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Read-only Memory #1: Neuromancer

Rubrica sobre livros de ficção científica da autoria de Fábio Fernandes.

O ano: 1989. Antes da queda da União Soviética e do Muro de Berlim. Nos anos oitenta eu vivia tendo pesadelos com a guerra nuclear e não raro acordava apavorado, suando, trêmulo. Patologias do século vinte (sintomas cujas causas ainda não nos abandonaram de jeito algum, mas esta é outra história).

Comecei a ler ficção científica muito cedo, mas não existiam muitas traduções no mercado brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. Não, é preciso corrigir essa afirmação: o que não havia era muitas traduções de qualidade. Tínhamos, sim, uma razoável quantidade de autores traduzidos, através de uma versão de brevíssima duração da Fantasy & Science Fiction Magazine e de coleções de periodicidade irregular de editoras como O Cruzeiro, Bruguera e Francisco Alves. Quem viveu essa época conseguiu ler alguma coisa de Jack Vance, Fredric Brown, Frederik Pohl, John Brunner (estes dois últimos tiveram apenas um livro publicado cada, salvo engano). As Edições de Ouro (atual Ediouro) tinha uma grande porém eclética coleção de ficção científica que misturava livros da francês Fleuve Noir (e nos apresentou nomes como Stefan Wul e Jimmy Guieu) e a saga intergaláctica de Perry Rhodan. Devorei tudo o que pude até por volta dos meus quinze anos. Aí cresci.

E descobri os autores maiores, os chamados Três Grandes, que constituíam literalmente o ABC da FC no Brasil: Isaac Asimov, Ray Bradbury e Arthur C. Clarke. Nos Estados Unidos, os Big Three eram Asimov, Clarke e Heinlein, mas, embora se publicasse razoavelmente o autor de Um Estranho Numa Terra Estranha aqui, de algum modo Bradbury sempre nos falou mais à alma.

Mas para mim as coisas começaram a ficar realmente interessantes no emblemático ano de 1984 (poderia ser diferente para um fã de ficção científica?), quando, depois de terminar meu curso de inglês, finalmente me senti apto a ler coisas mais saborosas que histórias em quadrinhos, que eu já vinha experimentando há algum tempo. Comecei com Agatha Christie, em seguida passei para Ken Follett, mas na sequência respirei bem fundo e comecei a leitura de Duna. Foi um caminho sem volta.

(Pouco depois, encontrei um lote inteiro de livros de Frederik Pohl num sebo, comprei-os todos, li a maioria deles e acabei me tornando, até onde sei, o maior fã brasileiro desse autor, e pude lhe dar um abraço quando ele esteve no Rio de Janeiro com sua esposa Elizabeth ’anne Hull e o falecido Charles N. Brown, fundador e editor da Locus Magazine em 1988 – mas esta é outra história.)

Ainda 1989. Desde 1987, eu e um grupo de amigos do fandom brasileiro (entre eles José dos Santos Fernandes e Rubenildo Barros) costumávamos comprar livros da legendária (e ainda existente) livraria californiana The Other Change of Hobbit. Lembrem-se de que isso foi muito antes da Amazon.com – diabos, isso foi antes de Tim Berners-Lee criar a World Wide Web! Nós tínhamos que recorrer ao processo (hoje praticamente steampunk) de enviar uma ordem postal, e, dois ou três meses mais tarde (às vezes mais, dependendo dos humores dos Correios) aqui chegava a caixa, em perfeito estado.

Comprei muitos livros por esse sistema. Um deles foi Gateway ( eu tinha a maioria dos outros livros mais antigos de Pohl, mas não esse). E Neuromancer.

 

Esse foi o livro que mudou a minha vida.

Até então, eu era um leitor ávido de todos os tipos de ficção científica que me caíssem às mãos, e me considerava acima da media do fã brasileiro, porque dominava o idioma de Shakespeare, então em 1989 eu já havia lido autores como William Tenn, Chad Oliver, Bob Shaw, James White, John Crawley, Harlan Ellison. Autores pouco ou nada publicados no Brasil. E em sua maior parte livros das décadas de 1950 ou 1960, com um ocasional livro dos anos 1970.

Mas o impacto maior foi provocado por um livro contemporâneo: Neuromancer.

Era tudo que eu sempre quis e não sabia. Não vou entrar em detalhes, já que a magnum opus de William Gibson hoje pertence ao imaginário coletivo da humanidade e não precisa de introdução ou análise num pequeno artigo. Mas deixem que eu diga uma coisa: mudou o meu mundo para sempre. Este foi o livro que fez definitivamente com que eu quisesse ser um escritor – e não só um escritor de ficção científica. Ele abriu a minha mente para todo um universo que existia lá fora e do qual nós brasileiros mal nos dávamos conta. (os cyberpunks, por exemplo, que em 1989 Bruce Sterling já declarava extintos mas que só começariam, me atrevo a dizer, ali, naquele momento em que eu começava a ler Neuromancer e que, em outros pontos do Brasil, escritores como Guilherme Kujawski e Fausto Fawcett começavam a escrever livros com temáticas semelhantes.

Eu havia descoberto, por intermédio de Gibson (e, logo depois, por Sterling, Rucker, Cadigan, Kadrey, Kelly, e todos os outros cyberpunks), que a FC era sinônimo de revolução, e que o fandom daquela época no Brasil não queria saber disso. Tanto leitores quanto escritores só queriam ser deixados quietos nos seus cantos para ler seus clássicos de FC velhos e carcomidos e escrever histórias com os mesmos clichês ultrapassados – mas isso eu não podia fazer mais. Eu havia saído da caverna.

É importante apontar uma coisa: não sou o maior escritor de FC do Brasil, e tampouco estou dizendo que eu era a única pessoa em seu juízo perfeito no fandom. O que aconteceu na época foi o seguinte: eu havia descoberto todo um novo estilo de vida dentro da FC, um estilo de vida que já tinha cinco anos no mundo anglo-americano, e tudo o que eu queria era transmitir essa mensagem para meus amigos escritores. Não deu certo. O fandom permaneceu estático no Brasil, pelo menos até alguns anos atrás, quando começou a vivenciar um momento de renascimento nunca antes visto. (Mas esta também é outra história.)

Tudo o que Neuromancer fez foi mostrar para mim o caminho para me tornar um escritor um pouco melhor. Não era nenhuma bíblia do ramo, mas foi quase isso para um sujeito de 23 anos em 1989. E gosto de pensar que, apesar de tudo, para mim as coisas deram certo.

[author] [author_image timthumb=’on’]http://revistabang.com/files/2013/09/Fabio_Fernandes.jpg[/author_image] [author_info]Fábio Fernandes é escritor e tradutor. Autor de Interface com o Vampiro (ed. Independente, 2000), A Construção do Imaginário Cyber (2006) e Os Dias da Peste (Tarja Editorial, 2009), editou as antologias As Cidades Indizíveis, com Nelson de Oliveira (Llyr Editoral, 2012) e We See a Different Frontier, com Djibril al-Ayad (The Future Fire, 2013). Tem contos publicados em diversas antologias no Brasil e no exterior, como Steampunk Reloaded (Tachyon, 2010), Space Opera II (Draco, 2012), The Apex Book of World SF, Vol. 2 (Apex Publications, 2012). Traduziu para o português brasileiro, entre outros, Laranja Mecânica, Neuromancer, Snow Crash, Fundação, Reconhecimento de Padrões e 2001 – Uma Odisseia no Espaço. [/author_info] [/author]

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