Editorial Revista Bang! 27 por Luís Corte Real
Quando se tem curiosidade acerca do funcionamento e dos desafios de uma editora, lê-se a Revista Bang! e tem-se algumas respostas!
O que assegura o sucesso de uma editora?
Tenho tentado nestes editoriais levantar o véu sobre o dia a dia de uma editora. Há muitos assuntos interessantes por onde pegar, afinal, o que assegura o sucesso de uma editora é um equilíbrio instável entre muito trabalho de secretária, certinho, previsível e chato, e a dose certa de impulsividade, instinto e criatividade. Neste texto vou tentar satisfazer mais um pouco da vossa curiosidade.
A em deterimento de B
E também de C e D
Por vezes os leitores não percebem a razão de uma série ser cancelada (isso já foi explicado no editorial da Bang! 26), a razão de uma obra ser dividida em dois volumes (idem), ou a razão de publicarmos um autor em detrimento de outro. Vamos fazer desta última questão a espinha dorsal deste editorial: porquê publicar o autor A e não o B. A primeira coisa a ter em conta, na hora de escolher um autor, é que há milhares em todo o mundo. Só na literatura fantástica, por exemplo, temos centenas de sagas. As
mais famosas chegam-nos dos EUA e do Reino Unido, onde o género é muito maduro e profissional — com capacidade de chegar ao cinema e à TV — mas também mais formulaico; mas a verdade é que há excelentes autores de fantástico em todo o mundo, da Austrália ao Canadá, da Ásia a África, e um pouco por toda a Europa: Espanha, Alemanha, França e até Polónia (nunca é demais fazer referência a Andrzej Sapkowski acabadinho de chegar à Netflix — o que prova que, nos dias de hoje, já nem é necessário escrever em inglês para vingar em outros média).
Depois de termos a noção exata (e a surpresa inevitável) da enormidade de autores disponíveis, do imenso celeiro onde temos de encontrar a nossa agulha, levanta-se a pergunta: qual escolher para publicar?
O engodo dos tops
O primeiro passo é simples: caso estejamos à procura de um autor para a Coleção Bang! começamos por ver quais é que já estão publicados em Portugal. Parece um passo dispensável mas não é — já me aconteceu ler e decidir lançar um autor para depois descobrir que já estava publicado por cá. (O que revela duas coisas: primeiro, que não é por sermos editores que sabemos tudo o que chega ao mercado; segundo, que há livros que passam despercebidos, seja por mau trabalho das editoras, seja pelo famoso «azar sem explicação».) (Este «azar sem explicação» dá, por si só, um editorial inteiro.)
Depois de excluirmos todos os que já estão publicados cá — e no fantástico devem ser apenas 0,1% do que é lançado em todo o mundo —, o passo seguinte é ver quais são os que vendem mais no estrangeiro. A lista dos famosos bestsellers é longa e contém muitas dezenas de autores. As editoras sem experiência em literatura fantástica, e em que os editores não conhecem o género, se um dia decidirem publicar fantasia porque está novamente na moda (é assim, as modas vão e vêm), provavelmente vão basear-se apenas no top de vendas americano para montar o seu catálogo (com uma ajudinha do scout). Mas quando se conhece bem o género, como é o caso da SdE, o top não pode ser o único fator quando montamos um catálogo. Dentro da literatura fantástica há géneros com dificuldade em se impor em Portugal: o horror é um deles. As edições limitadas de H. P. Lovecraft vão-se vendendo, mas é um clássico que se insere num nicho que aprecia as nossas edições cuidadas feitas por fãs para fãs. Mas porque é que o gigante Stephen King vende tão pouco em Portugal quando comparado com os outros mercados?
E porque é que dos 10 autores de horror mais vendidos em todo o mundo, a maioria nem está publicada cá ou, estando, tem vendas desprezíveis? A ficção científica é outro género amaldiçoado em Portugal. A SdE tem publicado clássicos e autores contemporâneos de FC (Asimov, Herbert, Heinlein, Le Guin, Gibson, Bradbury, Vandermeer, etc.), mas o público nacional que gosta do género compra fundamentalmente em inglês, e o que não gosta não compra em língua nenhuma. É pena mas é a realidade. Resumindo: mesmo que o top americano tenha alguns livros de horror e FC, um editor que conheça o género sabe que isso não significa nada na hora de vender os livros em Portugal. Por isso é que as editoras que baseiam o seu catálogo apenas em tops de vendas publicam, com muita expetativa, livros que estão inevitavelmente destinados ao fracasso. Acontece a todos, até a nós.
