Arquiteturas da Loucura: Frankenstein ou O Horror Do Que Está Vivo
por Jorge Palinhos
A maturidade não é uma questão de estar adiantado nos anos, mas de estar perto da morte. Só isso explica que Mary Wollstonecraft Shelley pudesse ter criado Frankenstein ainda tão nova, mal estava a dar os primeiros passos do seu vigésimo aniversário.
Mary não era uma rapariga vulgar: era filha do filósofo anarquista William Godwin e da autora feminista Mary Wollstonecraft, e a própria mãe morrera ao dá-la à luz, facto que a parece ter assombrado nos primeiros anos de vida, ao ponto de o pai ter de lhe garantir que não a iria abandonar como castigo. E, na verdade, o abandono do pai em relação ao próprio filho é, mais do que tudo, o crime de Victor Frankenstein.
A infância, já se sabe, é uma fonte inesgotável de inspiração literária, mas foram precisas condições excecionais para que Shelley tivesse escrito o romance que fez a transição da literatura gótica para aquilo a que chamamos Ficção Científica. Essas condições excecionais multiplicaram-se a partir dos 16 anos da jovem Mary, quando esta abandonou a casa paterna para fugir com o poeta Percy Shelley para a Suíça, onde conheceu o famoso poeta Lord Byron, de quem a sua irmã se tornaria amante, e John William Polidori, o primeiro autor sobre ficção de vampiros. Desse encontro terá nascido a inspiração para a história do cientista que tem a audácia de querer criar vida, tal como um escritor tem o atrevimento de tentar criar outros mundos.
Só que nos meses que passou a escrever o romance, Mary viu a irmã Claire morrer ao dar à luz o filho de Byron, a esposa legítima de Percy Shelley, Harriet, suicidar-se quando estava grávida daquele, e viu-se a si própria grávida, tendo dado à luz cinco semanas depois de entregar o manuscrito de Frankenstein ou o Prometeu Moderno ao seu editor, em março de 1818.
A primeira edição do livro, anónima, foi um fiasco. Uma das primeiras críticas publicadas sobre o livro concluía que o seu autor só podia ser tão louco como o protagonista da obra. Supõe-se que o crítico não terá reparado na sofisticação da estrutura da história – contada à vez pelo capitão Robert Walton, por Victor Frankenstein e pela própria criatura sem nome, cuja voz é vertida (ou talvez deturpada) pelo próprio Frankenstein, ou na influência do poema Paraíso Perdido, de John Milton, cuja personagem de Satanás, na sua dança entre o ódio e a sedução, servira de modelo para o Monstro de Frankenstein.
Esta má receção teria condenado o livro a passar despercebido durante largos anos, se não se tivesse dado uma adaptação do livro para teatro, em 1823, cuja publicidade sensacionalista («Não traga a sua esposa! Não traga as suas filhas! Não traga a sua família!», era o slogan publicitário) popularizou a história e gerou numerosas outras adaptações para teatro e cinema, que acabaram por dar a feição da história que a maior parte do público conhece, e especialmente simbolizá-la na face inimitável de Boris Karloff.
Foram também essas imagens que me levaram a ler o livro, numa edição impressa a papel azul com capa preta, num único serão de adolescência, sob a luz amarelada da mesa de cabeceira. Mais do que o horror que esperava encontrar, surpreendeu-me a vulnerabilidade da criatura, que observa, escondida, uma família igual àquela que desejava ter, que trava amizade com um menino, ou que implora a Frankenstein que lhe dê uma companhia, uma parceira, alguém que lhe seja semelhante, que o possa amar e que ele possa amar, de modo a que o afeto dê sentido a uma existência que se deve às mais absurdas razões científicas, biológicas e até egoístas. As razões pelas quais também a maior parte de nós vem ao mundo.
O curioso é que no centro de Frankenstein há um mistério que ainda ninguém entendeu, e que nem a própria Mary Shelley conseguia explicar: Porque é que o protagonista, depois de passar meses a trabalhar na sua criatura, a tentar dar-lhe vida, só se apercebe da sua fealdade quando a vê viver, e a renega prontamente, ou seja, no preciso momento em que obtém aquilo que passou tanto tempo a perseguir?
Para este enigma foram já dadas as mais variadas explicações. Há quem faça leituras psicanalíticas do livro, de que o abandono traduz a angústia de abandono que a própria Mary sentiu com a morte da mãe; há quem faça leituras marxistas, de que a criatura representa o proletariado das fábricas, criado pelas elites vitorianas, mas que estas rejeitam com horror a partir do momento em que aquele ganha consciência de classe; há quem leia o terror da jovem Shelley a contemplar o nascimento do seu primeiro filho e o seu próprio corpo a transformar-se, à revelia da sua consciência e vontade.
Eu suspeito que o abandono que Frankenstein submete à sua criatura é, principalmente, o abandono que um criador submete àquilo que cria, como o autor que, depois de passar meses a criar uma obra feita das ideias, experiências e leituras mais díspares, abandona o seu livro para o ver ganhar vida própria, e tornar-se mais feio e estranho quanto mais o autor se distancia dele. E, desse modo, Frankenstein é também a própria Mary Shelley, filha, mãe e escritora, que ao mesmo tempo que se sente horrorizada por aquilo que cria, a continua a perseguir obsessivamente, tal como Frankenstein persegue a sua criatura pelos campos gelados do Ártico, sob o olhar perplexo do capitão Walton, que, tal como nós, nunca entenderá completamente esta intimidade única, feita de amor e ódio, que se estabelece entre o criador e a sua criação.
Artigo retirado da revista BANG! n.º 24, publicada em maio de 2018