lepore lamenta que o filme ignore as mulheres que pugnaram por representatividade, direitos contraceptivos, igualdade, as mães, avós, e tias da Mulher-Maravilha. Desse longo batalhar apenas se menciona as sufragistas num aparte esquecível, porém o sucesso comercial do filme favorece que se invista e dê visibilidade a mais histórias de mulheres e contadas por mulheres.
Diferentes ocasiões ao longo da História tenderam a propulsionar a criação de obras determinadas a pensar as questões de género, a denunciar situações, provocar debates, diálogos. Se nos últimos anos tem surgido uma pluralidade de trabalhos convictos da necessidade de ponderar estas problemáticas, com a presidência de Trump, e no rescaldo do caso Harvey Weinstein, a propensão só deverá intensificar-se.
Algumas dessas criações constroem-se aliás no rasto de Atwood. Como Auringon ydin (2013), de Johanna Sinisalo, onde anos de eugenia produziram uma população feminina finlandesa maioritariamente abonecada, de raciocínios débeis, corpos por um lado neoténicos, por outro voluptuosos, assegurando enfim que nenhum homem se verá rejeitado, sem esposa, ou com a dominância contestada. Afinal a negação destes direitos básicos provoca agressividade, ameaça a ordem social. Melhor a nova configuração. Esterilizam-se as mulheres desajustadas das características normativas, marginalizam-se-as, e nada de álcool, drogas, ou da perigosa capsaicina dos chilis. Com um final galopante, a misturar horrores e transcendências delirantes, o livro engloba tanto ideias distópicas quanto sátira. Os mesmos elementos conjugam-se de forma distinta em The Power (2016) de Naomi Alderman, pensado para uma abrangência mais generalizada. Por todo o mundo as mulheres começam a manifestar a capacidade de gerar descargas eléctricas, umas imensas, outras mais fracas, algumas erráticas. A mudança instala-se, desenvolve-se, e enquanto o enredo pondera relações de poder, o paradigma inverte-se de tal forma que o livro espicaça um variegado leque de conversas, sobre violência, visibilidade, predisposições e capacidades inatas.
Estas obras e as questões que abordam não se tornaram agora mais oportunas do que nunca. São-no já há vários anos. Basta considerar os anais da História. Entre avanços e retrocessos, os assuntos repetem-se década após década após década. Desde pelo menos 1935 que os Estados Unidos discutem a possibilidade eminente de uma mulher Presidente. Acontecerá um dia. Entretanto temos histórias a contar, futuros a imaginar.
Face à proliferação de distopias dos últimos anos, cresce a preocupação de o impacto do género se esfumar ou impulsionar políticas mais reactivas do que construtivas de benefícios de longo prazo. O perigo existe. O potencial para consciencializar também.
Alguns dias após a campanha publicitária da Hulu em Austin, várias mulheres apareceram no senado do Texas envergando o traje das Servas para protestarem contra uma proposta de lei anti-aborto. A ideia repetiu-se ao longo de 2017. Afinal a instrumentalização de determinadas imagens é uma estratégia impactante. As próprias sufragistas recorriam a acorrentamentos simbólicos. A Mulher-Maravilha nasceu desses movimentos, e a partir da década de 1970 foi tanto usada quanto desprezada pelas feministas.
Outras campanhas virão.

Mundo fora existe ainda muito a melhorar, situações inaceitáveis, silêncios a quebrar, direitos a conquistar. A obra de Atwood, as suas encarnações e descendências, continuarão a gerar perguntas, desassossegos. Precisamos disso. Precisamos dos relatos de servas, esposas, filhas, das suas lutas, das verdades de mulheres reais e inventadas e das utopias movidas por mulheres maravilhosas.

Inês Botelho

1) A primeira edição portuguesa do livro surgiu em 1988, pela Europa-América, como Crónica de uma Serva; a edição de 2013 da Bertrand Editora recebeu o título A História de uma Serva. Em Portugal a série, disponível no Nos Play, manteve o título inglês.
2) Emily Nussbaum, “A cunning adaptation of ‘The Handmaid’s Tale’”, The New Yorker, 22 de Maio, 2017. Nussbaum lembra ainda que a introdução de diversidade racial na série, embora a torne mais inclusiva, acaba também a converter Gilead num regime sem preconceitos raciais, algo particularmente implausível tratando-se de uma versão distópica dos Estados Unidos.
3) Margaret Atwood, “Margaret Atwood on what ‘The Handmaid’s Tale’ means in the age of Trump”, The New York Times, 10 de Março, 2017.
4) Jill Lepore, “Wonder Woman’s unwinnable war”, The New Yorker, 2 de Junho, 2017.
5) Publicado durante 2016 quer em francês, sob a designação Avec joi et docilité, quer em inglês, com o título The Core of the Sun.
6) O romance está publicado em Portugal numa muito recente edição da Saída de Emergência intitulada O Poder.
7) Encontram-se parte destes argumentos no artigo de Brady Gerber “Dystopia for sale: how a commercialized genre lost its teeth” (Literary Hub, 8 de Fevereiro, 2017) e no ensaio da própria Lepore “A golden age for dystopian fiction” (The New Yorker, 5 & 12 de Junho, 2017).

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