Sobre Mestres e aprendizes
Então em que é que nos baseamos para escolher um título? Claro que o top é importante, mas depois de desvalorizarmos os géneros que, tradicionalmente, não vendem cá, é preciso estudar com atenção o que sobra. Se estiver interessado em uma saga de fantasia épica, será que vale a pena publicar um autor que é apresentado como «o próximo Steven Erikson»? Ser comparado a um dos mestres da fantasia que mais vende nos EUA é um tremendo elogio. Mas faz sentido publicar «o próximo Steven Erikson» quando o próprio Erikson, que temos o orgulho de publicar na Coleção Bang!, tem vendas baixas? E isto aplica-se a outros elogios como «quem gosta de Robin Hobb vai gostar desta saga», ou «perfeito para os leitores de Brandon Sanderson», ou ainda «os fãs de Guy Gavriel Kay vão adorar». Resumindo: o aprendiz dificilmente vai vender tanto quanto o mestre, e se o
próprio mestre não tem vendas satisfatórias, em princípio, devemos evitar publicar o aprendiz.
Depois de filtrar bem os géneros que não têm um bom histórico de vendas em Portugal, bem como os aprendizes de mestres que também se deram mal no nosso mercado, o que sobra? Ainda sobra muita coisa, nomeadamente armadilhas vendidas com sofreguidão pelos agentes
literários, como por exemplo: «o próximo George R. R. Martin». Se eu tivesse um euro por cada autor que já me tentaram vender com essa frase, podia fazer uma ponte de moedinhas para atravessar o Atlântico e ir visitar o mestre a Santa Fé. Muitos anos a ler fantasia, tanto coisas boas como coisas más, ajudam a perceber qual é o segredo de uma saga como A Guerra dos Tronos. Mas esse conhecimento, por incrível que pareça, não é assim tão vulgar. Por isso é que há tantas editoras lá fora, mas também cá, surpreendidas pelas vendas fraquinhas dos autores que lhes venderam como «o próximo George R. R. Martin». O segredo de A Guerra dos Tronos não está nos dragões, na magia que os deuses oferecem aos seus eleitos, ou nos mortos do outro lado da muralha. Cada um terá a sua opinião, sendo a arte tão subjetiva e pessoal, mas uma explanação sobre o segredo desta saga, que conquistou os fãs clássicos da fantasia mas também os que costumavam ter desprezo pelo género, daria um ótimo editorial no futuro.
ENTRAM AS CONTAS
Voltamos então à questão inicial: publicar o quê? Depois de relativizar o top, peneirar os géneros amaldiçoados, evitar aprendizes de mestres que não fizeram escola no nosso mercado, e ainda os gatos que os agentes procuram fazer passar por lebres, ainda sobram imensos livros interessantes. Mas o que fazer quando a saga que acreditamos ter mais potencial para o nosso mercado já tem meia dúzia de volumes? Se os leitores nacionais receberem de braços abertos o primeiro volume, é ótimo
haver mais volumes para dar continuidade ao sucesso do primeiro. Mas e se as vendas do primeiro volume forem um desastre? Significa deixar a série pendurada e alguns leitores zangados. Esta situação leva a que muitas séries maravilhosas, que li e levaram o selo de aprovação editorial, chumbem quando pensamos melhor nos riscos. Noutras situações o risco é menor, porque se trata apenas de uma trilogia e não de uma saga sem fim à vista, mas o problema pode ser semelhante se cada volume tiver 800, 600 ou até mesmo 500 páginas!
Perdi a conta ao número de livros que li cujo mundo, trama e personagens me conquistaram (e que considerei uma tremenda mais-valia para a Coleção Bang!), mas que depois de fazermos um orçamento ao projeto concluímos não serem viáveis. São livros tão grandes que os custos de tradução e impressão só são suportáveis com vendas, por exemplo, acima dos 5000 exemplares. E é muito raro um livro de literatura fantástica chegar a esses números.
E porque na SdE também publicamos thrillers, romance histórico, literatura romântica, não ficção, etc., estou à vontade para vos dizer que é muito raro qualquer livro, de qualquer género, chegar a esses números. Por vezes abrimos exceções pois há autores que têm mesmo de ser publicados: George R. R. Martin, Robin Hobb, Brandon Sanderson ou Steven Erikson são alguns deles. Todos tiveram livros divididos em dois, mas as críticas constantes de leitores menos informados sobre o mercado (exemplo clássico: «vocês dividem porque querem dinheiro») fazem-nos evitar reproduzir essa fórmula quando os autores são menos conhecidos. O mercado nacional fica mais pobre pois nem é publicada a edição integral num volume, nem a edição dividida em dois, mas evitamos uma série de problemas — até porque, e esta é a parte mais triste, desses quatro autores só um se revelou comercialmente viável.
Modas
Então já temos mais dois cuidados a ter quando escolhemos um livro para a Coleção Bang!: evitar séries longas que não sabemos quando acabam e livros excessivamente grandes. (Não é fácil evitar este último ponto pois se Tolkien deixou imensas heranças boas à fantasia, também deixou duas que são tóxicas: a obsessão por trilogias e calhamaços.)
Outra coisa fundamental a ter em conta são as modas literárias. Houve a moda dos jovens feiticeiros com Harry Potter; a da fantasia épica com os filmes de Peter Jackson baseados em O Senhor dos Anéis; a dos vampiros depois do Crepúsculo de Stephenie Meyer; a da fantasia cinzenta e crua com A Guerra dos Tronos de George R. R. Martin – principalmente depois de chegar à HBO, etc.. Estas modas, tal como um pastor, encaminham os leitores para caminhos predefinidos. Ninguém consegue prever a próxima moda, mas é mais fácil, depois da moda estar identificada, saber o que se publicar para tirar partido dela. (A saga A Casa da Noite de P.C. Cast e Kristin Cast é um bom exemplo disso — vendeu que nem pãezinhos quentes quando os leitores de Crepúsculo foram à procura de mais do mesmo.) Mas, regra geral, não há qualquer moda a influenciar o mercado, ou até há, mas noutros géneros literários que nada têm a ver com o fantástico: todos nos lembramos da moda dos thrillers à la Dan Brown; dos livros de colorir para adultos; da literatura erótica depois de As Cinquenta Sombras de Grey terem deixado tantas senhoras (e senhores) cheios de calor; e, mais recentemente, para grande alegria da SdE e do nosso Mark Manson, os livros de autoajuda com asteriscos nos títulos.
E o que mais pode influenciar a visibilidade e as vendas de um livro? Será que devemos ter em grande conta os livros que vão ser adaptados ao cinema ou à televisão? Os agentes fazem disso uma grande coisa, e sem dúvida que há imensos exemplos, muitos deles no nosso catálogo, onde os novos média deram um empurrão inegável às vendas. Mas na maior parte das vezes essa adaptação só serve para inflacionar o custo dos direitos e não traz retorno ao editor, seja porque a adaptação foi má, seja porque nesta Golden Age da TV se adapta tudo e mais alguma coisa, numa cavalgada em que são poucos os autores que conseguem beneficiar de ver a sua obra adaptada.
Conclusão
Como veem, o processo de seleção editorial é um labirinto. Queremos um bom livro, mas temos de ter cuidado para que não seja grande demais. Nem o primeiro de uma série que não sabemos quando termina. É preciso relativizar os tops estrangeiros, compreendendo o comportamento do nosso mercado. É preciso evitar as armadilhas dos mestres e dos aprendizes. É preciso estar atento a modas que canibalizam as vendas durante um período que pode durar meses ou anos. É preciso identificar os livros que vão ter adaptações ao cinema e TV. Mas isto tudo sem esquecer o inicial, queremos um bom livro, que satisfaça os nossos leitores e onde seja um orgulho colocar o selo da Coleção Bang! Conseguimo-lo sempre? Claro que não. Até porque as regras que vos descrevi neste texto não estão escritas em pedra — já dei grandes trambolhões por as levar à letra, e já me dei muito bem por as ignorar de todo. Mas são aquela parte certinha, previsível e chata que temos de fazer antes de podermos ser impulsivos e seguir os nossos instintos. E o meu instinto (leia-se, o fã de fantasia que tenho dentro de mim) decidiu ignorar as regras todas de que falei anteriormente e avançar com a publicação de um autor fabuloso que dá pelo nome de Joe Abercrombie. O departamento comercial desaconselhou avançar com o projeto — porque o autor já foi publicado em Portugal
e não teve vendas famosas; porque o livro é GIGANTE; porque autores semelhantes no nosso catálogo não se deram bem; etc. —, mas mesmo assim insisti e vamos em frente. Porquê? Porque este é um livro brutal, com trama e personagens marcantes, e é de livros como este que a Coleção Bang! precisa. É certo que é muito volumoso, mas dividimo-lo em dois. Em contrapartida é um standalone e não o primeiro de uma saga que ninguém sabe (por vezes nem os autores) quando vai acabar. Para ajudar na divulgação, convidámos o autor a vir a Portugal e ele aceitou estar presente no Festival Bang! E agora? Agora precisamos da vossa ajuda e acho que a merecemos: ajudem-nos a provar que os livros de qualidade, apenas e só por causa disso, têm público em Portugal. E, se estiverem no Festival Bang!, até o levam para casa autografado.
( artigo escrito antes de toda esta loucura do COVID-19)